26/06/2009

A tradição é uma sandes de presunto [Gaiteiros De Lisboa]



Sons

2 de Janeiro 1998

Gaiteiros de Lisboa falam de “Bocas do Inferno”

A tradição é uma sandes de presunto

Com o seu segundo álbum, “Bocas do Inferno”, os Gaiteiros de Lisboa elevaram a fasquia relativa ao modo de fazer uma música que, por enquanto, não dispensa o material tradicional, embora olhe para ele como “um camponês olha para um porco gordinho, como presunto e toucinho”. “Bocas do Inferno” foi justamente considerado pelo Sons, um dos melhores álbuns portugueses do ano. Três dos Gaiteiros, Carlos Guerreiro, José Manuel David e Rui Vaz, explicaram o que mudou no grupo, na passagem da barbárie para o Inferno.

Entre críticas à produção do álbum de estreia e a satisfação do novo disco estar a vender-se bem, os Gaiteiros mudaram de atitude e de métodos de trabalho. Ou melhor, a diferença de um para outro disco é que agora têm um método de trabalho.
PÚBLICO – Assumiram uma mudança de atitude e de processos criativos neste novo álbum?
CARLOS GUERREIRO – Passou a haver um maior equilíbrio de energias no seio do grupo. A criação, embora repartida, obriga a certa altura a não perder mais tempo. Isto tem a ver com o facto de o José Manuel David e eu passarmos a ser um crivo de todo o trabalho criativo do grupo. Digamos que fomos mandatados para darmos a última palavra. Foi o que fizemos, em termos de produção, direcção musical e direcção de estúdio. Se calhar, o que se nota neste disco é uma maior uniformidade de atitude. O outro disco foi gravado de forma extremamente descontínua, As vezes debaixo de uma grande tensão e nem sempre nas melhores condições. Neste, nota-se o reflexo de um certo conforto em estúdio.
RUI VAZ – Houve processos muito diferentes. Quando acabámos o outro disco, o espectáculo ao vivo já estava feito. Neste momento, passa-se o inverso. Tem que se construir um espectáculo a partir do disco.
FM – Em termos de arquitectura musical, “Bocas do Inferno” é um disco bastante mais barroco que “Invasões Bárbaras”...
R. V. – No jazz acontece uma coisa semelhante. Há a improvisação, mas também houve sempre outra parte: os Duke Ellingtons que escreviam os temas e os orquestravam. No princípio, todos os temas dos Gaiteiros foram construídos a partir de uma improvisação colectiva. Mas quando um tipo está fechado em casa a pensar no que vai fazer e a arquitectar uma determinada estrutura sem ter ninguém que lhe dê na cabeça, é natural que haja coisas que saiam mais complexas...
JOSÉ MANUEL DAVID – ... a arquitectar a partir do seu enquadramento pessoal. É assim, faz-se um tema em casa: “É pá, tenho aqui um tema porreiro!” Depois levamo-lo ao colectivo e há sempre uma discussão: “Então e se fosse antes assim?” Para este disco, tivemos um orçamento mais reduzido, tivemos menos tempo, sendo obrigados a trabalhar de uma maneira em que eu e o Carlos tínhamos que responder pelas coisas. No outro disco, isso não se sentia tanto.
C. G. – No disco anterior, também tivemos uma disponibilidade maior, em termos de grupo. A malta ia manifestamente para o estúdio experimentar, gravar e ouvir as vezes que fossem precisas. Andámos assim durante três meses. Neste momento, nenhum dos elementos teria a disponibilidade para voltar a passar por essa “via sacra”.
R. V. – Tentávamos gravar a todo o custo, mas acabámos por despender muito tempo para fazer muito pouca coisa.
C. G. – Com esse tempo, tínhamos gravado um triplo-álbum...
P. – Toda a apresentação do disco e mesmo alguns títulos dos temas apontam para uma preocupação vossa em mostrar os instrumentos, alguns deles bastante estranhos, que utilizaram. É o lado didáctico dos Gaiteiros?
C. G. – A capa foi idealizada por mim. Lembro-me que, quando comecei a ouvir discos de música mais esquisita, como aquelas edições de Le Chant du Monde, uma das coisas que me dava um gozo imenso era pegar na capa. Inclusivamente, foi a partir de algumas dessa capas que comecei a construir os meus primeiros instrumentos, como flautas de Pã, afinadas como lá vinha. É importante as pessoas perceberem o que é que está a produzir determinado som. Se não, bastava pôr a marca do sintetizador...
P. – Não são poucos os instrumentos que utilizaram...
J. M. D. – Vinte e cinco! A sala de ensaio é um bocado como um museu. Até com instrumentos que nunca utilizámos.
P. – A escolha para cada tema deve ser difícil...
J. M. D. – Seria mais fácil se tivéssemos uma formação do tipo rock, com vocalista, guitarras, uns teclados, um baixo e uma bateria, cada um a tocar só aquilo.
C. G. – O que eu acho milagre é, por exemplo, os Rolling Stones conseguirem viver há 30 anos sempre a tocar os mesmos instrumentos! Mas isto também tem a ver com outra coisa. A música é um bicho que se pode agarrar por muitos sítios, pelos cornos, pelo rabo, pelas patas, pela pele, pelo lombo... A nossa atitude não tem nada a ver com a da maior parte dos outros músicos.
P. – Por onde é que vocês agarram?
J. M. D. – Pelos cornos! Uma pega como aquelas lá da minha terra, Vila Franca. Fazer o que fazemos, com os instrumentos que construímos, com os problemas todos que eles criam, porque não são instrumentos comprados em lojas, não é fácil. Não podemos ir ter com o representante e dizer: “Então esta merda não funciona?” No nosso caso, o representante é o Carlos.
P. – Menos a trompa, que foi comprada numa loja, não? Ou também já pensaram em desmontá-la e montá-la de outra maneira?
C. G. – Já pensámos em endireitá-la! [risos]
P. – Curiosamente, o álbum coloca uma ênfase muito forte nas vozes. Trabalharam-nas de forma diferente, em comparação com o disco de estreia?
C. G. – A diferença profunda, em termos de método de trabalho, foi termos tido um método de trabalho! [risos] O outro disco, entregámo-lo a um produtor [N.R. : José Mário Branco] que acabou por nos desiludir um pouco, já que não produziu nada. Foi um trabalho com ausência de produção.
P. – Continuam a respeitar as raízes tradicionais que, afinal de contas, ainda constituem a base de muitos dos temas do novo álbum?
J. M. D. – O “background” está lá. Não somos um grupo de música tradicional, nem nunca dissemos que éramos. Mas esse “background” permite-nos andar em torno dessa música com alguma segurança.
P. – Ainda ouvem discos ou gravações de recolhas tradicionais?
C. G. – Sim. Por exemplo, pego numa cassete de música de Trás-os-Montes e vejo o que é que há ali. Normalmente, aproveito logo o primeiro tema que ouço. No fundo, do que precisamos é de uma espécie de excipiente, de um corpo para vestir. As ideias que estão implícitas nessas recolhas fazem logo saltar uma quantidade de coisas. Para mim, da música tradicional, qualquer coisa serve.
R. V. – Chegámos à música tradicional pela via complicada. Já tínhamos uma série de coisas na cabeça. Quando ouvimos temas tradicionais, o que nos encanta mais são os seus elementos mais estranhos, mais fora do convencional.
C. G. – Eu olho para a música tradicional como um camponês olha para o seu porquinho, quando ele já está gordinho: presunto de um lado, toucinho do outro! [risos]
P. – Em “Bocas do Inferno” as gaitas-de-foles têm um papel mais discreto do que no álbum de estreia. Será que começa a fazer pouco sentido a designação do grupo?
R. V. – Costumo dizer que nos chamamos Gaiteiros de Lisboa porque em Lisboa não há gaiteiros. Acontece uma coisa engraçada na Galiza. O nome “gaiteiro” desencadeia logo algo na Galiza que não tem nada a ver connosco. Isso tanto pode funcionar a nosso desfavor como a nosso favor. Mas há quem na Galiza já ouça a nossa música como ela deve ser ouvida, uma música de pessoas que não se preocupam muito com a afinação, mas sim em não tocar sempre a mesma “muiñeira”.
P. – Já têm algumas indicações sobre as vendas de “Bocas do Inferno”?
C. G. – Já se venderam dois mil, ao fim de três semanas. As “Invasões Bárbaras” venderam cinco mil em dois anos...
P. – Depois da barbárie, o Inferno. Fizeram algum pacto com o Diabo?
J. M. D. – Talvez, metaforicamente. Para este disco, não. Mas para o próximo talvez venha a ser chamado mesmo.
C. G. – Devíamos pedir um subsídio para o disco ser vendido juntamente com aquelas acendalhas para lareira, “Lúcifer”! [risos]

O inferno e o paraíso [Balanço 1997 - música popular portuguesa]

Sons

2 de Janeiro 1998
BALANÇO 1997
Música portuguesa - Popular

O inferno e o paraíso

Para a música portuguesa mais ou menos ligada às raízes tradicionais, em termos editoriais, 1997 foi o ano de algumas confirmações, umas poucas desilusões e, sobretudo, muitas reedições.

