22/10/2014
Novas fadas [Mafalda Arnauth, Cristina Branco, Kátia Guerreiro, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira]
Y
20|JULHO|2001
música|fado
novas
fadas
Cinco
vozes fabulosas, cinco herdeiras de Amália que dela assimilaram a força
interior e para além dela apresentam originalidade, e nuances de um brilho que
é também mistério.
A
história começa há muitos anos atrás, perdendo-se na noite dos tempos. Mas veio
Amália e ficou a perceber-se melhor o que era o fado – um astro de duas faces,
noite e dia, que nela se confundiam num só rosto. Esfinge. O século XX foi o
século de Amália. Havia Amália, a sua voz, os seus discos, os seus espetáculos,
a sua presença ofuscante. Sobrava pouco para os restantes.
Com o desaparecimento físico de
Amália Rodrigues, por coincidência ou por ditame do destino (o que vai dar no
mesmo), outras vozes femininas despontaram. Vozes fabulosas. Tão orgulhosas de
si e da sua diferença como humildes no reconhecimento do que Amália representou
na escolha que também elas fizeram, de seguir essa “estranha forma de vida”,
bem como na sua afirmação como fadistas.
Escolhemos, para ilustrar o presente
radioso do fado cantado no feminino, cinco nomes: Mafalda Arnauth, Cristina
Branco, Kátia Guerreiro, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira. Outras há: Mariza,
Teresa Tapadas, Maria Ana Bobone. Mas aquelas cinco possuem um toque e um
brilho especiais. O toque na essência do fado e a versatilidade da alma que se
incendeia a este toque.
Dez anos separam a mais velha,
Cristina Branco (28 anos), da mais nova, Joana Amendoeira (18 anos). Mafalda
Arnauth tem 26, Kátia Guerreiro, 25, Ana Sofia Varela, 24. Encontram-se em
fases distintas. Cristina Branco, cuja carreira tem vindo a ser construída na
Holanda, já leva cinco álbuns gravados, o último dos quais, “Corpo Iluminado”,
é o primeiro com distribuição nacional, pela Universal. Custódio Castelo,
guitarrista de notáveis recursos, tem sido o seu tutor artístico. José Fontes
Rocha, Jorge Fernando, Joel Pina e Miguel Carvalhinho, guitarristas e violistas
históricos, participam como convidados.
Mafalda Arnauth, uma das novas vozes
apadrinhadas por João Braga, depois de um álbum de estreia, “Mafalda Arnauth”,
há dois anos, com produção de João Gil, projeta-se a grande altura no novo
“Esta Voz que me Atravessa”, ainda no selo EMI, com a produção da dupla Amélia
Muge e José Martins. Kátia Guerreiro, em quem chegámos a ver uma sósia de
Amália, no espetáculo de homenagem à diva que a deu a conhecer ao grande
público, publicou o seu disco de estreia, “Fado Maior”, na Ocarina. Com Paulo
Parreira, na guitarra portuguesa. Embora mais nova, Joana Amendoeira já tem
dois discos na Espacial, “Olhos Garotos”, de 1998, e “(Aquela) Rua”, do ano
passado. Custódio Castelo toca guitarra no último. A produção pertence a Jorge
Fernando. Ana Sofia Varela só lançará o seu álbum de estreia em Setembro, pela
Popular. Para já, o CD-single de apresentação conta com a participação de
músicos como Mário Pacheco, José Moz Carrapa e Zé Nabo.
Qualquer destes discos tem outra
particularidade – uma apresentação notável, evidenciando o cuidado na
apresentação de um modelo estético que enobreça o objeto musical. São rostos e
corpos “iluminados”, parafraseando o título do álbum de Cristina Branco. Tão
iluminados como as vozes a que pertencem.
Grandes vozes, belas imagens,
compositores, poetas e músicos de nomeada.
Vão lançadas. Mas Amália continua a
ser o lampião, na rua escura, que as ilumina.
