20/11/2008

Né Ladeiras - Alhur

Pop Rock

26 de Julho de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Né Ladeiras Alhur

Como foi

A “Alhur” fica longe daqui. “Sempre tive ideia de fazer uma coisa que falasse do lado de lá.” Né Ladeiras explica desta forma a génese deste seu maxi-single onde as referências usuais da música pop fazem pouco ou nenhum sentido. “Costumava dizer que tinha prometido a mim própria fazê-lo, na outra dimensão”. O disco surgiu na sequência de viagens por outras terras e, muito provavelmente, de caminhadas de outro tipo. Quando regressou da Suécia, um dos países por onde andara, trazia um sonho no corpo de viagem. Foi na mesma altura em que os Heróis do Mar provocavam por cá um tremor de terra nos meios musicais, com o sei disco de estreia, dos hinos de saudade e de bandeiras. “Quando cheguei, o Nuno Rodrigues [antigo companheiro de Né na Banda do Casaco] mostrou-me o disco. Adorei o trabalho deles. Já tinha assinado contrato com a Valentim de Carvalho, disse-lhes que o Miguel Esteves Cardoso estava a fazer as letras e que eu já escolhera os músicos: os Heróis do Mar. Lembro-me do Pedro de Vasconcelos me perguntar se eles tinham alguma coisa a ver com a minha música. Respondi-lhe que sim, que tinham tudo a ver. A começar pelo espírito em si.” Com Miguel Esteves Cardoso, o encontro foi casual, nas escadas da sede da Valentim. Apresentaram-se, simplesmente. Exprimiram uma admiração mútua. E partiram à aventura.
Né Ladeiras recorda das páginas do seu diário o primeiro dia de gravações: “O ponto de encontro foi na Rádio Comercial, às dezoito horas. Só eu, o Paulo Gonçalves e o Ricardo Camacho é que comparecemos no ‘local do crime’. O Miguel já se encontrava lá para dar o tiro de partida. Os outros encontraram-se connosco no Ouriço, um restaurante em frente à estação da CP de Paço de Arcos. Chegámos ao estúdio já passava das oito da noite. Mas também não fez muita diferença, porque o técnico chegou com meia hora de atraso mas cheio de boa disposição. Últimos preparativos para daqui a pouco arrancarmos para o primeiro alvo: ‘Holoteta’…”
As sessões de gravação duraram “aí uns quinze dias”. Quinze dias para imprimir no vinilo quatro estações de um rito de passagem. No estúdio, criou-se um ambiente especial. “Havia alturas em que o Pedro de Vasconcelos queria torná-lo mais íntimo. Então ou apagava as luzes por completo ou deixava acesa só uma. Não havia rigidez na postura dos músicos. Lembro-me de o Paulo estar a tocar acordeão, de Pedro Ayres estar a tocar baixo, pareciam figuras retiradas de livros, de desenhos, muito etéreos.”
As canções de “Alhur”, no espírito dos sons e dos textos, respiram com um ritmo próprio, dos primórdios da vida, se calhar. “Quis dar uma ideia às pessoas de como tudo isto se inicia. No ‘Húmus verde’, o tema das águas, pretendi mostrar algo que é verdade, que nós todos iniciamos a nossa vida num saco de águas, dentro do ventre das nossas mães. Só que as coisas passam-se antes, somos nós que escolhemos em que saco de águas é que queremos viver durante aqueles nove meses. É um mundo muito aquático, um mundo que, em termos sonoros e de movimentos, deve ser muito calmo. Quando mergulhamos numa piscina, os sons que sentimos do exterior vêm todos amplificados de uma outra forma. É assim que os mestres dizem que os sons e os movimentos são feitos – do lado de lá. Quando os bébés nascem, nem sequer sabem respirar pelos pulmões. É preciso dar-lhes aquela palmadinha!...”
“Alhur” dá essa palmada, na passagem de um meio para outro. É um disco que fala das águas, todas as águas, das águas-régias do pensamento às águas salgadas dos oceanos e das lágrimas. E há uma fada chamada “Holoteta” que Né Ladeiras foi buscar a um livro de ficção científica com o título “O Baile das Estrelas”. “É o nosso anjo da guarda ou a fada da Luz, do Caminho do Bem. Mas é assim uma fada já bastante evoluída. Nós temos a ideia da fada com umas vestes compridas e uma varinha de condão. Provavelmente poderá ter um computador à frente.”
A capa do disco – considerada, em 1982, “capa do ano” – aponta o caminho que se deve seguir para chegar a “Alhur”: uma imagem de um postal dos anos 20, do Caramulo ao pôr-do-sol. “Comprei-a num alfarrabista na Rua do Alecrim. Andava à procura de uma imagem que pudesse ser sugestiva para aquilo que acho que vai ser a passagem daqui para lá. Há pessoas que dizem que é um túnel. Eu acho que é antes um caminho assim, com curvas e muitas nuvens. Foi reproduzida tal e qual.” Passados 13 anos sobre a edição do disco, de que lado estamos, afinal? Né Ladeiras está já do outro lado. Atrás dos montes. A falar uma língua diferente.