Entre o triunfo do segundo álbum dos Gaiteiros de Lisboa, as viagens de dois Martins, o algodão doce dos Madredeus e um certo desencanto que rodeou a dedicatória de Né Ladeiras a Fausto, ficaram as oportunas reedições de trabalhos antigos de Amália, Brigada Victor Jara, Vai de Roda e Ronda dos Quatro Caminhos. E o enigma da não edição do segundo álbum dos Realejo, sabendo-se que o disco está pronto há quase um ano…
A instituição Brigada Victor Jara, de Tentúgal, depois de nos anos transactos terem lançado novos álbuns, respectivamente, “Marcha dos Foliões” e “Polas Ondas”, viram completada este ano, em CD, a sua discografia mais antiga. “Tamborileiro” e “Monte Formoso”, ilustrativos de duas fases distintas do grupo de Coimbra, e “Vai de Roda”, disco de estreia do colectivo do Porto, entraram logo em Janeiro para a lista de candidatos a reedições do ano, enquanto passava despercebido o segundo capítulo de “cante” alentejano dos Ganhões de Castro Verde.
Rui Júnior, maestro percussionista, mergulhou de cabeça no seu projecto de percussões portuguesas para as escolas, com a Expo no horizonte. Árvore que já dá frutos, na contramão ao laxismo habitual que teima em vigorar em Portugal. Cesária Évora, outra árvore, “perfeita como o passado”, deu-se de novo, oceânica, a ouvir, em “Cabo Verde”. Águas de Fevereiro.
Águas de Março escorreram da guitarra solitária de José Peixoto, nas suas “Vozes dos Passos”, pela primeira vez a solo. E o solo de Trás-os-Montes estremeceu, na colectânea, “Mirandun, Mirandela…”, obra de franceses, outra das reedições do ano, a fazer corar de vergonha o nosso desinteresse. Ainda nesse mês, choveu uma nova estrela, que o futuro de encarregará de fazer despontar ou não, Inês Santos, a dar voz ao projecto Segredo dos Deuses. “Graça de Tchega”, de Tito Paris, manteve quente e morna. Que aqueceu ainda mais, já em pleno Verão, com Ildo Lobo e “Nós Morna”. Ildo Lobo e Cesária Évora encontraram-se, ao vivo, no Coliseu dos Recreios, já perto do final do ano.
Morna esteve Né Ladeiras, quando, logo a abrir o mês de Abril, se entregou às canções mais esotéricas de Fausto e à defesa dos lobos. “Todo este Céu”, o álbum daí resultante, veio provar que, afinal, às vezes as “más” companhias dão melhores resultados que as “boas” e que os amigos nem sempre são para as ocasiões. Também morno e amigo do seu tio, com voz frágil e enfiado entre os dentes da engrenagem, esteve João Afonso. As suas “Missangas”, embora coloridas, primaram pela falta de nervo. O seu mítico tio daria um murro na mesa.
No pólo oposto à voz de filigrana de João Afonso, vibrou o tenor telúrico do açoriano José Medeiros, trazendo, por fim, as músicas para filme de “O Feiticeiro do Vento” para o mercado discográfico do continente. Mas os Açores também sabem dar-se a ouvir baixinho, tão baixinho como as “Instrumâncias” oferecidas pelos Almma, que, ao vivo, nos Encontros de Algés, preferiram abrir as goelas e a romaria, espalhando-se ao comprido num registo que não é o do álbum.
Ainda assuntos de família: Gil do Carmo não desmereceu a tradição do seu pai, rompendo embora com o fado, em “Mil Histórias”. “Miséria!”, bradaram aos deuses, ao ouvirem esse mostrengo Adamastor “inventado” a martelo pelos V Império, para meter medo aos Madredeus. O logro não vingou e a única coisa que mete medo em “Mar de Folhas” é a música.
O Império contra-atacou, com não menos pretensões mas, pelo menos, rodeado por uma saudável polémica, através dos Sacerdotes de Alquimia. 1997 foi então o ano dos replicantes e dos segredos mal contados, nessa zona de sombras onde o roxo do gótico casa mal com a brancura da pomba do Espírito Santo.
Do Branco ao Negro é um salto. Dado pelos angolanos African Voices, que em “Freedom”, o seu álbum de estreia, juntaram os espirituais negros com o dialecto angolano. E do negro ao branco é outro salto. De negro se vestia Anamar. De branco se veste agora. Em “M”, letra de mil mistérios, pressente-se a vontade dos astros, tentando dirigir uma voz ainda demasiado selvagem e em busca de uma via aberta do lado de dentro para o lado de fora.
E quando as primeiras folhas tombavam, anunciando o Inverno, o azul chegou. E com ele “O Paraíso”, dos Madredeus, cada vez mais um grupo centrado em torno da voz de Teresa Salgueiro, e aglutinador de paixões extremadas, entre a adoração e a rejeição, quando não estes dois sentimentos sobrepostos. Mas a felicidade, mesmo se servida em pastilhas, ou principalmente porque servida em pastilhas, vende e sacia as almas enfartadas de materialismo. Soa a “new age” a visão cada vez mais retocada de Pedro Ayres de Magalhães, mas as raízes continuam mergulhadas na noite dos tempos.
A viagem, conceito omnipresente na cultura portuguesa, foi retomada de forma inteligente, com uma sensibilidade também ela genericamente rotulada de “new age”, pelo saxofonista Carlos Martins com o guitarrista e teclista cabo-verdiano Vasco Martins. Com “Outras Índias”, a música portuguesa de fusão viajou até uma ilha onde Rão Kyao chegou a atracar, mas que cedo abandonou para se dedicar a voos mais ligeiros pelo seu Oriente pessoal.
Paulo Bragança provou, ao vivo, no Centro Cultural de Belém, que a música tradicional e o fado têm arcaboiço para aguentar o seu vampirismo “kitsch” e a sua comédia de horrores. Sons polémicos por um dos mais mediáticos cultores do escândalo nacional.
De palavras e poemas se alimentou o projecto Os Poetas, que no álbum “Entre Nós e as Palavras” e nas suas apresentações ao vivo restabeleceram o elo perdido – virtual mas não menos belo – entre a poesia e a musicalidade das vozes dos mortos e dos vivos. “Bocas do Inferno”, dos Gaiteiros de Lisboa, demonstrou que a barreira do segundo álbum pode ser ultrapassada sem sobressaltos, quando a criatividade se junta à originalidade e ao método. Um dos álbuns portugueses do ano. Para nós, o melhor. E que tudo mais vá para o Inferno, como, a propósito dele, escrevemos.
“Bum tum pom tchim”. As baterias dos Tim Tim por Tim Tum passaram de esguelha por um tema popular. José Salgueiro e restantes Tintins da bateria poderiam ter batido com mais força. Como bateu José Mário Branco, catedrático da dúvida e da revolta, numa acutilante série de concertos cujo disco deles resultante, “Ao Vivo em 1997”, não faz justiça ao seu teatro da crueldade.
Já ao cair do pano, foi reeditado outro dos momentos mais conseguidos da música portuguesa de raiz tradicional: o segundo álbum da Ronda dos Quatro Caminhos, “Cantigas do Sete Estrelo”, outra das reedições do ano, que em breve será objecto de recensão. Bem como o volume seis da série Música Tradicional, com incidência na “Terra de Miranda”.
Amália e José Afonso, os dois contrafortes da música popular lusitana, fizeram descer a noite. Da primeira, o seu “Segredo” a par de mais uma colecção de material de fundo de catálogo repuseram a sua verdade da música portuguesa. Amália é mãe do nosso fado. O segundo, trazendo para a luz do dia o seu trabalho mais antigo, em forma de “Baladas e Canções” que continuam a ter na poesia a sua arma principal.
Rio Grande e “Vozes e Guitarras”, dois megaprojectos, dirigem-se a um megamercado de um país que é mais melga do que mega. Uns copiam, outros preguiçam, alguns facturam, muito poucos triunfam. E os novos, onde estão?

Faust - Faust Wakes Nosferatu

Sons

2 de Janeiro 1998
DISCOS – POP ROCK

Faust
Faust Wakes Nosferatu (6)
Think Progressive, import. Ananana

Nos anos 70, os Faust tornaram-se uma lenda. Nos anos 90, estes mesmos Faust, ou os dois elementos que restaram da formação original, Joachim Irmler e Werner Diermaier, têm-se encarregado de a destruir.
“Faust Wakes Nosferatu” é uma “banda-sonora”, mais uma, para o clássico filme de vampiros de Murnau, interpretada ao vivo por Irmler e Diermaier com o auxílio de uma série de convidados. O que nela choca mais não é tanto o clima de caos generalizado que atravessa todo o disco, mas a impressão de que esse caos foi encenado de maneira a coincidir com a imagem, gasta, de niilismo actualmente cultivada pelo grupo, na senda dos Einsturzende Neubauten.
Ficam as batidas secas de bateria de Diermaier, as lições de guitarra no limite da distorção e a arte de controlo do ruído, tudo o que os Faust já tinham feito há mais de um quarto de século, com outro requinte, e que agora se entretêm, metodicamente, a destroçar. Ficaremos a saber se os músicos da primeira geração do “krautrock” ainda têm, ou não, algo de novo para dizer, quando ouvirmos o álbum acabado de editar pelos Space Explosion, um supergrupo formado por Diermaier e Jean-Hervé Peron (outro Faust da formação original), Dieter Moebius, dos Cluster, Jurgen Engler, dos Die Krupps, Chris Karrer, dos Amon Düül II, e Mani Neumeier, dos Guru Guru.

Led Zeppelin - BBC Sessions

Sons

2 de Janeiro 1998
REEDIÇÕES

Led Zeppelin
BBC Sessions (7)

2xCD Warner Bros., distri. Warner Music

Na passagem da década de 60 para a seguinte, surgiu nos dois lados do Atlântico uma música poderosa que contrariava os padrões pop então vigentes. Era o “hard rock”, movimento que viria a dar origem ao “heavy metal”. Os Led Zeppelin, desde sempre um dos grupos mais representativos do movimento – como os Ten Years After, ou os menos conhecidos Aynsley Dunbar Retaliation e Wishbone Ash –, alicerçaram a sua música na fortaleza dos “blues”, ao contrário de outras bandas “hard”, como os Black Sabbath, Uriah Heep e Deep Purple, que preferiram colocar a sua violência ao serviço do progressivo e do rock sinfónico. Em 1969, ano em que a banda de Jimmy Page, John Paul Jones, Robert Plant e John Bonham (já falecido) gravou a totalidade das sessões para a BBC agora reeditadas, os “blues” explodiam nas versões de muitas das canções que se viriam a tornar clássicos na posterior discografia de estúdio dos Zeppelin, como “You shook me”, “Communication breakdown”, “Dazed and confused”, “Whole lotta love”, “How many more times”, “Immigrant song”, “Black dog” e “Stairway to heaven” (algumas delas aqui repetidas em diferentes ocasiões, o que permite deste modo verificar a evolução da sonoridade do grupo). Com tempo e espaço para fazer eclodir os seus “riffs”, macerados pela guitarra de Page e pela voz cortante de Plant, os Led Zeppelin, como os Cream tinham feito antes, mostravam as virtudes da improvisação no rock, tornando esta selecção de pérolas negras uma boa justificação para ouvir de novo a obra completa do grupo, toda ela entretanto já reeditada com remasterizações e nova apresentação.

