Programa da Rádio Voxx de Vítor Junqueira e João Gonçalves, 20 de Julho de 2003
23/12/2016
Amélia Muge derrota frieza do público
cultura DOMINGO, 11
JULHO 1999
Festival
Sete Sóis Sete Luas, em Pontedera
Amélia Muge
derrota frieza do público
Pontedera
assistiu na noite de sexta-feira ao terceiro espetáculo de música portuguesa em
terras italianas, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas. Depois dos Realejo
e das Danças Ocultas, foi a vez de Amélia Muge encher a noite toscana com os
sons, por vezes difíceis, do seu álbum mais recente, "Taco a Taco".
Uma entorse num pé e a sisudez de um público que parecia formado por estátuas
constituíram os principais obstáculos que a cantora ultrapassou com a força da
sua voz e o carisma da sua presença.
O público
italiano, pelo menos o de Pontedera, pequena cidade situada em plena região
Toscânia, é assim: quando gosta, bate palmas, mas mais nada. Se uma canção lhe
agrada especialmente bate durante mais tempo. É tudo. Nem um grito, um assobio,
a mais pequena agitação na cadeira, "niente". A polidez e o recato
absolutos. O cenário para o concerto de Amélia Muge estava montado no jardim da
villa Malaspina, em Montecastello, o mesmo local onde há dois anos atuou Teresa
Salgueiro, acompanhada pela guitarra de António Chainho. A paisagem parece
decalcada de um filme de Ermano Olmi, feita no silêncio das estrelas e dos
ciprestes. Amélia Muge veio perturbar esta serenidade. Mesmo não havendo
"paredes para fazer tremer", como ela gosta que aconteça nas suas
atuações.
Antes do
concerto, o azar bateu-lhe à porta. Uma queda pelas escadas abaixo do hotel
teve como consequência uma entorse num pé. Mas mesmo o pé afetado não impediu a
cantora portuguesa de passar o exame com uma perna às costas. Porque de um
exame pareceu tratar-se, diante daquela série de figuras rigidamente postadas
em frente ao palco mas que, no final, aprovaram com distinção.
Amélia
entregou-se, como sempre fez, de alma e coração. Mesmo fatigada, mesmo com o pé
a doer, mesmo com o som e as luzes sem serem as melhores, conseguiu que a sua
música se insinuasse, primeiro nos ouvidos, depois no coração, de uma plateia
empedernida.
"O
mal-lavado", "Cantigas a Rosalia" e "A roupa do
marinheiro" criaram ambiente mas não derreteram o gelo. Ambiente de
estranheza que o público italiano não soube muito bem como lidar antes de
chegar à conclusão de que estava perante uma voz e uma música diferentes do que
é costume associar-se à música portuguesa. "O tolinho da aldeia"
reforçou esta aparente incompatibilidade entre quem esperava a facilidade e
quem ofereceu a coerência e a intransigência em pactuar com qualquer espécie de
truques.
Portunhol
fluente
Em "Taco a
Taco" a cantora procurou explicar, num portunhol fluente, o teor da
canção, acabando, no entanto, por encolher os ombros e reconhecer que mesmo os
portugueses não percebem do que é que se trata. Até que chegou o momento mágico
da noite. A senha foi o nome de Fernando Pessoa, autor da letra de
"Nevoeiro", mas a magia aconteceu com a soberba interpretação vocal,
plena de emotividade, como se a hora do poema verdadeiramente chegasse naquele
instante. O público não teve outro remédio senão entregar-se, aplaudindo com uma
salva de palmas interminável.
Nesta altura foi
possível perceber que é pela duração do aplauso e não por qualquer outro tipo
de manifestação emotiva que se deve aferir a aprovação, ou não, do público de
Pontedera. Se aplaude muito tempo é porque gosta. Se permanece imóvel como uma
vedação de estacas, o melhor a fazer é arrumar as malas. No caso de Amélia Muge
pode dizer-se que, segunda esta bitola, a assistência entrou em delírio, já que
aqui e ali se chegaram a ouvir "bravos" (mais sussurrados do que
gritados...) de incitamento.
A partir de
"Nevoeiro" tudo se tornou mais fácil. Em "Cantiga de
segada" os italianos tiveram mesmo direito a um momento de identificação,
uma vez que a polifonia vocal criada pelas vozes de José Manuel David e Amélia
Muge navega nas mesmas correntes mediterrânicas que passam pela Córsega, ou ainda
mais perto, pela Sardenha.
José Manuel David
foi, de resto, o motor instrumental de todo o concerto, passando da
gaita-de-foles para a flauta, do kissange para o piano e, no último tema,
"A saia da Carolina" – entre a música antiga, o folclore português e
ressonâncias árabes –, para uma cromorna da Renascença. José Martins e João
Lobo rubricaram um interessante dueto de percussões, em "Moby Dick",
e Rui Pereira, "Dudas", soltou-se em "A saia da carolina",
num dos seus idiomas preferidos, o jazz, neste caso executado num alaúde árabe,
solando com a alma e os dedos de um Rabih Abou-Khalil. Yuri Daniel foi o esteio
seguro, no contrabaixo.
Voltaram todos ao
palco, apesar de alguma hesitação (a reação de Amélia Muge às palmas finais,
embora mantendo-se a compostura de sempre, foi perguntar se isso significava um
pedido de encore...). O público queria mesmo mais. Amélia acedeu, oferecendo-se
num exercício intimista, interpretando a solo "Se não tenho outra
voz", sobre um poema de José Saramago, terminando, já com todos os músicos
de novo em palco, com "A avó Emília". Foi o cabo dos trabalhos para
explicar a palavra "avó" ("nonna", em italiano). Uma luta
taco a taco contra a distância e o comedimento da qual a música portuguesa e,
em particular Amélia Muge, saíram vencedores.
Meira Asher faz história no festival Ritmos
SEGUNDA-FEIRA,
28 JUNHO 1999 cultura
Meira
Asher faz história no festival Ritmos
Birkenau
aqui e agora
A música da
israelita Meira Asher é a verdadeira música do mundo. Não do mundo da tradição,
mas do mundo atual, em agonia, à beira do novo milénio. A sua passagem pelo
festival Ritmos/Festas do Mundo, no Porto, provocou arrepios. E algum
escândalo.