Sem fantasmas. Depois de Mara
Abrantes (que cantou aos três anos), José Barata Moura, “as músicas dos
desenhos animados”, Rui Veloso, Trovante e músicas tradicionais, do Norte, do
Minho e da Beira, de onde os seus pais são naturais, Mafalda Arnauth cantou
fado pela primeira vez antes de entrar para a faculdade. Não pela voz de Amália
mas pela de Teresa Salgueiro, dos Madredeus, onde sentiu “aqueles requebros” do
fado. Depois o “Cheira bem, cheira a Lisboa”, que cantava nas “festinhas”.
Nunca pensou em abraçar o fado como carreira. Mesmo quando a sua interpretação
de “Foi Deus”, no seu primeiro espetáculo “oficial”, no Teatro São Luiz, em
Lisboa, juntamente com outras novas vozes que então despontavam sob o
patrocínio de João Braga, se destacou como um dos momentos mais arrebatadores
da noite. Mudou entretanto de atitude. Hoje interiorizou essa tal estranha
forma de vida, “sem fantasmas”, mas também “sem ter tempo para férias, nem para
jantares, nem para encontros com amigos”, porque o fado é uma prioridade.
Cantou, de Amália, “Fadista louco”,
“Triste sina”, tudo fados “que não eram muito comuns e que Amália tivesse
privilegiado”. Mas também “Maria Lisboa” e, claro, “Foi Deus”. Nos espetáculos
continua a cantar “Sabe-se lá”. Reconhece: “Nenhuma de nós, aos vinte e poucos
anos, pode pensar competir com um percurso de vida como o de Amália”. Amália já
cá não está. “As pessoas já não dizem: lá vem mais uma pessoa para a
substituir”. “É preciso ter humildade e a noção das coisas”, diz Mafalda, para
quem não há “testemunhos a passar”.
Além de Amália, Mafalda gosta de
João Ferreira Rosa, Beatriz da Conceição, Maria da Nazaré, Mariana Alcoentro.
Dos novos destaca Camané – “preenche o tal arrepio que é fundamental no fado”.
Poetas: Manuel Alegre, David Mourão-Ferreira, Sophia de Mello Breyner…
E ela, Mafalda, que fadista sente
ser? “Sanguínea”.
“Quero transmitir às pessoas
primeiro aquilo que sinto, depois aquilo que componho, e já aqui se perde algo,
e a seguir aquilo que chega ao público, o que ele está a ouvir. Neste processo
o que me dá mais agonia é tentar saber como vou fazer a minha alma chegar às
pessoas”. Mais agonia ou menos agonia, Mafalda Arnauth pode estar tranquila – a
sua alma chega às pessoas.
Iluminações. Cristina Branco tem o
“Corpo Iluminado”, título do seu mais recente álbum, depois de “Cristina Branco
in Holland” (1997), “Murmúrios” (1998), “Post-Scriptum” (1999) e “Cristina
Branco Canta Slauerhoff”. Natural de Almeirim, foi na Holanda que a sua música
começou por encontrar maior aceitação. Situação que o novo disco parece querer
alterar.
Cantou fado pela primeira vez aos 22
anos, em Benfica do Ribatejo, numa festa de amigos. O “Ai Mouraria”, de Amália,
que conhecera quatro anos antes, através do álbum “Rara e Inédita”. Estreou-se
como profissional um ano depois, na Holanda, numa sala de Amesterdão “onde já
tinham estado José Afonso, a Amélia Muge…”. Não canta em nenhuma casa de fados.