Conflito de gerações [World - Irlanda]

Sons

2 de Janeiro 1998
WORLD: IRLANDA

Conflito de gerações

Para começar bem o ano, nada melhor do que uma boa reserva de música tradicional da Irlanda. No desafio entre os novos, Solás e Dervish, e os “velhos”, Patrick Street e Open House, estão os Bothy Band a arbitrar. Todos com certificado de garantia.

O aviso já tinha sido dado por Séamus Egan nos seus dois álbuns a solo, “Traditional Music of Ireland” e, sobretudo, no mais recente “When Juniper Sleeps”. Trata-se de uma das maiores revelações de um multi-instrumentista irlandês dos últimos anos. Se a sós estas capacidades revelavam ser já de excepção, imagine-se o terreno fértil encontrado pelo músico no seio da formação Solás. Com efeito, ao lado de Karen Casey, excelente voz feminina, ao nível das divas, John Doyle (guitarras, mandocelo e voz), Winifried Horan (violinos) e John Williams (acordeão e concertina), Seamus Egan explode, literalmente, na flauta, banjo, “low whistle”, bandolim, guitarra acústica, “bodhran” e percussão. A estes músicos, juntou-se ainda o convidado John Anthony, numa miríade de percussões celtas e “não celtas”, como o “djembe”, o tambor de barro e o “dumbek”.
“Sunny Spells and Scattered Showers” é o segundo álbum dos Solás, sucedendo ao disco de estreia, “Solás”, também disponível com a mesma distribuição. Aos primeiros acordes do “standard” “The wind that shakes the barley”, torna-se evidente estarmos na presença de um clássico. Mais do que em “Solás”, o grupo parece apostar neste seu segundo registo em reivindicar para si, em exclusivo, o legado dos Bothy Band.
São vários os indícios que apontam neste sentido, desde a voz de Karen Casey, surpreendentemente parecida com a de Triona Ní Dhomnaill, até ao recurso a um tipo de reportório idêntico ao usado pela mítica formação dos anos 70, de que é exemplo o “set” de “reels” correspondente à faixa número dois, que os Bothy Band já haviam tocado em “Old hag you have killed me”, embora num e noutro caso os temas tenham títulos diferentes, o que, de resto, acontece com frequência no cancioneiro irlandês.
E não só: também as técnicas de guitarra e banjo de Seamus Egan apontam para o mestrado de Donnal Lunny, assim como a notável fluência violinística de Winifried Horan evoca o primado de Kevin Burke. Mas “Sunny Spells and Scattered Showers” é, acima de tudo, um álbum para saborear de ponta a ponta, marcado por uma energia inesgotável e pela entrega total dos seus intervenientes. Arriscamo-nos a dizer que os Solás terão, inclusive, ultrapassado os Dervish, na corrida entre os grupos da nova geração. Na Ilha, a competição é “feroz”. A bem de uma tradição que, deste modo, constantemente se renova e perpetua. (Shanachie, 9)

Dervish que, no seu mais novo trabalho, resolveram mostrar-se ao vivo, num duplo álbum, “Live In Palma”, registado a 10 de Abril deste ano no Teatre Principal, em Palma de Maiorca, no âmbito do 2º Ciclo de Música Tradicional realizado nessa cidade espanhola. Ao longo de duas horas, intercalam-se “sets” instrumentais – onde pontificam a flauta e os “whistles” de Liam Kelly, o acordeão de Shane Mitchell e o violino de Shane McAleer, três executantes em permanente evolução, atingindo aqui níveis de altíssima qualidade – com baladas interpretadas, de forma superlativa, pela nossa bem-amada Cathy Jordan, cuja voz está cada vez mais sensual, um autêntico afago..., embora, lá está, a sombra da grande Triona assome por mais de uma vez, como na balada em gaélico “Máire mhór”, e interlúdios falados de apresentação dos temas. “Live in Palma” é um reencontro estimulante com a banda que ainda há bem pouco nos presenteou com a obra-prima “At the End of the Day”, recordando as noites inesquecíveis oferecidas pelo grupo numa das edições do Festival Intercéltico do Porto. Um dos grandes discos ao vivo do ano. (Whirling Discs, 9).

Os Bothy Band voltam a ser citados a propósito dos Open House e dos Patrick Street, outras duas bandas que já nos visitaram (integradas, respectivamente, nas programações da Festa do “Avante!” de há dois anos e do Intercéltico deste ano), já que o seu violinista é Kevin Burke, um dos nomes de referência da música irlandesa actual.
Em qualquer destes trabalhos nota-se, em primeiro lugar, a idade dos músicos! Compare-se o som e a atitude dos Open House e dos Patrick Street com a dos Solás e dos Dervish. Pois. É a diferença entre quem vive a música como se o mundo acabasse amanhã, entregando-se-lhe sem reservas e quem a sente já com outra sabedoria e distância. Se a componente rítmica, em qualquer destas duas bandas mais velhas, pode dar a sensação de perder na comparação com a das suas congéneres mais jovens, as subtilezas contidas na expressão e na interiorização compensam este défice, real ou aparente. Outra das características das bandas mais velhas é a saída para outras músicas, talvez em busca de uma irrecuperável frescura e de novas fontes de inspiração. Fenómeno que, em si, nada tem de negativo – basta lembrar os casos de outros veteranos célebres, como os Chieftains, House Band ou os próprios Planxty.
Em “Hoof and Mouth”, terceiro álbum da sua discografia, os Open House vão à Eslovénia, à Sérvia, à Bretanha, à Finlândia e a um original de Laura Nyro, já para não falar das tendências “bluesy” e “country” do seu tocador de harmónica, o norte-americano Mark Graham, das sessões de sapateado de Sandy Silva e do clarinete, muito anos 40, ainda de Mark Chapman. A Irlanda profunda força a entrada através das “uillean pipes” do convidado Ged Foley, dos Patrick Street, precisamente. Sem pressas, os Open House vão construindo uma reputação, num álbum mais calmo e “americanizado” que os seus antecessores. (Green Linet, 7)
Os Patrick Street são “mais irlandeses”. Uma banda clássica, no sentido em que se mantém fiel ao estilo tradicional, embora também em “Made in Cork” seja notório um menor fulgor instrumental, em comparação com grupos como os Solás, Dervish, Skylark, Trian ou com o fogo interior que anima Eillen Ivers (Altan e Déanta são casos especiais, evidenciando uma atitude mais pacificadora).
Depois de uma digressão pelos Estados Unidos, a superbanda formada por Burke, Andy Irvine, Ged Foley e Jackie Daly regressou ao coração da Ilha, para gravar em Cork este seu novo registo. Anote-se, também aqui, em paralelo com os Open House, as tónicas da serenidade e dos andamentos médios, com a curiosidade de se sentirem diferenças no “approach” do violino, numa e noutra banda, por parte de Kevin Burke, aqui muito mais sincopado do que nos Open House. Claro, os Patrick Street, se outros trunfos não tivessem, conseguem ser diferentes de toda a concorrência, por obra e graça de uma voz, única na Irlanda, pertencente a Andy Irvine, verdadeiro mago na arte de emprestar ternura e saudade (que nos perdoem os puristas da língua, mas pensamos ser este sentimento comum a Portugal e à Irlanda...) a uma balada. Mas, ainda aqui, faz impressão verificar uma certa falta de nervo. A idade não perdoa... (Green Linnet, 7)

Por fim, recordemos as origens. Os Bothy Band, para quem ainda não saiba, foram uma das primeiras bandas a transformar a “irish music” numa música capaz de provocar nas audiências mais jovens a mesma excitação do rock. A reedição de “Live in Concert, BBC Radio One” inclui duas sessões do grupo ao vivo, em Londres, transmitidas, via rádio, pela Radio One. A primeira, gravada no BBC Paris Theatre, a 15 de Junho de 1976. A segunda, em The National, Kilburn, a 24 de Julho de 1978, ou seja no auge criativo desta banda, que deixou para a posteridade apenas três álbuns de estúdio, “The Bothy Band”, “Old Hag You Have Killed Me” e “Out of the Wind into the Sun”, sendo, todavia, qualquer deles, registos-chave de toda a “folk” irlandesa.
Em cada uma destas ocasiões, o grupo apresentou um “uillean piper” diferente: Peter Brown, na primeira; Paddy Keenan, na segunda. O interessante neste disco é a demonstração do facto de os Bothy Band serem uma banda de tal modo proficiente em termos instrumentais que as versões ao vivo, tanto instrumentais como vocais, eram praticamente idênticas aos sofisticados arranjos de estúdio.
Nota-se isso mesmo, por exemplo, no clássico tema de “mouth music” de “Old Hag...”, “Fionnghuala”, e em todos os “sets” instrumentais, como aquele que se inicia com “Michael Gorman” (desse mesmo álbum), contendo uma estarrecedora prestação de Peter Brown, nas “uillean pipes”. Não deixa, então, de ser espantoso que, no disco de estúdio, o mesmíssimo tema seja tocado praticamente da mesma forma por outro músico, o qual se viria a notabilizar como gaiteiro da banda, Paddy Keenan!...Isto só prova a formidável unidade e coesão (enquanto duraram...) dos Bothy Band. “Live in Concert” acaba por ser um condensado dos álbuns de estúdio, interessante, sobretudo, do ponto de vista de uma apreciação técnica dos seus elementos. (Green Linnet, 8, todos os álbuns com distri. MC – Mundo da Canção).