Ninguém ficou indiferente ao espetáculo alucinante que Meira Asher
apresentou, sábado, no festival Ritmos/Festas do Mundo, que ontem terminou no
Porto. "Loucura total", exclamaram, deslumbrados, os que aguentaram o
embate. "Vamos fugir deste inferno!", arrepiaram-se uns quantos, que
não suportaram ter de enfrentar cara a cara o pesadelo.
Festa e alegria
são palavras sem sentido na carnificina que a israelita trouxe ao Palácio de
Cristal, onde o festival teve lugar. Pelo contrário, a sua
"performance" terá constituído, para alguns, um fardo difícil de
suportar. Foi um vómito de sangue, um combate de vida e de morte contra a
passividade e a indiferença. "Este projeto é um sinal de alarme que
retrata o indivíduo vítima de uma realidade repetitiva, brutal e alienante. Uma
realidade que contamina toda a gente com as doenças crónicas da cobardia e da
apatia", diz Meira Asher, a propósito de "Spears into Hooks" e
da prestação ao vivo que lhe corresponde.
Conseguiu
plenamente os seus intentos, esta israelita de olhos encovados e cabeça rapada,
de ascendência russa, que traça um paralelo entre o holocausto nazi e o
holocausto palestiniano e para quem a paz entre as nações só será possível
quando todos os pesadelos forem expostos à luz do dia. Foi isso que ela fez,
arrasando os nervos de uma assistência que nunca soube muito bem como reagir à
violência do impacte, mas que, subjugada por uma espécie de hipnose, se manteve
imobilizada diante da torturadora. "Aquele que foi torturado tende a
tornar-se no torturador" constitui, aliás, outra das máximas defendidas
por Meira Asher.
Tudo se conjugou
para tornar a noite de sábado do Ritmos/Festas do Mundo numa ocasião especial
e, provavelmente, dolorosa. A começar pelo aspeto cénico do palco. Ao invés da
habitual parafernália de instrumentos étnicos, era todo um arsenal de máquinas,
ecrãs de vídeo, percussões eletrónicas e computadores que se exibia aos olhos
curiosos, e um pouco assustados, da assistência.
Ainda antes do
ritual ter início, um som eletrónico incomodativo saía das colunas para criar
uma atmosfera que tornava cada vez mais ténues as esperanças daqueles que
acreditavam ainda ser possível haver festa. Mas quando Meira Asher e o seu
grupo de terroristas sónicos puseram os seus dispositivos do inferno a
funcionar, todas estas esperanças caíram por terra. Sobre vagas industriais de
eletrónica onde a melodia e o menor "groove" rítmico nunca passaram
de utopia, Meira Asher gritava e gesticulava como uma possessa. Luzes
estroboscópicas eram apontadas ao público, enquanto os fumos e, num dos temas,
fogo real, ajudavam a intimidar, na celebração de uma cerimónia de shamãs sem
fé que transportam para o próximo milénio a estética apocalíptica dos
Einstuerzende Neubaten e dos atuais Faust. Dois ecrãs de vídeo exibiam imagens
não menos dantescas, de experiências ou operações cirúrgicas em corpos humanos,
chagas, ferimentos e sofrimentos sortidos, tortura e caos, alternando com sinais
geométricos de carácter mágico. Sobre tudo isto, uma frase, repetida do princípio
ao fim num placard eletrónico instalado em frente a uma das mesas de samplers e
sintetizadores, acentuava ainda mais a tónica do medo: "Birkenau, aqui e
agora". O Palácio de Cristal tornava-se no campo minado de um perigoso
jogo de memórias e ambiguidades. O mundo inteiro é um campo de concentração do
qual é impossível escapar.
Sucederam-se os
samples onde se armazenavam as dores de vítimas reais e estilhaços de música
étnica afogada numa orgia de loucura. Durante a interpretação de "Weekend
away break", um dos temas mais violentos de "Spears into Hooks"
- a descrição do campo da morte de Birkenau como uma estância de férias, ao som
de uma valsa de Strauss e das canções de Marlene Dietrich - dançou a dança do
mal.
O "espetáculo"
que Meira Asher apresentou no Ritmos/Festas do Mundo, excedeu as expectativas
dos que já conheciam o álbum e defraudou as dos incautos. Quem procurava a
festa - que também não chegou a acontecer na primeira parte, com a atuação dos
Istanbul Oriental Ensemble a pautar-se por alguma monotonia - saiu machucado
debaixo dos gritos de "Morram!" Morram! Morram!", que Meira
escarrou em "The Flood", "o dilúvio", outro dos temas de
audição dolorosa de "Spears into Hooks". Mal terminou o exorcismo, a
chuva começou a cair...
Holocausto na música do mundo [Meira Asher]
SEXTA-FEIRA, 25 JUNHO 1999 cultura
Sons do Mediterrâneo no Porto
Holocausto na música do mundo
MEIRA
ASHER paira como uma ave de rapina sobre a programação do festival
Ritmos-Festas do Mundo, cuja sexta edição, dedicada aos sons do Mediterrâneo,
tem hoje início no Palácio de Cristal, no Porto. A cantora israelita de cabeça
rapada lança-nos na cara a maldição e o horror da condição humana. Depois de um
primeiro álbum, “Dissected”, em que a música de raiz étnica funcionava ainda
como pretexto para suavizar uma visão em que a fúria e a denúncia eram já a
pedra de toque, em torno de temáticas incómodas (e, até então, virgens, no
universo das chamadas “músicas do mundo”) como a sida e a apropriação
terrorista de textos da Bíblia, Meira Asher lançou-ne no abismo. A sua segunda
obra, intitulada “Spear into Hooks”, é um pesadelo de audição urgente e,
provavelmente, o melhor disco deste ano.