“Nunca cantei”. De Amália, que “inventou tudo”, canta “quase todos os do Alain
Oulman, sobretudo aqueles que são menos fado”. Existe uma explicação para este
“menos fado”. É que Cristina Branco define-se como uma cantora de fado,
“revolucionária”, e não como uma fadista, na aceção mais tipificada do termo. Resposta
irónica a alguns Velhos do Restelo. “Há alguns anos, por altura do ‘Murmúrios’,
acharam um crime dizer-se que eu era fadista. Se fadista é a pessoa que está na
casa de fados, as toalhas aos quadradinhos, não tenho esse percurso… Houve quem
dissesse que para se ser fadista era necessário ter-se nascido em Lisboa e
cantar-se numa casa de fados…”
Dos novos aprecia Mariza, Amélia
Muge, Kátia Guerreiro e Camané. Poetas: Pedro Homem de Melo e David
Mourão-Ferreira. E as vozes de Sarah Vaughan e Billie Holiday.
Ainda Amália: “Já na fase da sua
decadência, quando corria o boato de que ela não gostava de ouvir cantar
mulheres, a sensação que isso me deixou foi de que se eu estivesse a começar
nessa altura nem sei se conseguiria prosseguir. Quando se venera um ídolo, e
ouvindo essas coisas, pensava que deveria haver alguma restrição…”. Mas
considera-se parte de um legado da grande fadista, com quem aprendeu “a contar
histórias, que é o mais importante”. O traço fundamental do seu caráter como
cantora é o romantismo.
Nada foi encenado. No hospital de
Évora, onde exerce medicina, cura os males do corpo. Com a voz cura os males do
espírito. Kátia Guerreiro, médica de profissão, canta o fado. Antes cantou num
rancho folclórico dos Açores, onde interpretou pela primeira vez “Amar, amar”,
com poema de Florbela Espanca, “que a Teresa Silva Carvalho cantava”, e no
grupo “Os Charruas”, passando ainda pela Tuna Médica de Lisboa. Em Outubro do
ano passado esteve no Coliseu dos Recreios, no espetáculo “Uma Vela por Amália”.
Deu voz a dois fados, de Amália: “Amor de mel, amor de fel” e “Barco negro”.
Teresa Silva Carvalho, Maria Teresa de Noronha e Camané, e os poetas Camões,
Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e “uma grande amiga”, Maria Luísa
Baptista incluem-se na lista das suas preferências.
Nessa ocasião, no Coliseu,
estarreceu pela voz e pela extraordinária semelhança física com a diva. Aceita
as comparações, mas esclarece que “nada foi encenado”: “Em relação às minhas
expressões, a minha forma de franzir as sobrancelhas, é a minha maneira de
estar no palco, de cantar, quando sinto não estou a pensar no que estou a
fazer, naquilo que as pessoas poderão estar a ver. Canto com o corpo inteiro,
se há coincidências ou não… nunca andei a observar a Amália… sempre cantei
assim… a única coisa que posso dizer é que sinto muito em mim a Amália quando
estou a cantar…”.
Define-se como “tradicionalista”:
“No fado, não se pode mudar nada. O que é, é. Depois há variações…”. “Fado
Maior”, o seu disco de estreia, mostra uma cantora “apaixonada” que canta “os
amores ardentes e os desamores, as paixões e das desavenças, o desânimo, a
luta, a solidão, a alegria”.