23/06/2009

Top 10 - Discos de 1997

Sons

26 de Dezembro 1997
TOP X - Discos de 1997

MAIS 10 de
F. MAGALHÃES

Fuschimuschi Math-Ice – Short Stories
Negativland - Idepsipe
Steve Roach, Stephen Kent, Kenneth Newby – Halcyon Days
Peter Hammill – Everyone you Hold
Kreidler – Weekend
Legendary Pink Dots – Hallway of the Gods
Art Zoyd – Haxän
Hans-Joachim Roedelius – Sinfonia Contempora No. 1
Paul Simon – Songs from “The Capeman”
La! Neu? - Düsseldorf

José Mário Brano - Ao Vivo Em 1997

Sons

19 de Dezembro 1997
DISCOS - PORTUGUESES

Ao vivo de certa maneira

Ainda não é desta que temos o prazer de escutar um novo álbum de estúdio do autor de “Margem de Certa Maneira”. Para José Mário Branco, compositor do outro lado, será ainda tempo de espera e de preparação interior, antes da concretização de um novo passo em direcção ao desconhecido. “Ao Vivo em 1997” é um ponto de ordem, uma chamada de atenção, um gesto de cumplicidade retomada. Uma inquietação intermédia num percurso de criatividade cujo derradeiro testemunho continua a ser as suas “Correspondências”.
José Mário Branco veio no passado mês de Junho dizer de si próprio e da sua arte, em 23 temas gravados nos espectáculos realizados a 14, no Coliseu do Porto, a 15, 16 e 18, no Teatro da Trindade, em Lisboa, e a 20, no Teatro Gil Vicente, em Coimbra. Fora do disco ficaram os temas compostos por José Mário Branco para a peça “Gulliver”, encenada pela Barraca, que pertenciam ao alinhamento dessas cinco datas, deixando entender que o músico pretendeu conservá-los para inclusão no disco da banda sonora a editar esperemos que muito em breve.
Para já ficamos com a recordação desses espectáculos, através de um punhado de canções de total exposição, às quais, em alguns casos, a voz de José Mário Branco não terá feito toda a justiça, revelando, sobretudo na sequência inicial deste duplo álbum, algum cansaço. Mas a expressividade, o teatro da alma, a força das palavras e os renovados arranjos de clássicos como “Engrenagem” (com as harmonizações dos Tetvocal), “Elogio da corporação”, “Margem de certa maneira” (mais escurecido e desamparado do que nunca), “Ser solidário”, “Emigrantes da quarta dimensão”, “Queixa das almas jovens censuradas” e “A noite” chegaram, e chegam, como sempre, para desassossegar. Mesmo se pelo lado da ternura. Ou da sátira, aqui retomada, de forma deliciosa e, de novo com a preciosa colaboração dos Tetvocal, por um José Mário Branco “rapper” em “Arrocachula”.
O segundo compacto inclui os inéditos “De pé, saudação a Antero”, “Menina dos meus olhos”, “Teu nome Lisboa” (um “unplugged” sem rede, suportado pelo contrabaixo de Carlos Bica), “Capotes pretos, capotes brancos” e “Terra quente”, este último a solo pelos Tetvocal. Estarrecedor é o balanço final de “Cantiga de alevantar ‘leva leva’”, um cântico ritual de trabalho que serve de metáfora à obra seminal de José Mário Branco. Momento privilegiado para quantos acompanharam de perto estes espectáculos ao vivo do músico, no mês da graça de Junho de 1997.

José Mário Branco
Ao Vivo em 1997 (7)
2xCD ed. e distri. EMI – VC

No Noise Reduction - On Air

Sons

19 de Dezembro 1997
DISCOS - PORTUGUESES

No Noise Reduction
On Air (7)

Ed. e distri. Ananana

Por detrás das práticas de experimentação dos No Noise Reduction, um trio formado pelos desestruturalistas Rafael Guitarra e Paulo Feliciano, está presente um conceito estético que passa pela manipulação (leia-se “controlo”) do ruído e pela pretensão da sua recontextualização como forma musical autónoma. Se este conceito participava já das montagens sonoras levadas a cabo no trabalho anterior da dupla, “The Complete No Noise Reduction”, marcado por experiências afins de nomes como os Negativland ou Steve Fisk, este novo “On Air” explora o universo digital através da utilização de brinquedos electrónicos, cujos módulos de produção de som são filtrados, modulados e sequenciados pela guitarra ou pelos próprios dispositivos de gravação. Encontramos o mesmo tipo de experimentação no primeiro álbum a solo de Wim Mertens, “For Amusement only”, no qual o compositor “entrava” nos processadores electrónicos de máquinas de “flippers” para criar uma espécie de novo jogo que subvertia de forma irónica as regras do minimalismo. No caso dos No Noise Reduction trata-se antes da criação de um espaço vibratório correndo “no ar”, um “continuum” de modulações que ostentam as marcas do artificialismo, funcionando, neste caso, como subversão do ambientalismo. “On Air” trabalha com a respiração de máquinas pequenas, com as suas brincadeiras de seres sintéticos, com as suas trocas e perdas de energia, com os ritmos próprios dos seus circuitos electrónicos. O primeiro álbum de “pós-rock” nacional, enquanto experiência limite em torno de um conceito totalmente alheio à música popular.

Vários - Voz E Guitarra

Sons

12 de Dezembro 1997
PORTUGUESES

O princípio da Canção

Vários
Voz e Guitarra (7)

2xCD ed. e distri. Farol

Só a listagem de nomes presentes neste duplo álbum bastaria para esgotar o espaço desta crítica. “Voz e Guitarra” é uma autêntica parada de estrelas, reunidas com o propósito de pôr em prática uma ideia que, não sendo original – o “unplugged” –, tem a particularidade de os vários intervenientes mostrarem o que valem recorrendo às suas vozes e às suas guitarras. Num projecto desta natureza, é óbvio que nem todas as canções se pautam pelo mesmo calibre qualitativo. São, na maioria, canções conhecidas, umas vezes cantadas pelos próprios autores, outras recriadas em versões alheias, permitindo assim a sua revisitação em moldes diferentes.
Escolhemos para destaque, de um total de 36, aquelas de que ressalta algo que as torna momentos especiais. Assim, no primeiro compacto, tocam esse instante indefinível as vozes e as guitarras de Kalú (na sua estreia a solo fora dos Xutos) e Nuno Rafael, com “Tonto”, um grito arrebatado do fundo da esperança; “Os melhores anos das nossas vidas”, mostrando um Miguel Ângelo nostálgico e afastado das luzes da ribalta; a beleza distante de Filipa Pais, em “Praia das lágrimas”; “Mulher da erva” de Sérgio Godinho, um original de José Afonso, com introdução vocal de Filipa Pais; a nova e mais medievalesca versão de Né Ladeiras e Pedro Jóia, para “Molinera”; e as barrocas harmonias vocais das Vozes da Rádio numa “Canção da viela património mundial” que não esconde a influência de Gabriel, o Pensador. E, brilhando e agitando-se acima de tudo, a voz de Janita Salomé, ressumando espiritualidade no seu clássico “Não é fácil o amor”.
No segundo compacto, somos atirados para a quarta dimensão pela versão de um tema de Fausto, “Porque não me vês”, de Xana com Flak, um dos grandes momentos do disco. Jorge Palma assina um pedaço autobiográfico no confessional “O meu amor existe”, enquanto a voz das profundezas atlânticas do açoriano José Medeiros faz da ternura tristeza em “Menina dos olhos tristes”.
Mas “Voz e Guitarra” vale, ainda, como uma ideia que torna possível a redescoberta de algumas facetas pouco iluminadas de um lote abrangente de alguns dos nomes mais sonantes da música portuguesa. Redescubram então, além dos exemplos citados, a música, no máximo despojamento, de Paulo Gonzo, Rui Veloso, Tim, Carlos Tê, João Afonso, João Gil, Minela e Moz Carrapa, Vitorino, Nuno Guerreiro, Luis Represas, João Monge, José Soares Martins e Paulo Costa.

18/06/2009

Rio Grande - Dia De Concerto

Sons

12 de Dezembro 1997

Enquanto houver água

Rio Grande
Dia de Concerto (7)
Ed. e distri. EMI – VC

Depois do disco de estúdio, o registo ao vivo dos concertos no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 23 e 24 do passado mês de Outubro. Depois do disco ao vivo será a vez do vídeo, depois o filme com o mesmo nome, depois o “making of” desse filme, depois os ensaios dos concertos, onde se descobrirá mais algum material inédito, depois o “unplugged”, até que, por fim, se julgará ser oportuno fazer a primeira reedição do disco de estúdio. É assim, quando os rios são grandes, correndo por um grande leito. Enquanto o caudal não estanca, aproveita-se a água o melhor que se pode.
Não é difícil prever que “Dia de Concerto” seja mais um enorme sucesso de vendas, à semelhança do que aconteceu com o álbum de estreia desta superbanda portuguesa. O que este novo álbum tem de novo em relação ao anterior é, sobretudo, a verificação do nível de comunicação atingido entre o público e a banda naquelas duas ocasiões. As pessoas não se limitaram a aplaudir. Cantaram acompanhando os seus ídolos. Gritaram. Expressaram o seu entusiasmo. São assim os fenómenos mediáticos. Claro, há aqui originais, novas versões com novos vocalistas (“Zé passarinho”, “Negras como as noites”, “Marcha ingénua”), convidados especiais (Paulino Vieira, no cavaquinho e harmónica, um naipe de metais), intervenções mais ou menos espontâneas, solos de guitarra alargados, em suma, todo o ambiente especial que comporta um bom concerto ao vivo, como foram os desses dois dias no Coliseu dos Recreios.
Desconte-se todo o fogo-de-artifício, apaguem-se as luzes, faça-se silêncio. “Dia do Concerto” foi o dia em que Jorge Palma apresentou um novo tema seu, “Quem és tu, de novo”, consigo ao piano e na voz, e Vitorino a seu lado, também a cantar. Rio talvez mais pequeno, afluente do amor, ouviu-se então o mesmo que se ouve agora, em audição solitária: o marulho suave das lágrimas. Mas a festa continua sempre em frente até o filão se esgotar. Segue “postal de correio” com cheque anexo.