Sobre a temática do Holocausto a
cantora ergue uma catedral de medo cercada pela violência sonora da música
industrial e pelos traumas da guerra. São utilizados samples onde ficaram
armazenadas a agonia, a tortura e uma ironia que fere com a crueldade gelada de
um bisturi. Meira grita, geme e invectiva (Diamanda Galas, ao pé dela, é uma
menina de coro...) sobre os estertores de vozes reais de mulheres e crianças
atingidas por projéteis. Textos do Génesis misturam-se com a descrição de
assassínios. Num dos temas, o campo de concentração nazi de Birkenau é descrito
como um campo de férias cujos habitantes são convidados a tomar um banho de
vapores perfumados. À medida que o inferno sobe de tom ouve-se por cima uma
valsa de Strauss e um disco antigo de Marlene Dietrich. Outro tema, inspirado
no poema "Se questo é un uomo", de Primo Levi, descreve a doença da
alma dos que sobreviveram: "Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/que agora
encaramos como se nunca tivesse acontecido/não gravaremos nada nos nossos
corações/quando chegarmos a casa e já estivermos longe/quando pudermos
descansar e nos erguermos de novo/não será dita aos nossos filhos uma palavra
do que vivemos/deste modo perderemos a nossa essência/e a doença tomará conta
de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/cada vez
mais, para todo o sempre". Depois de sermos feridos pela música de Meira
Asher o Verão parecerá mais escuro e a realidade chorará. Meira Asher apresenta
amanhã o seu ritual de exorcismo, em voz, electrónica e percussão, acompanhada
por Daniel Baruch, em electrónica, e Jackie Shemesh, nos efeitos de luz. A
seguir à actuação dos Istanbul Oriental Ensemble, marcada para as 22h30.
Mas hoje ainda vai ser possível
respirar e dançar. Com os Barrio Chino, de França, e Daniele Sepe, de Itália.
Nos Barrio Chino, combinam-se as tradições ibérica, grega, italiana e árabe.
Uma visão mediterrânica que se estende de Atenas a Barcelona, de Alexandria a
Casablanca. Daniele Sepe é um cantor/autor que percorre o imaginário musical da
região de Nápoles mas onde são envergadas outras máscaras, de Kurt Weill, do
raga, do canto medieval, do tecno folk e do jazz. Não é de desdenhar o sentido
de humor que levou Daniele a intititular a banda que o acompanha, Art Ensemble
of Soccavo, repositório de heranças musicais napolitanas que o cantor descreve
como "uma caixa de refugo musical".
No sábado, além de Meira Asher,
actuam os turcos Istanbul Oriental Ensemble, naquela que será a sua segunda
visita a Portugal, depois de terem actuado no ano passado na Expo. Trata-se de
uma das mais importantes formações de música árabe da actualidade, com a
liderança do percussionista Burhan Öçal. Sons ciganos, com proveniência de
Istambul e da Trácia dos séculos XVIII e XIX, soltam-se em arranjos e
improvisações na construção da banda sonora de mil e uma noites passadas no
ponto nevrálgico onde a Ásia e a Europa se encontram. A ouvir, como preparação
para o concerto, os álbuns "Gypsy Rum" e "Sultan's Secret
Door".
Salamat, da Núbia, Egipto, e Esma
Redzepova, da Macedónia, encerram no domingo o festival Sons/Festas do Mundo. O
grupo Salamat conta na sua formação com um extraordinário percussionista,
Mahmoud Fadl, autor de álbuns impossíveis de ignorar, como "Drummers of
the Nile" e "Love Letters from King Tut-Ank-Amen". Através da
união dos padrões melódicos tradicionais com os ritmos urbanos nascidos no
Cairo, a música dos Salamat inscreve-se na mesma linha de Ali Hassan Kuban,
constituindo ocasião soberana para os corpos se entregarem à hipnose da dança.
A herança cigana regressa no
espectáculo de fecho, com a cantora Esma Redzepova e o seu grupo, oriundos da
Macedónia. Mesmo neste caso, apesar dos compassos se escreverem com contas mais
complicadas, o apelo do ritmo não deixará de se fazer sentir.
Completamente normal [Pascal Comelade]
cultura QUINTA-FEIRA,
24 JUNHO 1999
Entrevista
com Pascal Comelade, em concerto hoje em Coimbra, amanhã em Lisboa
Completamente normal
Colorida de
absurdo e poesia, a música de Pascal Comelade é feita de recordações. Fora de
moda e fora do tempo. Já tocou com os Faust e com o baterista dos Can. Faz
versões-desmontagens de canções pop e compôs para Bob Wilson. Em Portugal, há
uns anos, teve a acompanhá-lo o coelho das pilhas Duracell. Desta vez traz um
grupo, o inseparável piano de brinquedo e sons do seu bordel musical.
"Considero o piano de brinquedo um
instrumento completamente normal" diz ao PÚBLICO Pascal Comelade como
justificação para o fascínio que esta miniatura exerce sobre a sua música. Já
em relação a Comelade não é possível ter tantas certezas sobre a normalidade,
ou aquilo que entendemos como tal. "Com o tempo esquecemos a função
original do objeto que, no caso do piano, é um brinquedo para crianças, até se
tornar um instrumento completamente normal", insiste, pondo a tónica na
"normalidade".
Um dos álbuns deste compositor
catalão, que hoje atua em Coimbra e amanhã em Lisboa, chama-se "Musique
pour Film, Vol. 2". Nada de especial a assinalar. Que pode haver de
especial a assinalar numa banda sonora? Não é assim tão simples. Comelade não
compôs para filme nenhum - a fazê-lo, diz, só "de desenhos animados"
- e não existe nenhum primeiro volume da obra. Completamente normal...
Foi em 1983 que Comelade montou a
sua Bel Canto Orquestra, "inteiramente constituída por instrumentos de
brinquedo, saxofones de plástico, trompetes de plástico, guitarras de
plástico". Mas a música deste coletivo de "não músicos", um
pouco à semelhança da Portsmouth Sinfonia criada na década anterior por Brian
Eno, não soa, de modo algum, a plástico, mas ao próprio movimento da vida.
