Já disponível o volume 1.2 dos Escritos de Fernando Magalhães. Edição revista e aumentada dos textos de 1991:
28/07/2022
26/01/2022
Verlaine tocou só e mal acompanhado [Tom Verlaine]
SEGUNDA-FEIRA,
7 MAIO 1990 cultura
Verlaine tocou só e mal acompanhado
TOM
VERLAINE tocou guitarra e cantou sozinho, sábado à noite, na sala, à cunha, do
Alvalade, em mais uma iniciativa integrada na Semana Académica de Lisboa.
Interpretou canções do recente álbum “The Wonder”. Os fanáticos gostaram. Os
outros exasperaram-se afirmando ter pago gato por lebre.
Alguns dias antes do concerto corria
o boato de que John Cale, que recentemente tocou em Portugal, acompanhado
apenas ao piano, ter-se-á encontrado com Verlaine e dito qualquer coisa como:
“Os gajos (os portugueses) gostam de tudo. Levas só a guitarra, como eu fiz com
o piano, que eles gostam na mesma”. Dito e feito. Tom trouxe a guitarra. A
segunda asserção de Cale é que se mostrou menos correta. O público, na sua
maioria, sentiu-se defraudado e protestou. A quase dois contos o bilhete
deveria ter dado direito a mais. Pelo menos três ou quatro instrumentos a, vá
lá, 600 paus cada...
Viola do Saco
Mas nem tudo foi mau nesta primeira
prestação ao vivo no nosso país do antigo líder dos Television. O palco, sóbria
e eficazmente iluminado, em tons de vermelho e roxo, decorado com algumas
folhas de palmeira dando um toque de exotismo ao quadro, criava um ambiente
misterioso e intimista. O som esteve perfeito, permitindo distinguir cada nota
da guitarra e inflexão da voz. Quem quis acompanhar as aventuras narradas nas
letras das canções do romântico Verlaine, não teve razões de queixa. Até o que
não foi dito se conseguia ouvir. O pior foi que, à medida que o “espetáculo” ia
decorrendo, a voz (excelente) de Verlaine e o som cristalino da guitarra
acústica, não se revelaram suficientes para o interesse da assistência. As
pessoas não estavam preparadas para ouvir histórias, contadas por um tímido
trovador de guitarra em punho e pose distante. Depois do festival de som e
carne de Kid Creole & The Coconuts e do rock australiano dos The Church, o
choque foi demasiado brutal.
Chachada
Começaram os assobios e apupos e a
debandada para o bar quando não o abandono puro e simples do recinto. A partir
de certa altura, as canções passaram enfadonhamente a soar todas de modo
semelhante, demonstrando que o formato de apresentação escolhido não é o mais
aconselhável para este tipo de sala. A própria voz de Verlaine, por muito boa
que seja, tornou-se irritante, por força das mesmas inflexões e do tom “soft”
mantido durante todo o concerto, sendo óbvia a necessidade de um mais
consistente apoio instrumental, à semelhança aliás do que acontece no disco. À
guitarra apeteceu metê-la no saco.
“Chachada”, “seca” ou mesmo “o tipo
merece levar uma lição” foram algumas expressões escutadas durante deambulações
pelo recinto, exprimindo os sentimentos mais profundos dos presentes,
reveladores do desespero e, nalguns casos, ódio surdo, que lhes corroía a alma.
Intimamente dei-lhes razão, Não se faz uma maldade destas a quem esperava uma
segunda versão dos Television ou uma reprodução tão fiel quanto possível da
exuberância de “The Wonder”. Quem ficou a ganhar foi a organização que deve ter
feito uns bons contitos à custa da simplicidade de meios. Para um próximo
concerto sugere-se o “playback”, sempre fica mais barato...
25/01/2022
O canto da sobrevivência [Egberto Gismonti]
cultura
SEXTA-FEIRA, 4 MAIO 1990
“Dança dos Escravos” é o mais recente
álbum gravado por Egberto Gismonti
O canto da sobrevivência
Egberto
Gismonti dança e avança pelos sons como os exploradores desbravando os medos do
sertão. Danças de academia, do interior das cabeças ou dos escravos presos só
por fora são outros tantos movimentos, do corpo e do espírito, fundidos no
caldeirão caótico da música e cultura brasileiras. Egberto demanda a
quintessência primordial.
O
seu trabalho é o de alquimista.
“Dança dos Escravos”
é o mais recente álbum gravado para a editora alemã ECM. “A música dos escravos
brasileiros expressa-se através de formas variadas. Para além de canto de
sobrevivência, constitui também um modo de libertação, uma fora de comunicação
com o sagrado”. A escolha da guitarra, único instrumento utilizado no disco,
prende-se a uma atitude muito especial de “ver” e ouvir os sons. “Já gravei
discos com toda a espécie de combinações instrumentais. A guitarra é, por
oposição ao aristrocático piano, mais romântica, ‘cantadora’ e, no caso do
Brasil, mais africana, daí a escolha. Procuro ainda desenvolver uma linguagem
guitarrística introduzida há trinta anos atrás por Baden Powell, vulgarmente
designada por ‘Afro Samba’”. Para o efeito, Egberto utiliza guitarras que vão
até às de 14 cordas. “O número de cordas é diretamente proporcional ao número
de vindas à Europa. Para a próxima o número de cordas aumentará ainda mais!...”