Vários - Biografia do Pop-Rock

Sons

12 de Dezembro 1997
POP ROCK

À sombra da bananeira
Vários
Biografia do Pop-Rock
(8)
2xCD ed. e distri. Movieplay

Era difícil, antes da revolução do 25 de Abril, cantar em português e fazer música portuguesa original. A censura mandava. A luta processava-se mais pelo lado da chamada “música de intervenção”, por gente como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco e a vaga de baladeiros lançados pelo programa Zip Zip. Mas, e a pop? Mas, e o rock? Os “conjuntos” ié-ié ouviam os seus congéneres estrangeiros, sobretudo os ingleses, principalmente os Beatles e os Stones, copiando e adaptando-os à realidade nacional. “Biografia do Pop-Rock” traça um retrato, necessariamente incompleto, dessa realidade nos anos 60 e 70, através de uma compilação de “singles”, cujas edições originais se tornaram verdadeiras raridades.
De um total de 30 temas, alguns soam hoje absolutamente ridículos, entre versões mais ou menos inspiradas e uma “twilight zone” que exala o perfume do anacronismo. Examinemo-los por ordem.
“Pop Five”, dos Pop Five Music Incorporated (com Miguel Graça Moura, hoje maestro), de 1970, foi durante alguns anos o indicativo do célebre programa radiofónico Página Um, da Rádio Renascença. Um “funky” semi-instrumental e grosseiro que, em virtude dessa utilização, ficou nos ouvidos. “Era um biquini piquinino às bolinhas amarelas”, de Pedro Osório e o seu conjunto, surge como uma pura inanidade. “Ela não queria sair da barraca, ninguém podia tirá-la dali, então eu fui espreitar e o que vi era um biquini piquinino às bolinhas amarelas, que loucura, é de tarar!” acompanhado por um cãozinho a ladrar e vozes de Mickey.
Os Ekos, de Edmundo Falé e Mário Guia, eram um dos mais famosos conjuntos ié-ié que concorriam aos famosos concursos de música moderna do Cinema Monumental. “Esquece”, de 1965, é uma versão curiosa de “Hold on” de P. J. Proby, com um toque da “swinging London” repescada para um “hully gully” com letra de rock sentimentalão. “O Júlio é um duro”, dos Albatroz, gravação de 1981, faz parte da geração do “boom” do rock português protagonizado por Rui Veloso, UHF e GNR. É um daqueles temas cujo refrão (?) é impossível tirar da cabeça.
Os Jets, de João Alves da Costa, outro dos conjuntos do Monumental, eram psicadélicos e cantavam em inglês “Let me live my life”. Órgão “fuzz”, ritmo arrastado, Syd Barrett a ver. O ano de edição? 1967, como não podia deixar de ser. Adelaide Ferreira cantava em 1979 “Meu amor vamos cantar os dois”. Cantava suave uma balada inofensiva, num lugar hesitante entre a margem esquerda da MPP e a música de variedades.
Os Arte e Ofício, do Porto, os tais que foram “melhores que os Can” no espectáculo do Pavilhão dos Desportos, safavam-se, em 1977, com “Festival”: Gentle Giant mais Black Sabbath com proficiência técnica. Segue-se coisa séria. “A bananeira”, um original de 1974 dos Petrus Castrus (autores do álbum “mestre”, marco da pop nacional) é um clássico, instante de suspensão único na música portuguesa. De longe o melhor tema desta compilação.
“I’m a believer”, um original de Neil Diamond popularizado pelos Monkees, foi adaptado em 1967 pelos Chinchilas, um dos conjuntos com nome feito da altura. Tem um balanço um pouco emperrado, mas, vá lá, passa. “Canção da Beira Baixa” é um instrumental “à Shadows”, gravado pelos Titãs em 1963. Estão lá as guitarras, o eco, o espírito da época. Fez parte do grupo José Lello, actual Secretário de Estado das Comunidades.
“Vendaval”, rotulado de “rumba rock”, é mais popfado chunga. Vem assinado, em 1963, pelo Conjunto Nova Onda, do qual fazia parte Gonçalo Lucena que mais tarde viria a tornar-se conhecido pela sua participação no concurso A Visita da Cornélia. Fernando Conde, “o Cliff Richard português”, cantava em 1966, de maneira desengonçada, “Amar, viver, sonhar”, um “shake” adaptado de um original de Chuck Berry.
Outro “hully gully”, “O dia em que te vi”, pelo Conjunto Diamantes Negros, de 1966, é mais um pedaço de sonho. “Naquele dia em que te vi/ tão só/ desamparada, a chorar/ na tarde amena estavas tu/ tão só/ corri para ti para te abraçar.” Cheio de lágrimas doces e um sax embevecido a fazer lembrar David Bowie.
O “fox blue” instrumental “Nivran”, de 1966, é puro “easy listening” para consumo em salões de bailes de finalistas. Com xilofone e a displicência do Conjunto Académico Orfeu. Também é deles “Cosmovisão”, um tema progressivo de 30 minutos, que muitos puderam ouvir num espectáculo do grupo ao vivo, em Sintra, mas que nunca chegou a aparecer em disco. Aqui, a banda, que chegou a ter como vocalista Lena d’Água, lança-se nos seis minutos de “Cristine (assim mesmo, sem “h”...) goes to town” (1971), com guitarras em mutação e vocalização em inglês num “prog” à Uriah Heep, mesclado de “rhythm ‘n’ blues”, como era corrente em Inglaterra, nessa altura.
O segundo disco da Biografia abre com “Missin’ you”, de 1979, um êxito tardio dos Sheiks, grupo por que passaram Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Fernando Silva e Fernando Chaby. Um “slow” cheio de “soul” e inspiração, recordado com nostalgia por quem ainda se lembra. E chega Vítor Gomes, sem os Gatos Negros e as acrobacias que o fizeram famoso nas suas aparições ao vivo, mas com Os Siderais, que o acompanhavam em 1967, em “Juntos outra vez”. Os Mini-Pop foram a primeira “boys band” portuguesa. Em “My holiday girl”, de 1973, imitavam um “gospel” imberbe dos Edwin Hawkins Singers, para meninos bem cantarem nas férias do Natal.
Lembram-se do “twist” os veteranos? Que maravilha era balouçar as pernas e a cintura a ouvir Pat Boone e o “twist and shout” dos Beatles. Mas Daniel Bacelar (“o Ricky Nelson português”) e os Gentlemen cantavam em “Olhando para o céu” (1963): “Não posso olvidar teu meigo olhar, nem o teu sorriso de encantar”, seguido por alguns dos primeiros gritos ié-ié da música portuguesa.
A seguir vêm Os Claves, outro conjunto célebre, com uma versão de “California dreamin’” dos Mamas and Papas, com data de 1966 e um melífluo solo de flauta pelo meio. Para pôr flores no cabelo e partir para São Francisco. O que atrás se disse sobre os Albatroz aplica-se ao tema dos UHF incluído nesta colectânea, “Um mau rapaz”, de 1982, um dos primeiros gravados pela banda de António Manuel Ribeiro. É difícil resistir ao balanço da frase de sintetizador e à fúria genuína do Jim Morrison português.
Inacreditável, o tema que se segue, um dueto da cantora Teresa Paula Brito com José Duarte, esse mesmo, o crítico de jazz, sob a designação de The Strollers, numa versão de “Chevrolet”, de Larry Young. É toda uma vontade de “cantar ‘jazzy’” que se desprende da vocalização de José Duarte, em variações de ginasta, com entoações que põem a língua inglesa de pantanas. Cometeram o “crime” em 1967.
Os Rock & Varius, com a cantora Midus e o saxofonista Mário Gramaço, cultivavam o “ska” nacional, em “Totobola”. No ano de 1981, o tal do “boom” do rock português. Ao contrário de muitas outras bandas portuguesas da época, os Psico, do guitarrista Toni Moura, eram exímios executantes, fazendo gala disso, em 1978, no instrumental “Al’s”, onde se entregavam a solos de guitarra, baixo e sintetizador sincronizados. O Progressivo no seu lado mais profissional, entre o “jazz rock” dos Solution e o sinfonismo dos Genesis.
E o Zeca do Rock, meu Deus!! De seu verdadeiro nome, José das Dores, foi o primeiro músico português a gravar um “ié” em disco, por sinal, neste preciso “Sansão foi enganado”, de 1961, (considerado o mais raro vinil nacional), uma verdadeira lição para Manuel João dos Ena Pá 2000. A voz de barítono “blasé” de Zeca aflorava a poesia erótica, declamando os amores de perdição entre Sansão e a sua Dalila em versos de grande beleza plástica: “Quando ele acordou, coitado, não tinha força para nada/ foi então acorrentado por ordem de sua amada./ Algum tempo já passado, o cabelo lhe voltou, cheio de força e zangado, até a casa ao chão deitou, ié!"
“Os teus olhos senhora” (1968), pelos Charruas, grupo ié-ié da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém, que contava nas suas fileiras com Danny Silva, é um “slow” inocente, repleto de “uh-uhs” e olhos marejados de lágrimas.
“Num belo autocarro um dia entrei/ e nele tudo estranhei/ dois empregados bem gentis/ como nunca teve a Carris/ que carro é este, perguntei/ pois que nunca assim eu viajei/ é o autocarro do amor/ logo respondeu o revisor”. Ressaca do Verão do amor, em Pop chunga do piorio, de 1969, por Os Taras e Montenegro, um grupo que andou em digressão pelo país real, ao lado de José Afonso, Paulo de Carvalho e Quim Barreiros.
De ir às lágrimas é o “Bailinho da Madeira”, pelos Demónios Negros, em versão “bailinho twist” de 1965, de onde ressaltam uns delirantes “uis” e palavras de ordem populistas, antes do tema derivar para uma desbunda eléctrica sem classificação possível. Comparável, na construção dramática, ao mais grandioso monumento do absurdo da Pop nacional que é “I am a Xanxo”, dos Steamer’s.
“A festa”, do Corpo Diplomático (com Pedro Ayres de Magalhães e Carlos Maria Trindade), de 1979, assinala o período de transição do “punk” dos Faíscas para a pop nacionalista dos Heróis do Mar. É um exercício de “new wave” sintético, da escola Ultravox/Magazine, sobre um texto de humor-negro, constituindo um dos temas menos acessíveis desta biografia que anunciava já o futuro.
“Biografia do Pop/Rock” – que termina dando um nó ao tempo, com um remistura, já deste ano, de “Page one”, a cargo de Scotty Marz – é um documento de puro gozo.