Feita de evocações, quadros desbotados, fotos do século passado e livros de
gravuras antigos. Satie e Nino Rota observam. Irrompem fanfarras, como a de
Perpignan, que o catalão assimilou como um tesouro na sua infância. Ouve-se o
ruído dos riscos de velhos discos de 78 rpm que o pai punha a rodar em casa,
com folclore da Arménia, da Geórgia, dos Balcãs. Deixaram lastro. Ecos
distorcidos de músicas com sabor e aroma. Lugares e personagens estranhas, como
as da Adèle Blanc-Sec, recortadas da banda desenhada de Tardi. Haikus flutuando
do Oriente, que Comelade ama sem saber porquê. E canções com títulos
impensáveis: "La cathédrale des cure-dents", "J'irai verser du
nuoc-mam sur tes tripes", "Le dompteur de mouches de Figueres",
"Dali's mustache with gitano's chausssure"...
Mas todos os edifícios, mesmo os de
arquitetura mais bizarra, necessitam de alicerces. Os de Comelade estão fixos
nos anos 70, na música dos ZNR, de Hector Zazou e Joseph Racaille
("Barricades 3" é um dos álbuns que mais o influenciou). Outra obra
marcante foi o primeiro álbum dos Penguin Cafe Orchestra, editado na coleção
Obscure, de Brian Eno, em particular a faixa que ocupa um dos lados do disco
("Z.O.P.F."). "Indivíduos que, numa determinada época e no mundo
das chamadas novas músicas, estavam isolados e que faziam apelo à
melodia".
Pascal é um primitivo. Interessa-lhe
o gesto primordial, a essência não adulterada: "Interesso-me por todas as
velhas músicas, pelo que têm de instintivo". Gravou "El
Primitivismo". Adere a fundações como L'Association des Amis d'Arsène
Lupin, L' Association des Amis de Alfred Jarry. "É a parte da cultura
francesa que me interessa", diz, ao mesmo tempo que elogia surrealistas
como Alfred Jarry, Arthur Cravan, Jacques Rigaud ou Jacques Vachier. "Marginais,
mesmo dentro do movimento".
“Um prazer egoísta”
Escreve uma "Enciclopedia
Logicofobista de la Musica Catalana", "dicionário de situações de
indivíduos atípicos, incongruentes ou bizarros" da música na Catalunha.
"Tudo verdade, não inventei nada", garante. Instala-se em
Vernet-les-Bains, estância balnear do século passado cujo nome é tão evocativo
como os títulos das suas canções e à qual dedica, aliás, uma.
Em Tóquio escreve os arranjos para a
"Ópera dos Três Vinténs", de Weill. Assina versões de canções de
Robert Wyatt, Faust e dos Stones. E álbuns como "Haikus de Piano",
"Traffic d'Abstractions" e "El Cabaret Galactic". As
canções trocam de nome e de lugar, vestindo-se de novo e repetindo-se de álbum
para álbum. "É uma confusão", reconhece, "tem sido assim deste o
início, não sei porquê."
Toca ao vivo, "guitarra de
plástico", com os Faust, "The sad skinhead", uma canção deste
grupo germânico incluída em Faust IV", em 1997, em Lîlle. "Foi uma
das maiores honras da minha vida, atuar ao lado de Jean-Hervé Peron"
[ex-baixista daquele grupo alemão]. E com Jaki Liebezeit, baterista dos Can,
que chega a fazer parte da sua Bel Canto Orquestra, também em 97. "Um ano
bizarro. No mesmo ano gravei com Péron e com Liebezeit, quando há 20 anos não
passava de um fã dos Faust e dos Can".
P.J. Harvey canta em dois temas de
"L'Argot du Bruit", um dos seus álbuns recentes. "Encontrei-a
por acaso. Aliás, tudo o que faço é por acaso”. Há cerca de uns cinco anos,
numa entrevista em Espanha para a revista “Rock de Luxe”, o jornalista
perguntou-lhe que música é que costumava ouvir em casa. A resposta foi: Captain
Beefheart e Pascal Comelade. “Há dois ou três anos enviei-lhe uns discos meus.
Respondeu-me passados dois dias. Encontrámo-nos pouco depois em Paris. Mas ainda
levou algum tempo até à nossa colaboração".
O último, "Zumzum-ka",
fala da relação entre a função simbólica da letra "K" e o zumbido das
abelhas. Compôs a partitura de "Wings on Rock", com coreografia de
Bob Wilson. Não foi fácil. "Tem um tema de 55 m, enquanto as minhas
canções raramente ultrapassam os 2m30...".
Pascal Comelade define a sua música
como "um bordel". É capaz de ter razão. "A música que faço está
absolutamente desfasada do que se faz hoje. Não me preocupo com quaisquer
noções de atualidade técnica ou com a História. É verdade que há um lado
poeirento na minha música... Pertenço ao passado, sou um velho músico [risos].
O problema no Ocidente, hoje, é que todos os dias nos apontam a questão dos
jovens. Eu, sou como os Cramps, há 20 anos que faço o mesmo disco e a mesma
música. É o que me dá prazer. Um prazer egoísta...”
A formação da Bel Canto Orquestra
que vem a Portugal é composta por Gerard Meloux (guitarra acústica e bandolim),
Patrick Cheniere (bandolim e guitarras), Patrick Felices (baixo), Philippe
Dourou (percussão) e Jakob Draminsky (saxofone e brinquedos). Pascal Comelade
tocará piano e brinquedos.
PASCAL COMELADE E BEL CANTO
ORQUESTRA
COIMBRA
Teatro Gil Vicente, hoje às 22h30
LISBOA
Grande Auditório do CCB, amanhã às 21h30
Baile no bordel [Pascal Comelade]
Músicas
PASCAL
COMELADE E A BEL CANTO ORQUESTRA EM COIMBRA E LISBOA
BAILE
NO BORDEL
UM QUARTO VAZIO, envolvido em sombras e humidade.