Como é

O outro lado existe. Fica “Alhur” na curva de um caminho. No alto de uma serra que pode ser no Caramulo, mas, melhor ainda, de Sintra. Né Ladeiras curvou esse caminho, subiu essa serra, colou asas de água na terra em fogo. “Alhur” fica invisível quando nele se procura uma bússola ou a rosa-dos-ventos. Porque a direcção e o mapa variam e de cada vez levam-nos para lugares diferentes, para onde os impelem os textos de Miguel Esteves Cardoso (MEC) e os sons da própria Né. Mais invisível fica quando o queremos comparar com o que, por cá, se tinha feito antes e se fez depois na música popular. “Alhur” não encaixa em lugar nenhum. Escorre como areia entre os dedos. Ou água da chuva que não se deixa beber. Ouve-se como a um silêncio. Vai-se por lá. “Húmus-verde” chora nas águas-furtadas sem janelas onde MEC o fez desaguar. Do outro lado fica o céu. Do outro lado do disco. “Holoteta” voa nas asas de uma fada-borboleta. Nos saltos altos das percussões. “Essência” é a essência de uma canção. Das que se sonham em azul num cabaré vazio no meio das estrelas. Com um acordeão gemendo de aonde? De “Alhur”, por certo, o tema final que está além. Onde as amarras do tempo se rompem e a voz de Né nasce e flui sem precisar de palavras. Estendendo a mão e a alma aos cantares tradicionais do Norte, para os levar como a uma criança para o lado de lá dos montes, a um futuro que não existe porque, para uma criança, apenas há e conta o presente. No texto de promoção distribuído na época aos meios de informação, um excerto da “Chronologia ou Reportório dos Tempos”, do capítulo “Do som e estrondo, ou música, que cuidarão os antiguos ser causado com o movimento dos ceos”, pode ler-se o seguinte: “Muito deu que cuidar aos philosophos antiguos se por ventura os ceos com seu movimento causavão algum som e doce consonância a armonia de música, porque consideravam que como o som se causa do tocamento movimento tardo, ou apressado, com que dous corpos se roção hum com outro, donde nace neste concertado acidente, que chamamos som, o qual recebido no ar como em subjecto se vai multiplicando por elle, atê nossos ouvidos, que são os orgãos com que a alma percebe o tal objecto e se faz aquillo que chamamos ouvir”. “Alhur” é esse “concertado acidente” dos “ceos”.

1 comentário:

Anónimo disse...

E agora que do passado se fez presente, mais perceptível é a intemporalidade de um tempo que se ultrapassa a si mesmo... Marcado por esta voz da história, com história e que, certamente, ficará na história. Que as vagas tragam mais e mais do que não se quer perder: Né Ladeiras.