Trocas
A discografia de Gismondi estende-se
a 45 álbuns, bem contados, desde a música para crianças, “delírio de alguns
editores, que a etiquetaram como tal”, teatro, antigas colaborações com nomes
da MPB ou, mais recentemente, com Charlie Haden ou Jan Garbarek, até inúmeros
projetos a solo, dos quais só uma pequena parte chega à Europa, aquela que
Manfred Eicher, patrão da ECM, tem vindo cuidadosamente a registar. “A ECM
proporcionou-me um tipo de música que eu antes nunca tinha experimentado. Até
77/78, altura em que comecei a gravar para a editora, como solista. Até então
trabalhara sobretudo como arranjador e orquestrador. Em “Dança das Cabeças”,
primeiro da série alemã, descobri em mim próprio uma nova maneira de traduzir a
música do Brasil. Em “Sanfona” utilizei um grupo de músicos brasileiros e uma
aproximação, digamos que mais clássica, das origens. Ao mesmo tempo comecei a
gravar discos no Brasil, como “Alma”, próximos do conceito estético ECM. Houve
uma inversão, uma troca. Toda a minha música é uma constante troca, de técnicas
musicais que mutuamente se influenciam, de culturas, de diferentes maneiras de
sentir.”
Egberto Gismonti assimilou processos
e ensinamentos que vão desde Villa-Lobos, ou a cultura dos índios Xingu, entre
os quais viveu durante alguns anos, à literatura e música ocidentais
contemporâneas.
Acerca de Heitor Villa-Lobos,
Egberto desenvolve um curioso raciocínio: “Villa-Lobos significa quantidade e
não qualidade. Nós brasileiros só atingiremos a qualidade através da quatidade.
À partida não temos nenhuma forma estabelecida. No Brasil coexistem tribos
desconhecidas como a dos Xingu a par de problemas com centrais nucleares. É o
caos apocalíptico das origens e do fim. Vale tudo. A minha música reflete isto
mesmo, aproveito tudo, retendo o essencial e deitando fora o que não presta.
Sempre procurei dar um caráter sintético a tudo o que penso e faço. Creio que o
consegui nalguns casos, sempre a partir da quantidade, do maior número possível
de misturas”.
O método utilizado se em parte é
intuitivo (“O que eu sei é deixar impregnar-me pelos sons. Não tenho a menor
capacidade de organicidade”), não dispensa, todavia, o rigor da escrita direta
no computador ou uma perspetivação intelectual e cultural de todo o trabalho.
Essa auto-consciência e faculdade de
distanciação deve-a, segundo afirma, ao que aprendeu entre os Xingus, “saber
falar, executar e saber escutar. O momento fundamental desta aprendizagem
consistiu precisamente em saber dizer e escutar o silêncio”, mas também aos
ensinamentos recebidos na infância. “O meu pai é libanês e desde cedo
habituei-me a escutar os sons orientais. A minha mãe é italiana e fez-me ouvir
as árias de ópera. Ouvia as típicas ‘seresteiras” brasileiras, música de
bandas, tudo”. Para Egberto Gismonti qualquer som pode ser musical (“outro dos
meus mestres, Edgar, chefe de banda, disse-me coisas como ‘bata numa mesa,
sopre numa garrafa, isso é música também’”), perspetiva compartilhada com
Hermeto Pascoal, seu companheiro de aventuras em muitas ocasiões.
Música absoluta
Como Hermeto, também o autor de
“Corações Futuristas” utiliza a arte como uma forma de contestação não
panfletária, mas partindo do pressuposto estético de que a originalidade, por
ambos naturalmente cultivada, é, pela sua diferença, pelo criar de uma
realidade oposta à estabelecida, uma forma de contestação e afirmação de
liberdade. Liberdade que, em última instância se confunde já com uma
experiência religiosa, de ligação a um nível superior, transcendente, de
existência. “Em ‘Dança dos Escravos’ existe uma ligação íntima com formas de
religiosidade tradicionais como o espiritismo, o ‘Candomblé’... Tenho como
grande objetivo na minha vida a ligação a algo superior, que consigo sentir mas
não compreender”.
Quem já teve oportunidade de ver
Gismonti atuar ao vivo, agarrado à guitarra, um pouco à maneira do nosso Carlos
Paredes, perdido e totalmente imerso nessa superior forma de comunicação que é
a música, decerto compreenderá o sentido de tal liberdade. “Tocar é o momento
em que o intérprete, o instrumento e a música passam a ser um todo tocado por
alguma coisa que não consigo definir. Gravo os meus discos num estúdio em casa,
pra conseguir atingir esse estado de total recetividade”.