30 graus Celsius [Celso de Carvalho]

Sons

5 de Dezembro 1997

Celso de Carvalho estreia-se a solo em edição de autor

30 graus Celsius

Celso de Carvalho, 47 anos, antigo elemento dos Plexus e da Banda do Casaco, violoncelista numa orquestra sinfónica, participante em gravações de estúdio ou em concertos dos mais diversos artistas nacionais e estrangeiros (Quarteto 1111, José Afonso, Rão Kyao, Filipe Mendes, António Pinho Vargas, Steve Potts, Gunther Hampel, Marcos Resende, Né Ladeiras, Jerry Marotta, António Emiliano, Chico Buarque, Ramuntcho Matta, Amélia Muge, e Ala dos Namorados, entre outros), acabou de “lançar” o seu primeiro álbum a solo, intitulado “Celsianices”, do qual é autor, intérprete, produtor, arranjador, misturador, programador e engenheiro de som.
Mas este álbum tem uma particularidade: trata-se de uma edição de autor do qual foram apenas prensados 30 exemplares, numerados e assinados, que têm sido distribuídos “por pessoas amigas, por amantes de música em particular e mesmo por pessoas que o autor não conhece pessoalmente, sendo, contudo, apreciador dos seus critérios musicais, gente ligada à crítica e à divulgação nos ‘media’”. Porque, quando Celso de Carvalho quis dar a conhecer a sua música, “faltaram-lhe todos os apoios”. “É que a coerência e a opção pelo não-comercial têm os seus custos”, diz. Foi assim que tivemos conhecimento de “Celsianices”, um álbum gravado entre Julho de 1994 e Julho de 1995, passado para CD em Fevereiro de 1996, inteiramente realizado com teclados Roland JV-90 e Yamaha PS-S-680, e recurso ao programa de computador Korg Audio Gallery.
Para trás ficaram o baixo eléctrico, o violoncelo e o vibrafone, instrumentos nos quais se notabilizou ainda na década de 60 com o primeiro grupo de “free music” português, os Plexus, do qual também fez parte o violinista Carlos Zíngaro. Mais tarde, Celso de Carvalho marcou presença em sete álbuns da Banda do Casaco e recentemente foi visto a acompanhar a cantora Amélia Muge na sua última digressão.
Destes 30 exemplares prensados, fica a esperança de que alguns cheguem às mãos de quem eventualmente possa estar interessado em editar este trabalho. Para já, não existe qualquer certeza, mas apenas um interesse vago manifestado por pessoas como o engenheiro de som José Fortes ou Nuno Rodrigues, da MVM, antigo companheiro de Celso na Banda do Casaco. “É o meu manifesto, para mostrar que estou vivo e a fazer coisas”, desabafa Celso de Carvalho.
Problemas de saúde atrasaram a distribuição de “Celsianices”. “Um ‘bad timing’ absoluto”, agravado por dificuldades com o texto do livrete, com um desenho da autoria do próprio Celso quando tinha cinco anos. Os temas de “Celsianices” abrangem um período compreendido entre 1972 e 1995, tendo a maioria sido composta nos últimos quatro anos. “É um tipo de composições que nunca consegui meter nos Plexus nem na Banda do Casaco porque não se adaptavam muito bem. Ficaram sempre na prateleira. “Por feitio ou por ter uma vida muito ocupada, a sua música foi sendo adiada, em termos de projecção pública. O computador surge como uma maneira de se autonomizar, sem que tal implique que Celso tenha esquecido as suas raízes, pop e jazzísticas. “Tento fugir ao som que eles me impingem no programa, fazendo, por exemplo, sobreposições várias, alterações de timbre ou glissandos com o botão de ‘portamento’, equivalentes ao que faria no violoncelo.”
Essa abordagem orgânica do som é uma das características mais interessantes de “Celsianices”, álbum nem sempre fácil mas sem dúvida preocupado em escapar ao exercício de estilo e ao hermetismo, evidenciando uma espécie de “swing” electrónico que se vislumbra em músicos como Wayne Horvitz, teclista e companheiro de longa data de John Zorn, ou nos Weather Report, que Celso refere a propósito de “Ah, bom”. O tema de abertura, “Figurante da vida”, inspirado pelos Genesis dos anos 80, entraria facilmente nas rotas do éter radiofónico. “Celsianices” cria ainda uma aura autobiográfica, em temas rotulados como “Celsinho” e “Megacelso”. “Não é narcisismo”, garante o autor, mas apenas uma reflexão em torno de uma vida, desde a infância, vocacionada para a música, desde a filtragem de melodias ouvidas em criança, em “Celsinho”, a um dos primeiros temas compostos e gravados digitalmente, “Megacelso”, onde se concentram, quase até à saturação, sons e direcções musicais díspares. “Celsianices” inclui-se no grupo dos não alinhados da música portuguesa. Cabe aos ouvidos inteligentes da indústria fazerem-no chegar aos ouvidos inteligentes do público. A música isenta de compromissos exige-o.

Homens com centro na bateria [Tim Tim Por Tim Tum]

Sons

5 de Dezembro 1997

Tim Tim por Tim Tum na sua estreia discográfica

Homens com centro na bateria

“Diálogo de Baterias” é o álbum de estreia dos Tim Tim por Tim Tum, quarteto de bateristas formado por José Salgueiro, Acácio Salero, Alexandre Frazão e Marco Franco. Quem assistiu ao seu concerto realizado na Primavera passada no CCB terá reparado na forte componente cénica e lúdica do grupo, algo impossível de passar para uma gravação. A questão foi contornada com o recurso a uma faixa interactiva em CD-ROM para PC-Windows que inclui imagens de actuações ao vivo do grupo, às quais se acede através de uma espécie de jogo.
A oportunidade para a gravação do disco surgiu na altura em que se encontrava em Portugal o baterista norte-americano Jim Black – acompanhante habitual do contrabaixista português Carlos Bica e músico de créditos firmados na cena jazzística internacional –, convidado para um “workshop” com os bateristas dos Tim Tim. Foram juntos para o teatro da Malaposta, onde estiveram dois dias a trabalhar. “Senti que havia ali uma forma espontânea do que estava a acontecer e pedi os meios para gravar”, explica José Salgueiro, principal força impulsionadora deste projecto único em Portugal. “Gravou-se como se grava um disco de ‘jazz’, um disco de ‘takes’, tocado em tempo real com o técnico de som junto a nós, com a mesa e os gravadores na borda do palco. Criámos um ambiente, carregámos no “rec” [“record”, gravar] e estava a andar.”
Disco de bateristas, por oposição a um disco de percussionistas, “Diálogos de Bateria” constrói-se a partir de um respeito mútuo entre todos os músicos participantes e da sua capacidade para se “ouvirem uns aos outros”. “Não tentamos sacar malhas uns aos outros”, garante José Salgueiro, para quem “Tim Tim por Tim Tum é igual a comunicar”. Representou ainda a possibilidade de explorar um instrumento, a bateria, do qual andara arredado nos últimos tempos. “Sempre fui baterista, toquei bateria nos Trovante durante oito anos. Depois, quando o grupo acabou, houve uma altura em que comecei a ser requisitado como percussionista. De repente dei por mim sem trabalho na bateria”, diz José Salgueiro, baterista de gema mas que nos últimos anos se tem notabilizado como percussionista em grupos como os O Ó Que Som Tem, de Rui Júnior, que abandonou recentemente, ou nos Gaiteiros de Lisboa.
“Diálogo de Baterias” tem sabor a “jazz”. Alimentado pela improvisação. Um dos temas, “um verdadeiro diálogo de baterias, sobre um ritmo típico do Max Roach”, é dedicado a este baterista, uma das lendas vivas do jazz que, de certa forma, foi também responsável pela génese do grupo. “Fiz um ‘workshop’ com ele e o seu grupo, só de percussionistas, os M’Boum, em Barcelona. Foi um estalo. A experiência repetiu-se em Portugal, na Gulbenkian, desta feita sem o grupo, e foi aí que se decidiu fazer a coisa com músicos portugueses. O Max Roach falou connosco e pôs-nos a tocar, dando-nos pistas musicais, mais do que ensinando-nos pormenores técnicos. Os Tim Tim germinaram nessa altura na minha cabeça.”
No horizonte do grupo perfila-se a hipótese de realização de uma série de espectáculos no estrangeiro. “Há imenso espaço para os Tim Tim”, diz José Salgueiro. “Para já, começámos a trabalhar com a companhia de dança do Paulo Ribeiro, na mesma peça de percussões com as mãos e o corpo que fizemos no CCB, só que agora também dançamos, eu e o Marco Franco.” Além disso, já existem contactos no Brasil, Bélgica e talvez nos Estados Unidos.
Neste momento, além dos Tim Tim por Tim Tum, José Salgueiro reparte a sua actividade pelos Gaiteiros de Lisboa, pelo projecto “Suite da Terra”, com Carlos Barreto e Mário Delgado, uma tentativa de recriação original da música tradicional, “com linguagem de improvisação”, que sairá proximamente em disco, e pelo quarteto de João Paulo Esteves da Silva, com o qual irá também gravar em breve. Quando chegar a Expo-98, José Salgueiro terá em mãos espectáculos com os Tim Tim, com os Gaiteiros e com João Paulo Esteves da Silva, além de um outro girando em torno do adufe. “É um instrumento sobre o qual, curiosamente, não percebo muito. Vou ter que pesquisar para fazer um espectáculo de percussão em que o adufe seja a estrela.” “Já tenho uma agenda nova e ando a ver se consigo conciliar estas coisas”, desabafa com satisfação José Salgueiro, um músico para quem o ritmo é uma paixão.