A um canto, como um animal acossado, um piano de cauda roído pelo caruncho
rumina memórias de feitos gloriosos. Visões do século passado, salões
feericamente iluminados por lustres onde silhuetas sem rosto dançam a valsa. Lá
fora chove. Um vulto entra na sala e senta-se ao piano que encolhe, ronronando,
até se transformar num brinquedo. Nessa altura liberta-se do teclado uma
melodia. Um tango ou uma valsa. Talvez mesmo as notas desencontradas de uma
canção dos Faust.
É
a primeira das primeiras melodias. O útero de todos os folclores. O mágico
possuidor do poder de acordar em nós um Inconsciente que julgávamos
definitivamente acorrentado, chama-se Pascal Comelade e já atuou, há alguns
anos, a solo, em Portugal. Toca instrumentos de brinquedo. Não porque se trate
de uma brincadeira mas porque a sua música tem a mesma inocência e a mesma
crueldade que apenas as crianças conhecem e praticam. Um dos álbuns de Pascal
Comelade, cuja música ele próprio define como "um bordel", chama-se
"El Primitivismo" e define com clareza esse magma de impressões e
emoções que existem antes do raciocínio as arrumar nos ficheiros da filosofia e
as enfeitar com o verniz da estética.
Pascal
Comelade é francês de nascimento mas viveu grande parte da sua vida em
Barcelona, na Catalunha. Ainda nos anos 70 conhece Richard Pinhas, dos Heldon,
e Victor Nubla, dos Macromassa, compositores de música eletrónica, não
admirando que o seu primeiro trabalho discográfico, "Fluence", se
inclua nesta área musical. Curiosamente, Richard Pinhas participa como
convidado num álbum mais recente de Comelade, "Musiques pour Films,
Vol.2", num tema, "Back to Schizo", que ressuscita o minimalismo
"frippiano" dos Heldon.
Já
nos anos 80, depois de um contacto fugaz com grupos comprometidos com o
movimento RIO ("Rock in Opposition"), como os Henry Cow, forma os
Fall of Saigon e, mais tarde, a Bel Canto Orquestra, formação errática que
permaneceu até aos dias de hoje. O seu gosto pela literatura surrealista e pelo
romance policial leva-o a aderir a associações como L'Association des Amis de
Alfred Jarry, L'Association des Amis d'Arsène Lupin ou a Societé
Sherlock-Holmes. "Détail Monochrome" e "Bel Canto" fazem a
transição para uma música deslocada do tempo que evoca a banda-desenhada de
Tardi, algum do cinema de Fellini, uma sessão de espiritismo e um
"haiku" japonês.
Instala-se
em Vernet-les-Bains, lugar carregado da nostalgia de uma estância do século
passado e ao qual dedica uma canção. Escreve uma "Enciclopedia
Logicofobista de la Musica Catalana", um arquivo da vida e da obra das
personalidades mais marginais da cultura catalã. Discos como "El
Primitivismo" e "Danses et Chants de Syldavie" ilustram o
universo, aparentemente anacrónico, que Pascal Comelade cultiva com a
insistência dum maníaco, composto de danças e melodias emanados do cérebro de
um fumador de ópio.
Em
Tóquio, faz os arranjos da "Opera dos Quatro Vinténs", de Kurt Weill.
O Oriente continua a inspirá-lo: edita o álbum "Haikus de Piano",
coleção de miniaturas de piano que incluem versões de canções pop
esquizofrénica de Robert Wyatt e dos Faust lado a lado com curtas-metragens
sonoras de Nino Rotta. "Traffic d'Abstractions" e o magistral
"El Cabaret Galactic" refinam o lado retro e humorista da sua música,
possuída por lugares e imagens tão belos e desfasados do gosto moderno como os
títulos das canções: "The Lolobrigida fox-trot", "Danseur de
tango descendant un escalier", "Le dompteur de mouches de
Figueres", "Dali's mustache with gitano's chaussure" ou
"Chanson triste pour ventriloque aphone", culminando no verdadeiro
manifesto que é "Little melodie plaintive empreinte d'un grand charme
nostalgique".
Músicos
como Jaki Liebezeit, dos Can, que chega a fazer parte da Bel Canto Orquestra, e
Polly Jean Harvey, expressam publicamente a sua admiração pelo francês. A
autora de "Is this Desire?" participa mesmo em duas canções de
"L'Argot du Bruit", editado o ano passado: "Love too soon"
e "Green eyes". Toca ao vivo com os Faust e com o grupo de pós-rock
francês, Ulan Bator, "The sad skinhead", um tema de "Faust
IV", daquele grupo germânico. Além de "L'Argot du Bruit", Pascal
Comelade edita nos últimos anos os álbuns "Ragazzin' the Blues",
"Musiques pour Films, Vol.2" e "Zumzum-Ka", escrito para
uma coreografia de um grupo catalão.
A
formação da Bel Canto Orquestra que acompanha Pascal Comelade (piano e
brinquedos) a Portugal é constituída por Gerard Cheniere (bandolim e
guitarras), Patrick Felices (baixo), Philippe Dourou (percussão) e Jakob
Draminsky (saxofone e brinquedos, atua amanhã em duo com Nuno Rebelo, na
Galeria Zé dos Bois).
PASCAL
COMELADE
Coimbra,
Teatro Gil Vicente, dia 24, às 22h30
Lisboa,
Grande Auditório do CCB, dia 25, às 21h30
sexta-feira, 18 Junho 1999
ARTES & ÓCIOS
Canções para os amigos [Suzanne Vega]
QUINTA-FEIRA, 17 JUNHO 1999 cultura
Concerto ameno no CCB
Canções para
os amigos de Suzanne Vega
MAL SUBIU para o palco, com uma guitarra acústica e um sorriso
tímido no rosto, Suzanne Vega foi recebida pelo público de Lisboa como uma
filha mimada. Ao fim de poucos segundos – na primeira das suas duas
apresentações em Portugal, a segunda aconteceu ontem, no Cinema do Terço, no
Porto – a cantora nova-iorquina tinha toda a gente na mão. O seu sorriso de
quem está em paz consigo mesmo, a sua simplicidade e o seu sentido de humor,
amplamente exercitado nos apartes e nas histórias que foi contando, são
desarmantes. Este foi, de resto, o aspeto mais interessante do concerto, o modo
como a cantora estabelece comunicação com o público, através de um tom
coloquial que emprega em simultâneo o didatismo, a improvisação e a
desmistificação.