Um mistério. Das cinco, apenas Ana
Sofia Varela, natural de Santarém, ainda não lançou nenhum álbum. Mas não vai
ser necessário esperar muito. “Ana Sofia Varela” sairá em Setembro. Para já a
sua voz magnífica pode ser apreciada num single com dois temas, um deles, “Quem
canta na minha voz”, com letra de João Monge e música de Rui Veloso. Presença
regular no Clube do Fado, participou no espetáculo “Uma Vela por Amália”. Canta
desde criança. Começou por Amália e Nuno da Câmara Pereira, aprendendo cedo a
“dobrar a voz”. A participação, há três anos, no espetáculo “De Sol a Lua”
abriu-lhe as portas da profissionalização, depois de uma série de presenças no
concurso Grandes Noites do Fado. É uma das vozes convidadas do álbum “A
Guitarra e Outras Mulheres”, de António Chainho. Participou ainda numa das
edições do Festival das Músicas e dos Portos. Gosta de Lucília do Carmo, Maria Teresa
de Noronha, Teresa Silva Carvalho e, da nova geração, Kátia Guerreiro, Camané,
Joana Amendoeira. E de Amália, “demasiado grande” e aquela que lhe “abriu as
portas”. “Gaivota”, “Barco negro”, “Amor de mel…” são alguns dos fados que
continua a cantar, apesar de, recentemente, ter arriscado a escrita das suas
próprias composições. O disco é a realização de “um dos seus sonhos mais
fortes”. Embora considere que o fado não possa mudar muito – “o que muda são as
interpretações” – na disputa teórica que se vai travando entre tradicionalistas
e revolucionários, Ana Sofia Varela refugia-se, declarando-se “centrista!”.
“Tristeza”, “melancolia” e “alegria” são os principais estados de alma que a
levam a cantar. Não arrisca procurar mais fundo uma explicação para a música
que a arrebata: “O fado é um mistério”.
Joana Amendoeira é a mais nova. Mas
aos 18 anos já gravou dois álbuns, “Olhos Garotos” e “(Aquela Rua)”. Começou a
cantar aos 8, fados do Nuno da Câmara Pereira. Em casa ouvia Amália, João
Braga, Carlos do Carmo… Cantou na Grande Noite do Fado e em “Uma Vela por
Amália”. A partir daí nunca mais parou. Amália alimenta-a de “emoções”. Dela
canta de preferência “fados pouco conhecidos”. Lucília do Carmo, Maria Teresa
de Noronha, Carlos do Carmo, Hermínia Silva e Camané “alimentam-na” igualmente.
David Mourão-Ferreira e Pedro Homem de Mello voltam a ser citados como poetas
prediletos. Nos seus discos Joana Amendoeira esperam que as pessoas vejam que
“não está a imitar ninguém” e “uma fadista que canta vários sentimentos, além
da tristeza”. Aos 18 anos pode ser-se triste? Joana abre um sorriso largo,
luminoso. Estava dada a resposta.
Mafalda Arnauth,
Cristina Branco, Kátia Guerreiro,
Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira
Com
elas o fado reata o seu período de ouro.
Novos
fados. Novas fadas.
Jorge Palma - Jorge Palma [É Proibido Fumar]
Y
6|JULHO|2001
escolhas|discos
JORGE PALMA
Jorge Palma
Ed.
e distri. EMI-VC
9|10
O rugido do leão, o choro do palhaço
Vamos
lá agarrar nele e pô-lo de pé. Não, não o sexo, mas Jorge Palma. Compostura é o
que se exige ao cidadão… Ao músico, a esse, louvemos-lhe os excessos e
entreguemos-lhe a palma, quando os resultados têm a magnificência deste “Jorge
Palma”, que põe fim a um longo período de abstinência discográfica,
interrompida esporadicamente por aparições ao vivo nas quais o peso da boémia
tanto podia descambar no descalabro como fazer brotar a luz mais viva de uma
alma que arde no fogo do álcool, do céu e do inferno. Ao “slogan” “É proibido
fumar” impresso a letras gordas na capa responde o músico com o desprezo de
quem acende mais um cigarro e decide os caminhos da sua vida.