In The Nursery - Asphalt

Sons

5 de Dezembro 1997
DISCOS – POP ROCK

In the Nursery
Asphalt (7)
In the Nursery Corporation, import. Symbiose
“Asphalt”, 15 temas de “Optical Music” para a banda sonora do filme com aquele nome realizado por Joe May, traz de volta os antigos militantes da causa gótica, agora com uma postura mais serena e ambientalista a enquadrar o gosto de Klive e Nigel Humberstone pelo classicismo e pela electrónica das sombras. O tempo limou a batida marcial, colocando no lugar do rufo dos tambores programações discretas destinadas a pôr em relevo o lado narrativo da música. Numa área sobrecarregada e pouco aberta à inovação, como é o das bandas sonoras, os In The Nursery conseguiram resolver a eterna questão entre a submissão às imagens e a livre criatividade. Expressionista, por vezes violenta, como em “Metropole”, romântica, no culto de uma idade de ouro em que as forças do cosmos e as emoções comandavam a composição das formas, quase sempre profundamente triste, a música de “Asphalt” demonstra uma seriedade, uma coerência de propósitos e uma justeza instrumental – no equilíbrio entre o lirismo do piano, as várias simulações orquestrais e os suaves esqueletos electrónicos – que ultrapassam as velhas obsessões do gótico pela morte e pela decadência. Só é pena que, por um momento, os In The Nursery se tenham deixado levar pela tentação da “tendência”, sacrificando a unidade do disco à frivolidade rítmica de “Precious”, onde uma batida “trip-hop” surge totalmente a despropósito.

L@N - L@N + Wabi Sabi - Wabi Sabi

Sons

5 de Dezembro 1997
DISCOS – POP ROCK

Electrões em mutação

L@N
L@N (8)

A-Musik, distri. Matéria Prima/Ananana


Wabi Sabi
Wabi Sabi (7)

A Alemanha vem sendo palco de alguns dos mais interessantes projectos de música electrónica dos últimos tempos. Basta recordar a obra recente de grupos como os Oval, Mouse on Mars, Microstoria, Kreidler ou To Rococo Rot, todos eles geralmente conotados com o pós-rock, para se compreender que nunca se desfez a cadeia cujo elo inicial remonta à geração dos anos 70 do “krautrock”. As noções associadas a este tipo de música alargam-se na perspectiva da editora alemã A-musik, para a qual gravam, além dos L@N e dos Wabi Sabi – cujos primeiros trabalhos acabam de chegar ao mercado português –, os F.X. Randomizer, com ligações aos Microstoria.
No caso dos dois primeiros grupos citados, as respectivas propostas diferem nos diferentes enunciados, tanto estéticos como ideológicos, de uma música que, de uma forma geral, se designa por “electrónica”. Os L@N, Rupert Huber e Otto Müller, dividiram as gravações do seu disco de estreia pelo estúdio e por registos de palco. Em termos sonoros, as diferenças são mínimas, já que a música resulta de uma manipulação exaustiva das máquinas e dos seus automatismos, num registo de abstracção que, uma vez mais, remete para as propostas pioneiras dos Cluster. Todos os temas, num total de sete, ostentam a designação L@N, seguida por um número ou uma espécie de patente.
Se os Cluster são o pilar, o carácter impiedoso e sequencial desta música que dispensa qualquer tipo de intervenção das emoções humanas remete, de igual forma, para os To Rococo Rot ou para os espanhóis Esplendor Geometrico. Embora evidenciando sempre marcas que o tornam indissociável dos seus meios de produção, o som consegue ter elasticidade suficiente para manter os acontecimentos musicais em constante mutação, numa escala cuja nitidez contrasta com as metamorfoses subliminares dos Microstoria. Música palpável, apoiada na matemática e na irredutibilidade dos estímulos sensoriais a que recorre, “L@N” contextualiza sem desvios uma certa paranóia urbana e contemporânea, conduzida por uma moral que, nascendo da tecnologia, não deixa de ser idealista. As máquinas também sonham?
Os Wabi Sabi não serão tanto um grupo como um dos múltiplos projectos saídos da mente distorcida de Markus Schmikler, cabeça pensante de bandas como os POL, Kontakta e Microstoria. O mundo em que se movimentam as partículas sonoras de “Wabi Sabi” (dois termos que expressam o poder artístico compreendido “entre o silêncio e o ‘decay’”) é o da música encarada, em primeiro lugar, como um espaço aberto a acontecimentos acústicos ou psicológicos, programados de acordo com uma lógica de contornos pouco perceptíveis.
O primeiro tema, “Wabi sabi”, é uma “composição espacial” para dois canais que evoca a música de computador de François Bayle. Sobre uma trama de “white noise” obsessivo, nascem e morrem detritos radiofónicos, intercalados por estática pura, tornando a audição quase penosa. O segundo tema, “Param”, igualmente desenhado para dois canais, redimensiona a música de uma composição mais extensa, “Drift/Dense”, feita em 1995, sendo os parâmetros sonoros sensivelmente os mesmos de “Wabi sabi”. As “drones” tornam-se, todavia, mais suportáveis, ganhando uma pulsação que chega a dar a ilusão de que nelas habita qualquer coisa vagamente parecida com a vida. Um comboio avança do nada, esmagando o som à sua passagem. Imaginamos formas vagas e obscenas a dançarem no escuro, formando um ente composto por uma acumulação de peças autónomas, animadas de um perturbante movimento. Já perto do fim, a loucura instala-se e uma voz humana dissolve-se no miasma electrónico. A máquina dos L@N parece o paraíso, comparada com o lugar pantanoso, onde o cérebro se afunda, de “Wabi Sabi”.

Vários - Egypt: Music Of The Nile From The Desert To The Sea + Vários: Echos Du Paradis: Sufi Soul

Sons

5 de Dezembro 1997
DISCOS – WORLD

O paraíso entre o deserto e o mar

Vários
Egypt: Music of the Nile from the Desert to the Sea (9)

2xCD Virgin, import. Symbiose

Vários
Echos du Paradis: Sufi Soul (10)