Suzanne recordou
episódios da sua vida passada, as suas viagens (as raparigas más, embora não
seja bem o seu caso, ao contrário das boas, que vão para o céu, vão a todo o
lado e não para o inferno...), pediu desculpa pelo longo afastamento dos palcos
portugueses (já cá tinha estado há cerca de nove anos) e explicou por que razão
o assunto de uma das suas canções não é, definitivamente, o pénis. Satisfeita
com a resposta do público, convidou-o a seguir viagem com ela até aos próximos
espetáculos. Houve quem gritasse logo que sim. Suzanne sentiu-se em casa,
apaparicada, e relaxou. Acendeu a luz para as canções brilharem e elas
mostraram a vida que as anima. A magia da sua presença fez o resto.
Suzanne expôs-se,
no modo como se apresentou no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
(CCB), armada apenas com uma guitarra acústica e as acentuações, no baixo
elétrico, de Michael Visceglia. Arriscou a ganhou. Servida por um som que
permitiu acompanhar em detalhe a letra de cada canção, a “cantora que tombou do
céu”, como já lhe chamaram, passeou o seu “charme” por canções como “Marlene on
the wall”, a abrir o concerto, “Small blue thing”, “World before Columbus”,
“Rock in the pocket (song of David)”, “In Liverpool”, “Rosemary” e “Blood
sings”, fechando com dois dos temas mais conhecidos, “Luka” e “Tom’s diner”,
este último “a capella” e com o público a acompanhá-la com estalos dos dedos e
a entoar com muito cuidado o refrão “hm hm hm hm hmhmhm”.
Voltou para os
encores, com mais uma série de exercícios de intimismo, entra as quais “The
queen and the soldier”, uma canção que, ela própria não sabe bem porquê, agrada
a toda a gente. Recompensada, afirmou que, por vontade dela, ficaria toda a
noite a cantar canções de enfiada, se não tivesse ainda que apanhar o avião
para o Porto. Canções que não perderam pitada da sua força no formato reduzido
com que foram apresentadas, dando razão à sua autora quando, na entrevista ao
PÚBLICO, declarava ser em primeiro lugar uma compositora e só depois uma
cantora. Mais do que um concerto, a atuação de Suzanne Vega foi o reencontro de
velhos amigos que, ao fim de uma longa e dolorosa separação, puseram a conversa
em dia.
Inquérito a Suzanne [Suzanne Vega]
cultura
QUARTA-FEIRA, 16 JUNHO 1999
Cantora
nova-iorquina atua hoje no Porto
Inquérito a Suzanne
Depois de
Lisboa, o Porto recebe hoje Suzanne Vega, a cantora a quem chamam “a garota de
Nova Iorque” e “a mulher que tombou do paraíso”. Ela não se considera nem boa
nem má rapariga, mas uma sonhadora. No seu livro de sonhos cabem o amor pela
filha, Ruby, um livro de Emily Brontë, um filme com Marilyn e uma canção de Lou
Reed.
Em vez da entrevista convencional, o PÚBLICO
propôs a Suzanne Vega uma espécie de inquérito, que teve o condão de lhe
provocar umas vezes surpresa, outras embaraço. Mas ela divertiu-se e nós
também. Hoje à noite, no Cinema do Terço, às 21h30, é a vez de o Porto saborear
a voz, as estórias e as canções de Suzanne Vega.
PÚBLICO
– Escolha três das suas canções para dedicar à sua filha Ruby.
SUZANNE VEGA – “Birthday”, de “99.9 Fº”,
“World before Columbus” e “Caramel”, ambas de “Night Objects of Desire”.
P.
– Mais uma para oferecer ao seu pior inimigo.
R. – Oh, essa é das difíceis. Nunca
escrevi para os meus inimigos. Embora “Rock in his pocket (song for David)”
pudesse ser utilizada com esse fim…
P.
– Gostaria de ser lembrada como a Joan Baez dos anos 90?
R. – Gosto imenso de Joan Baez, pelo
seu envolvimento político e pelo humor. Mas não gostaria de ser comparada com
ela porque é uma grande cantora e uma compositora razoável, enquanto eu prefiro
ser recordada como uma excelente compositora com uma voz razoável.
P.
– Imagine que nunca tinha ouvido música rock antes. Sentiria hoje o mesmo impacto que sentiu na sua adolescência
quando assistiu a um concerto de Lou Reed?
R. – Provavelmente, sim. O que eu
sempre achei interessante nele são as estórias por detrás das canções que, por
regra, são tocantes. Não foi o som que me impressionou quando o ouvi pela
primeira vez, podia estar a tocar uma guitarra ou um ukelele que não faria a mínima
diferença. Não teve nada a ver com ser ou não música rock. Estou-me nas tintas
para o rock.
P.
– Conte-nos uma boa história passada num restaurante famoso, o Tom’s Diner, que costumava frequentar e sobre o
qual compôs, aliás, uma canção.
R. – Famoso, agora, porque na época
em que escrevi sobre ele era um local pequeno e sujo onde as pessoas iam beber
café à noite. Depois tornou-se limpo e famoso. Há uns anos filmaram cenas da
série de TV “Seinfeld” frente à fachada…
P.
– Qual dos rótulos se aplica melhor a si: “Bon chic bon genre” ou “As boas
raparigas vão para o céu, as más vão para o inferno”?
R. – [risos] Não me considero nem
boa nem má rapariga. É uma pergunta delicada… Sou independente. Quando se está
a crescer, as pessoas acham que somos bons ou maus, a mim disseram-me sempre
que era uma pessoa enfiada no meu mundo, um mundo de sonhos.
P.
– Por falar em sonhos, qual é o seu sonho mais brilhante?