São 12 canções. Algumas delas no
limiar da perfeição. Depois da abertura, com “Dormia tão sossegada”, feito a
pensar nas rádios, Z. Z. Top à portuguesa, sem barba, “Tempo dos assassinos”
corta a direito e fundo como uma faca. Os “blues”, o sangue, o grito,
alucinação de lucidez. “Vivemos no tempo dos assassinos/Tempo de todos os
hinos/Ouvimos dobrar os sinos/Quem mais jura é quem mais mente/Vou arquitectar
destinos/sou praticamente demente”. Segue-se uma de social, “Sete (está-se tudo
a passar)”. Abrasileirado na forma. Dorido por dentro. A partir de aqui “Jorge
Palma” mergulha no oceano da noite, no lirismo mais pungente, nas melodias e
emoções de um mundo interior sem fronteiras, terno e selvagem. “Quem és tu de
novo?” é um clássico. Choro amortalhado na solidão. A orquestração clássica, o
piano desolado, a vocalização à deriva no destino de um tempo que passa e não
volta, canção de amor, enfim, entram num registo equivalente a “Over”, de Peter
Hammill. Existe, aliás, um paralelismo notável entre Jorge Palma e este músico
inglês, fundador dos Van Der Graaf Generator, que vem de longe. Como se ambos
seguissem caminho idêntico, em direção a um desconhecido comum. “Olhos de
Catarina”, outra canção notável, acentua a semelhança. Nos arranjos de piano,
nas deambulações da voz, na própria temática e arrumação poética e na
construção das melodias. Perturbante. Uma das sequências de “Duas amigas”
praticamente decalca Hammill e o final de violinos (pelos Corvos) toca de perto
“The Quiet Zone/The Pleasure Dome”, dos VDGG. E, no entanto, esta como todas as
outras canções de “Jorge Palma”, são pertença exclusiva do seu autor. Se o
termo “irmão espiritual” faz algum sentido então este aplica-se melhor do que a
ninguém a Jorge Palma e a Peter Hammill. “Espécie de vampiro” é outro dos picos
de “Jorge Palma”. “Eu sou muito mais que velho/E intimido qualquer espelho/Sou
o amigo mais funesto da poesia”. Fritz Lang, no gume da faca que de novo se
afia. E guitarras elétricas incandescentes (de Flak e Zé Pedro) que aos poucos
se diluem numa poça de sangue. Esta sequência de quatro temas bastaria para
justificar o regresso de Palma aos estúdios.
Os Beatles, de “Norwegian wood” a
“Mother nature’s son”, vivem obliquamente em “Beijos e papas de leite”, veia
pop que em “Disse fémea” – com texto de Arnold Wesker, traduzido por Maria
Velho da Costa – é ferida pelos relâmpagos do saxofone “free” de Paulo Curado,
em mais uma balada palmahammilliana. “Sonhadores inaptos” cria o ambiente de
cabaré, prolongado no autobiográfico “Do pobre b.b.”, de Bertolt Brecht que,
quase sem nos darmos conta, se conclui em “Trapézio”, no horizonte errante de
um circo, “entre o rugir de um leão e o choro de um palhaço”. O rugido e o
choro. O leão e o palhaço. Jorge Palma viaja entre ambos e é nesta dialética
entre nobreza e ridículo que a sua personalidade musical se estrutura. Como um
sempre-em-pé.
21/10/2014
João & Joe [Maria João & Joe Zawinful]
Y
29|JUNHO|2001
escolhas|ao
vivo
João & Joe
Maria
João encontra-se com Joe Zawinful e o seu grupo no ciclo “Grandes Concertos de
Jazz”, no Porto. Grande encontro em perspetiva. Mais ou menos próximo do jazz.
O encontro entre uma das maiores
improvisadoras vocais contemporâneas e um dos maiores arquitetos sonoros da
chamada música de fusão ensaiou os primeiros passos numa jam session realizada
há algum tempo em Colónia, na Alemanha. Terão combinado bem, daí o aprofundamento
desta relação que acolhe ainda, como parceiros, os restantes músicos que
integram a atual formação de Zawinful pós-Weather Report, os Syndicate: Amit
Chatterjee, na guitarra, Etienne M’Bappe, no baixo, Nathaniel Townsley, na
bateria, e Manolo Baderna, nas percussões e voz.
Maria João sabe voar e garimpar.