2xCD Network, distri. Megamúsica

A chamada “world music” está para a música étnica como o jardim está para a floresta. A autenticidade, por vezes selvagem, em contraste com a sofisticação e o apuro formal. Nos últimos anos tem-se assistido à proliferação de ambas no panorama editorial, de discos, livros, revistas e espectáculos ao vivo, da revitalização dos clubes ao aumento dos grandes festivais. Uma das questões que se colocam é a de saber se é a música étnica – necessariamente conotada com determinadas especificidades espirituais, culturais, sociais e geográficas – que conduz o potencial auditor para o tipo de produto associado à “world music” ou se, pelo contrário, o caminho se processa no sentido inverso. Estamos em crer que a segunda hipótese será a mais correcta. É provável que os discos dos Chieftains, de Youssou N’ Dour ou das Zap Mama sejam os primeiros a ocupar as prateleiras em casa do melómano interessado em conhecer novas latitudes musicais. Daqui nascerá, ou não, o interesse pelas raízes genuínas que sustentam esses nomes mais mediáticos que, cada vez com mais força, se vão insinuando nos “tops” de vendas.
Faz, desta forma, todo o sentido que no último par de anos tenham surgido editoras decididas a investir num tipo de produto cultural menos imediato e mais contextualizado, para a chamada música étnica, tornando-a num objecto cultural não menos sofisticado do que as normais edições de “folk”, “world”, “fusão”, etc.
Deste grupo de editoras, a Network e a Ellipsis Arts... foram as primeiras a ter distribuição nacional, juntando-se-lhes agora a multinacional Virgin, sempre atenta às movimentações e motivações do mercado. Caracterizam-se estas edições, em geral, por conjuntos de dois ou mais CD, embalados numa apresentação invariavelmente luxuosa que inclui detalhados livros de apresentação, em geral bilingues ou trilingues, contendo textos informativos e fotos de inultrapassável qualidade.
“Echos du Paradis: Sufi Soul”, o mais recente lançamento da clássica Network, depois de “Desert Music” e “Road of the Gypsies”, é um compacto duplo (72m00 + 61m43) com exemplos das diversas tradições “sufi” do planeta, da Ásia Oriental ao Norte de África. O “sufi” é o asceta, por vezes anónimo, que dedica toda a sua vida à descoberta de si próprio e da divindade, dispensando os intermediários, ou seja, as religiões oficiais. É nesta medida que se pode comparar o místico “sufi” ao gnóstico medieval, também ele numa procura do contacto directo com o Divino. A música, enquanto movimento puro, constitui instrumento privilegiado para aceder a esse estado de transcendência. Música ritual, de elevação. Música de condução e êxtase, mas também música de dança (prática indissociável da ascese, para os “dervishes” do Norte de África, no seu rodopio em torno de si próprios até alcançarem o transe que os atira para a outra dimensão). Dança do corpo e da alma. Por isso, faz todo o sentido referirmos a equivalência entre a música “sufi”, ou dos “sufi”, com a “soul music”, a “gospel” e os espirituais negros, os quais partilham idêntico objectivo de conduzir o corpo e alma para a liberdade e para a alegria.
São, no total, 21 temas provenientes de regiões como o Irão, Damasco, Tajiquistão, Afeganistão, Marrocos, Turquia, Paquistão ou o Uzbequistão, recolhidos de muitas e variadas fontes, do Smithsonian Institute e Arquivos Internacionais de música popular, passando por diversas edições discográficas locais. Em “Sufi Soul”, os alaúdes, as percussões, as cordas, os sopros e, principalmente, as vozes, servem um propósito comum: a elevação acima do mundo das aparências. É nesse lugar, ao qual se pode aceder através de alguns sonhos, que se encontra a forma mais pura de beleza. Nusrat Fateh Ali-Khan, provavelmente o único artista presente nesta obra que é conhecido no Ocidente, sabia-o. Enquanto cantava.
Ao leitor, propomos que comece pela audição de “Durnalar sema’i“ (“a dança dos 12 crânios”), de Ashik Müslüm Sümbül, da Anatólia, Turquia. Ashik, “aquele que está apaixonado”, nome dado na Anatólia aos cantores tradicionais místicos, canta e toca “saz” (alaúde de braço longo), num crescendo arrebatador. Deixem fugir a alma, deixem dançar o corpo, deixem dançar a alma, deixem fugir o corpo. Além da música, está a Música. Escutemos ainda a derradeira lição, na conversa entre o mestre Jalâl al-Dîn e um discípulo céptico, com a mente fechada: “Não gosto do ruído do ranger das portas!” Réplica do mestre: “Eu ouço o som das portas quando se abrem, enquanto tu ouves o som das portas fechadas.”
“Egypt – Music of the Nile from the Desert to the Sea”, embora igualmente uma obra excepcional, não ostenta com a mesma evidência a espiritualidade e a dimensão do sagrado que brota, de forma quase violenta, de “Sufi Soul”. Agora é tempo e acompanharmos as diversas tradições musicais que eclodiram ao longo da História no rio Nilo, do deserto do Sara ao delta no Mediterrâneo, de povoações como Abu Simbel ou Ibrim, junto à nascente, até ao Cairo, cadinho de múltiplas influências, rurais e urbanas. É igualmente uma viagem, mas marcada pela areia, pelo sol e pelo mar. Pela inconstância das dunas, pela sensualidade ou pela inclemência do astro-rei, pela ilusão da miragem e a paz momentânea do oásis, pelo descanso final das ondas ou pelo fito do lucro, na chegada à cidade, onde tudo se compra e tudo se vende, as coisas e os corpos. A improvisação (“taqasin”) e a prece, os sons de contenção e as danças, por vezes confundindo-se com a convulsão, guiam o peregrino, numa rota onde a dor se confunde com o prazer. Os cantores do Nilo, os berberes, os beduínos, as mulheres e os homens a sós com o seu destino, marcham como um ente grandioso – o grande Sul em demanda do seu Graal.
No segundo compacto, já despertamos de súbito para o mundo exterior, das vozes discordantes e das muitas coisas separadas. É a electricidade que surge, e com ela uma outra dança, plena ainda de tradição e de autenticidade, mas marcada já pela tensão dos nervos. A música “rai”, incrustada nos hábitos das novas gerações, irrompe em remisturas de “Halat Al-Ânuâr”, por Amid, e de “Yû’ud Wa Yaghlef Wa Êstanâh”, por Gâber al-‘Azab. Programações. Tecno. A música do Alto Nilo contaminada pelos fumos e pelas solicitações do Cairo. Tempo de festa, na nova síntese da música “núbia” com a música árabe, em “Nahawand”, por Sharkiat.
E se, em “Sufi Soul”, Nusrat Fateh Ali-Khan era a estrela, aqui encontramos, já perto do final, Ali Hassan Kuban, “o patriarca da música ‘núbia’ do Cairo”. Mas assim como o mundo se move, também a música retorna à origem, para de novo se lançar em direcção ao futuro, numa espiral interminável, através de um cântico ritual dos “Bechari”, a última das tribos nómadas do deserto, em errância eterna entre o Nilo e o Mar Vermelho. Fica a dúvida. O velho filósofo grego Heraclito tinha ou não razão quando afirmava: “É impossível banharmo-nos duas vezes na mesma água do rio”? Experimentemos ouvir outra vez estes dois discos desde o princípio.

12/06/2009

The Doors - The Doors Box Set

Sons

28 de Novembro 1997

A última mordidela do Rei Lagarto

The Doors
The Doors Box Set (9)

4 x CD, Elektra, distri. Warner Music

Uma caixa cheia de pólvora, de beijos envenenados. Uma caixa cheia de América, cheia de incêndios. Uma caixa que faz travar o tempo, celebrando uma vez mais a cerimónia do lagarto, num ritual inextinguível. “The Doors Box Set” é a peça que faltava na discografia do grupo liderado por Jim Morrison com a sua loucura. “Cuidado, é mais um passo para o interior, através da porta”, avisa Michael Ventura no seu texto de apresentação: “A Little game called Go Insane” (“um pequeno jogo chamado ‘torna-te louco’”).
Vamos por partes. Os compactos numerados com os números um e três, respectivamente intitulados “Without a Safety Net” e “The Future ain’t what it Used to be”, contêm gravações ao vivo, “demos” e versões alternativas. Cada tema é acompanhado, no livro de textos, de informação fornecida pelos três elementos vivos do grupo, Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore. Se algum do material ao vivo sofre de alguma qualidade em termos de captação de som (ruído de fundo, por exemplo), já os temas gravados em estúdio permitem curiosas comparações com os originais, quando não se tratam de inéditos. Ao vivo, destaque para a versão endemoninhada de “The soft parade”.
Inéditos são “Who scared you” (este um semioriginal inspirado na troca de correspondência entre William Burroughs e Allen Ginsberg, sobre os efeitos do alucinogénico “Ayahuasca”, originalmente composto para “The Soft Parade”, mas que só veio a aparecer na compilação “Wird Scenes inside the Gold Mine”) e “Rock is dead” (das sessões de “Morrison Hotel”), ambos registados nos estúdios Elektra em 1969, “Whisky, mystics and men” e “Orange county suite” (estúdio, 1970, colagem da voz e do piano de Jim Morrison com posterior acompanhamento instrumental pelos restantes Doors), o “Adagio in G minor”, de Albinoni (estúdio, 1968), “Hello to the cities” (ao vivo, 1967 e 1970), “Black train song”, “I will never be untrue”, “Rock me” (de Muddy Waters, os “blues”) e “Money” (de John Lee Hooker, mais “blues”), “Someday soon”, “Mental floss”, “Adolph Hitler” (ao vivo, 1970), “Go insane” (demo, 1965) e “Tightrope ride” (ao vivo, 1971). O álbum número dois recolhe registos ao vivo do mítico espectáculo realizado no Madison Square Garden, de Nova Iorque, em 1970, incluindo uma versão de “Gloria” de Van Morrison. Finalmente, o quarto e último compacto do pacote inclui selecções de temas favoritos de Manzarek, Krieger e Densmore, constituindo uma espécie de “best of” onde se incluem praticamente todos os temas mais conhecidos dos Doors, como “Light my fire”, “L.A. woman”, “Shaman’s blues”, “Love me two times”, “When the music’s over”, “The unknown soldier” e “Riders on the storm”, entre outros.
No capítulo dos “demos” e versões alternativas, encontramos no primeiro compacto o lado mais introspectivo dos Doors, em “Hyacinth house”, “End of the night” e numa incontornável versão de “Queen of the highway”. No terceiro, temos “Go insane”, um “ragtime” obsessivo e martelado do piano de Manzarek, sobre o qual o “rei lagarto” procede a mais um dos seus exorcismos, “Summer’s almost gone”, uma balada de despedida, antecipada de dois anos, do Verão de 1967, com um Jim Morrison na sua veia mais pungente, e o clássico “Hello I love you”, numa versão mais condensada e “bluesy” do que o original contido no álbum “Waiting for the Sun”.
“The Box Set” é, pois, o derradeiro ritual de catarse de uma banda e de um homem soprados pela transcendência. A filosofia do poder, de Nietzsche, e a deusa indiana da destruição transformadora, Shiva, confundem-se nessa estrela cadente que foi Jim Morrison, um dos últimos “xamãs” do século XX.

Jon Anderson - Earthmotherearth

Sons

28 de Novembro 1997
DISCOS – POP ROCK

Jon Anderson
Earthmotherearth (7)

Ellipsis Arts..., distri. Megamúsica

“Chega sempre um tempo em que se pode fazer o que se quer. Esse tempo chegou para mim. Cantar com a Natureza e ouvir a Natureza cantar comigo é, em si mesmo, uma verdadeira realização do meu amor pela vida e pela música.” Estas palavras, assinadas por Jon Anderson na contracapa deste seu primeiro trabalho para a Ellipsis Arts..., editora até aqui vocacionada para a “world music”, resumem toda a atitude perante a vida que nunca deixou de estar presente ao longo da carreira do antigo vocalista dos Yes. “Earthmotherearth” é um disco que fará sorrir algumas pessoas. Porque vivemos em tempos em que o amor se tornou coisa ridícula. E este é um disco de amor. Um acto de amor com a Natureza. Jon Anderson canta aqui com os pássaros que vêm comer à sua porta. Canta com o vento. Toca uma harpa que se confunde com as folhas e as vibrações de uma árvore. Grava a voz do seu filho a brincar com um gato e os miados do gato. Jon Anderson encontrou a serenidade, a forma da luz. As nervuras da folha presas a um pequeno coração que aparecem desenhadas na capa protectora do disco (em papel reciclado) simbolizam uma vida, a sua vida. Trata-se de um álbum gravado em casa, inteiramente acústico, depurado ao máximo, apenas voz, guitarra, percussões, harpa e os sons da Natureza, os sons da Vida, passados directamente para o computador. É preciso não esquecer que também sentimos. É preciso sentir o que Jon Anderson nos pretende dizer quando nos transmite a sua felicidade, no comovente tema de abertura, “Time has come”: “Toda a gente está a olhar, toda a gente pode ver, toda a gente está à espera de ser livre. O tempo chegou, tempo para nos prepararmos, tempo para o amor.” Sorriam...