R. – Deixe-me pensar… Ter mais dois
filhos com quem a Ruby possa brincar. Levar a vida de que gosto, o que estou
prestes a conseguir, com dinheiro suficiente para poder cantar e tocar apenas
quando me apetece. O meu ritmo é lento, como tal gostaria de nunca ter que me
apressar para chegar a algum lado. E atirar o relógio para o lixo.
P.
– O seu pesadelo mais sombrio?
R. – Ser pressionada para passar de
uma coisa para outra. Ter que me confrontar com as “deadlines” dos outros,
fazer o que me dizem sem ter oportunidade de dialogar.
P.
– O seu desejo mais obscuro?
R. – Não respondo. As perguntas
estão a entrar num território demasiado pessoal! Talvez lhe conte alguma coisa
daqui a uns dois ou três anos, se passar por aqui [risos].
P.
– No seu livro “Urgent Whispers” (“Murmúrios Urgentes”, ed. Assírio &
Alvim), ao ouvir fado, escreve que a alma dos portugueses está nas canções que
canta. A sua alma onde está?
R. – Nas palavras, nas letras que
escrevo. Um pouco, também, nas melodias que, regra geral, são tristes.
P.
– Paixão e amor são duas coisas diferentes? Uma pode existir sem a outra?
R. – Uma pode existir sem a outra,
embora de forma não satisfatória. É uma pergunta interessante porque estou,
precisamente, a passar por um processo de separação. O meu casamento acabou e
tenho pensado sobre esse tipo de questões.
P.
– Sexo virtual?
R. – Existe, mas não é nada que eu
recomende. É sexo apenas com a mente. Como um jogo de vídeo. Ou pornografia.
P.
– Monica Lewinsky e Bill Clinton. Quem é a vítima e quem é o culpado?
R. – Oh, não! Para ser sincera,
penso que foram os dois uns idiotas. Talvez tenha sido ele a vítima… Se
considerarmos que ela lhe apareceu, logo ao primeiro encontro, vestida apenas
com roupa interior… Do que é que ela estava à espera? Por outro lado, ele
mostrou ser um homem que não se consegue controlar nesse género de questões… O
tratamento jornalístico dado ao caso é que foi completamente desapropriado,
fora de controlo. A vítima real acabou por ser Hillary Clinton.
P.
– Mário Soares, ex-presidente de Portugal, conhece e gosta da sua música. E Bill Clinton?
R. – Não deve ligar nenhuma, tem
outras coisas em que pensar, acredite! Mas sei, através de uma carta que recebi
de Tipper Gore, mulher do vice-presidente, que ela gosta imenso de “Luka” e
ainda ouve o meu segundo álbum, “Solitude Standing”.
P.
– Um crítico referiu-se a si uma vez como “a rapariga que tombou do paraíso”.
Agora que já conhece bem o planeta Terra, sente-se melhor aqui ou tenciona
voltar para o céu?
R. – A Terra é ok, já me habituei.
P.
– “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada”, escreveu David Byrne numa das suas canções. Concorda?
R. – Não penso assim. Seria
demasiado chato. A minha filha, de quatro anos, disse-me esta manhã que chegou
de Vénus (risos)…
P.
– “The girl from Ipanema” é uma das suas canções favoritas. Considera-se “The girl from New York”, como alguém já
lhe chamou?
R. – Claro! Adoro ouvir isso! Há
milhões de raparigas em Nova Iorque, quem é que não gostaria de ser encarado
como símbolo da cidade?
P.
– Com qual destas artistas gostaria de trabalhar: Laurie Anderson, Joni
Mitchell ou Rickie Lee Jones?
R. – Provavelmente, Laurie Anderson.
Gosto muito de Rickie Lee Jones, com quem já me encontrei em diversos
concertos. Mas com Laurie, sinto que somos compatíveis. Já foi minha vizinha e
tomei o pequeno-almoço várias vezes com ela. Tem uma personalidade
avassaladora. Mesmo quando está a falar de coisas simples, é uma pessoa
interessante de observar e de ouvir.
P.
– E dos homens: Stan Ridgway, Tom Waits ou Tim Buckley, se ainda fosse vivo?
R. – Stan Ridgway! É fantástico,
além de ser um excelente contador de histórias, os seus espetáculos têm uma
força impressionante. Assisti uma vez a um deles e fiquei completamente de
rastos. Tom Waits tem uma personalidade demasiado egocêntrica e carismática
para partilhar o palco com mais alguém.
P.
– Mitchell Froom (marido e produtor dos dois últimos álbuns da cantora, “99.9 Fº” e “Nine Objects of Desire”) mudou
mais a sua música ou a sua vida?
R. – Mudou ambas. E hoje mais do que
nunca por causa da nossa filha. Na música, ajudou-me a trazer à superfície algo
que já existia antes mas estava escondido, uma qualidade abrasiva e facetas de
alienação, de violência. Encontrou o som certo para as minhas palavras.
P.
– Philip Glass, no seu estatuto atual, capaz de escrever uma ópera todos os dias, é um génio ou um chato? Não precisa
de responder…
R. – Outra pergunta interessante,
sou fã dele, por isso claro que é um génio. Uma vez cometi o erro de levar o
flautista do grupo a um concerto dele. Não conseguiu suportar mais do que 15
minutos. Claro que às vezes poderia compor coisas com menos de duas horas de
duração… Um dos meus discos favoritos é “Mishima”. No ano passado assisti a um
concerto em que apresentou a sua versão de “Low”, de David Bowie. Achei
fantástico. Está cada vez melhor com a idade.
P.
– Gostou do modo como ele trabalhou as suas canções em “Songs from Liquid Days”?
R. – Na altura soaram-me um bocado
estranhas. Lembro-me de ter torcido o nariz e pensado que eu teria feito de
outra maneira. Mas não me competia a mim decidir.
P.
– Se conseguisse escapar ao fim do mundo que livro levaria consigo? Disco? Filme? Canção? E uma das suas canções?