Pelas grutas do interior da terra, sobre as nuvens, na neblina. Como em
Zawinful, a fusão atravessa a sua música. O seu canto é canto de fusão entre
linguagens várias que vão da música tradicional, brasileira ou indiana, mas
também a portuguesa, cujo fascínio cada vez mais se faz sentir, ao jazz,
passando pela música contemporânea, a canção popular ou, pura e simplesmente, o
“scat”, na sua vertente mais interiorizada e pessoal.
Se Billie Holiday, Elis Regina, Ella
Fitzgerald e Betty Carter foram as suas primeiras mestres, aquelas que a
ensinaram a fazer passar a alma e as suas emoções através da respiração, terá
sido Bobby McFerrin quem lhe mostrou ser possível ser-se na voz mais do que uma
voz. Como o autor de “The Voice”, Maria João teve a coragem de estender a sua
voz para fora do limite da canção, sem receio de se expor em toda a sua
fragilidade mas também ostentando todo o seu poder. O percurso desta cantora
que gravou pela primeira vez com Jorge Palma e é hoje uma das intérpretes mais
conceituadas do novo jazz europeu, tem sido desde sempre a aprendizagem da
liberdade, mas também do diálogo. Com outros músicos e com outras músicas.
Com o seu próprio quinteto, em
“Quinteto de Maria João”, “Cem Caminhos” e “Conversa”, com a pianista japonesa
Aki Takase e o contrabaixista Niels-Henning Orsted Pedersen, em “Alice - Live
at the Jazz Ost-West”, com os Cal Viva, de José Peixoto, em “Sol”, com Ralph
Towner, Ricardo Rocha, Dino Saluzzi, Mário Laginha, Kai Eckardt de Camargo e
Manu Katché, em “Fábula” e – no lar onde ganhou a tranquilidade e a
cumplicidade para poder brincar – com Mário Laginha, em “Danças”, “Cor”,
“Lobos, Raposas e Coiotes” e “Chorinho Feliz” e “Mumadji” (mais Toninho
Ferragutti e Helge Norbaken), Maria João conquistou as “nuances” de ser, mais
do que ter, uma voz. E de falar, cantar com outros mundos. Joe Zawinful tem
novos territórios para lhe mostrar.
Joe (Josef) Zawinful foi nos anos
60, juntamente com Miles Davis, John McLaughlin e Chick Corea, um dos pioneiros
do jazzrock, após mestrado com Maynard Ferguson, Slide Hampton, Dinah
Washington, Cannonball Adderley e… o próprio Miles Davis, com quem gravou os
clássicos “Bitches Brew” e “In a Silent Way”, cabendo-lhe neste último a composição
do título-tema.
Mas para este teclista austríaco a
passagem pelo hard-bop, o souljazz e os blues representaria apenas a base sobre
a qual construiria o monumental templo de jazz-rock que se chamou Weather
Report. Foi no início dos anos 70 que o escândalo rebentou, quando Joe Zawinful
agarrou nos sintetizadores A.R.P. e nos pianos elétricos Wurlitzer e Fender
Rhodes para, ao lado de outro grande solista, o saxofonista Wayne Shorter,
encetar em 1971 a aventura elétrica Weather Report que duraria até 1986.
Os Weather Report traçariam o
caminho que centenas de outras bandas percorreram posteriormente até tornarem o
selo “jazzrock” em pouco mais do que um “cliché” citado pelos especialistas de
jazz com desdém. E se os próprios Weather Report não demoraram muito até se
deixarem enredar nos estereótipos do género que ajudaram a criar, a verdade é
que um álbum como “I Sing the Body Electric” (1972) ainda hoje serve de farol a
quem queira aventurar-se no jazzrock sem naufragar nos rochedos do lugar-comum.
MARIA JOÃO & JOE
ZAWINFUL
Porto |
Coliseu
Tel. 223394940. Hoje, às 21h30. Bilhetes a
4000$00 e 5000$00
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