R. – Livro: “O Monte dos Vendavais”,
de Emily Brontë. Disco: “The Songs of Leonard Cohen”, de Leonard Cohen. Filme:
teria que ser alegre o que é difícil já que tenho tendência para gostar de
filmes sombrios como “Repulsa”, de Roman Polanski. “Rebeca”, de Hitchcock,
também é bastante bom mas deprimente. Talvez “There’s no Business like
Showbusiness”, com Marilyn Monroe. Sim, levaria esse. Canção: “Walk on the wild
side”, de Lou Reed. Das minhas: “The queen and the soldier”, por qualquer
razão, as pessoas das mais diversas culturas parecem compreender e gostar dela.
Tornou-se ainda mais popular do que “Luka”.
P.
– Ainda vai ter tempo para gravar um novo álbum?
R. – Espero que sim. Mas vou ter que
andar depressa. É a maior “deadline” de sempre (risos). Espero ter todas as
canções prontas até Outono e fazer sair o disco na Primavera.
P.
– 99,9º graus Fahrenheit de febre. Que acontece quando se chega aos 100?
R. – Começa-se a alucinar. É quando
percebemos que estamos realmente doentes.
P.
– Uma das suas canções chama-se “Tired of Sleeping”, “cansada de dormir”. Alguma vez se sentiu cansada de estar
acordada?
R. – Constantemente! Apesar da
canção, nunca fico cansada de dormir. Quem me dera dormir mais! É algo que não
tenho feito nos últimos tempos. Desde que a minha filha nasceu, há quase cinco
anos, não consegui dormir duas noites seguidas.
P.
– Alguém lhe oferece uma fortuna para fazer um concerto só com versões instrumentais. Aceitaria o desafio?
R. – Não. Porque não teria muito
sucesso. Tudo o que existe de importante nas minhas canções está nas letras.
Seria um concerto chato e as pessoas pediriam de volta o dinheiro dos bilhetes.
Os organizadores iriam à falência e eu nunca mais poderia voltar a trabalhar.
19/12/2016
Explosão Kepa [Festival Cantigas do Maio]
SEGUNDA-FEIRA, 31 MAIO 1999 cultura
Acordeonista
basco e ciganos da Roménia “arrasam” no Seixal
Explosão Kepa
KEPA JUNKERA
destroçou, literalmente, todos os obstáculos que se lhe depararam, na noite de
sábado, segunda do festival Cantigas do Maio, que este fim-de-semana teve a sua
primeira etapa no Seixal. Kepa pulverizou todas as expetativas. Conseguiu mesmo
a maior proeza de todas: calar uma parte do público que fora para ali palrar em
voz alta. Há também os que ouvem música com as mãos e aproveitam a menor
aceleração dos instrumentos para bater palminhas fora do compasso. Até esses
Kepa e a sua banda levaram de vencida.
Na música de Kepa Junkera o prazer
da festa e a comunicação intensa com o público andam a par da experimentação e
da complexidade que se notam, sobretudo, no discurso a solo do virtuoso da
“trikitixa”, que terá assinado (diz quem já o ouviu várias vezes ao vivo) na
noite de sábado no Seixal um dos melhores concertos da sua carreira. Kepa
fintou, acelerou, guerreou e dançou com o seu acordeão. Os outros elementos da
banda ajudaram ao ritual. Se quisesse, o acordeonista podia conquistar uma
plateia de rock. Encher estádios. Pôr dezenas de milhares aos pulos.
O som da “txalaparta”, espécie de
xilofone gigante tocado a quatro mãos por Harkaitz Martinez e Igor Otxoa,
constituiu uma força dentro da força, ritmo da terra e da madeira, minimalismo
étnico, chamem-lhe o que quiserem. Chegou a ser épico, quando a batida se
aproximava das ancestrais danças “morris” inglesas, lembrando os feitos
gloriosos dos Albion Band ou a energia magnética que percorria a “big medieval
band” de Shirley Collins. O público enlouqueceu. Sempre em crescendo, com um
domínio absoluto do tempo (dentro de cada tema e na estrutura de todo o
espetáculo), Kepa Junkera ultrapassou tudo o que dele se esperava, terminando
em velocidade vertiginosa, com a “trikitixa” em sangue, a pedir clemência. Mas
também ela, como toda a gente nesta noite que ficou para a História, estava
feliz.
Que fazer depois de uma loucura
destas? A Fanfare Ciocarlia, que veio a seguir, conseguiu o inacreditável:
animar ainda mais o público, levando-o ao paroxismo. Habituados a tocar nas
cerimónias festivas da sua Roménia natal, durante 24 horas ou mais, a banda
cigana carregou com toda a força no pedal do acelerador até ser preciso gritar:
“Basta!” Sousafones e uma tuba, trompetes e um clarinete, um tambor a
trabalharem sem descanso. “É a fúria dos Balcãs!”, gritava alguém, em delírio.
“Por estas e por outras é que a NATO não se atreve a combater no terreno, na
Jugoslávia”, exclamava outro. Mas era impossível acompanhar até ao fim a
pedalada da Fanfare Ciocarlia, depois do esforço despendido com os bascos.
Houve quem dormisse, derrotado. Mas a maioria dançou até cair para o lado,
bebendo até à última gota uma das melhores noites de “world music” de que há
memória em Portugal.
Tudo o resto se apagou: o
classicismo dos JPP, que, na véspera, trouxeram da Finlândia intrincadas
harmonias violinísticas e a arte do contraponto, o baile habitual da Brigada Victor
Jara e a religiosidade das polifonias vocais dos Camponeses de Pias e do
Tavagna, da Córsega. Ou a festa que aconteceu depois, já na tenda de convívio,
onde os corsos fizeram erguer o som das suas vozes acima do barulho dos copos e
se revelou o talento de Francisco Pimenta, um jovem tocador de gaita-de-foles
que irá dar que falar.
O Cantigas do Maio termina no
próximo fim-de-semana com Yungchen Lhamo (quinta-feira, 3, no Fórum Cultural),
Galata Mevlevi Musik e Sema Ensemble, La Bottine Souriante (sexta, 4, na
Fábrica Mundet), Susana Baca e Milladoiro (sábado, 5, na Mudet).
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