Recetividade que também não tem
faltado por parte do público português, às aventuras e viagens musicais deste
peregrino do Absoluto. “O meu grande projeto futuro é um trabalho global
baseado nas sistemáticas recolhas e estudo do folclore brasileiro levados a
cabo nos anos 20 pelo musicólogo Mário de Andrade, em que utilizarei o atual
grupo mais uma orquestra sinfónica com perto de cem elementos”. A obra, com
futuro discográfico ainda incerto, será apresentada em Novembro próximo e já
tem título: “Melodias Registadas Por Meios Não-Mecânicos”. Apoteose grandiosa
de um percurso exemplar.
Tom Petty & The Heartbreakers - Live!
Suzanne Vega - Days Of Open Hand
24/01/2022
Lou Reed & John Cale - Songs For Drella
Sérgio Godinho canta aos amores e desamores
TERÇA-FEIRA,
1 MAIO 1990 cultura
Sérgio Godinho canta aos amores e
desamores
Sérgio Godinho,
“escritor de canções”, iniciou na sexta-feira à noite, no Instituto
Franco-Português, uma série de espetáculos que continuará até 19 de Maio.
Excelente oportunidade para escutar, num ambiente diferente do habitual, as
canções do trovador dos nossos desamores.
Sala cheia e uma
enorma expetativa rodeavam a apresentação ao vivo de Sérgio Godinho no novo
desafio e desempenho que este se propôs encetar, devolvendo aos nossos
sentidos, memória e coração as canções que fizeram parte integrante da vida de
toda uma geração e que parecem querer seguir connosco pela vida fora. A música
de Sérgio Godinho tem essa capacidade única de conseguir transpôr vivências pessoais
para um contexto mais lato, em que cada um faz suas as experiências do poeta. É
também o espelho com que se confronta uma Lisboa marcada pela nostalgia do
tempo perdido, afogada em Fado e nevoeiros, copos e vielas de má fama, sonhos
de grandeza eternamente adiados na miséria do quotidiano. Circulando por entre
o labirinto de bairros e emoções da cidade, cada um procurando nos encontros
com a imagem (ou miragem) do Amor também perdido, a pausa de descanso, a ilusão
compartilhada, que por vezes “sabendo a tanto”, quase sempre “sabe a pouco”.
Guardar silêncio
Por isso e porque Sérgio, além de
saber construir palavras com música, sabe, como ninguém, cantá-las, com a voz,
o olhar, os gestos e, o que é mais difícil, o próprio silêncio, aqueles que
ainda conservam em si uma criança, sabem também, “com um brilhozinho nos
olhos”, comover-se e guardar silêncio.
A assistência desta noite, composta
por gente de todas as idades, reconheceu, compreendeu, vibrou, calou, riu, se
calhar chorou, ou simplesmente acompanhou, consoante o estatuto estário e
diferente grau de envolvimento, os pedaços de vida que Sérgio, como ator de um
passado presente, foi desfiando, ao longo de uma arrebatadora atuação,
sabiamente encenada até ao mais ínfimo pormenor.
Os vários aspetos que constituíram a
atuação do cantor foram estudados e postos em prática de molde a cumprir um
objetivo previamente definido: despojar as canções de todo e qualquer excesso
formal, despindo-as do artificialismo de arranjos e produções envernizadas, e
revelá-las na sua força e beleza originais. Como refere o compositor: “Quando
há coisas a mais, a linha do horizonte fica menos nítida”. Para o efeito, foram
escolhidos, como únicos acompanhantes, Nani Teixeira, no baixo elétrico, e
Manuel Faria, nas teclas. Toda a movimentação de palco e encenação dos temas
foi organizada e comandada, com mão de mestre, por Ricardo Pais. O cenário,
simultaneamente negro e ofuscante, jogando no par de opostos, escuridão/luz,
inseparável e indissociável da arte e da vida, foi imaginado por Paulo Graça. A
produção é de Paulo Pulido Valente.
Um espetáculo
diferente
Ao longo de mais de hora e meia de atuação,
o autor de discos brilhantes como “Sobreviventes”, “Pré-Histórias” ou “Pano
Cru”, marcos da moderna música portuguesa, declamou, conversou e sobretudo
cantou (por vezes acompanhando-se simplesmente à guitarra acústica) antigas e
recentes canções (estas do último álbum, “Aos Amores”), apresentando pela
primeira vez dois temas inéditos, “Circunvalação” e “Notícias Locais”, este já
num dos dois “encores” finais exigidos pelo público.
Sérgio Godinho arriscou um
espetáculo diferente e ganhou. Alternou momentos intimistas, desvelando mágoas
e alegrias, fugas e avanços na difícil arte de estar vivo, com explosões de
extroversão, dando espaço instrumental aos restantes músicos e aliviando
tensões e, quem sabe, culpas, entretanto acumuladas. Viagem por paisagens
exteriores e interiores que passou e culminou, nos últmos versos e acordes do
concerto, no tom de abandono e despojamento, angústia e acordar de todos os
sonhos, de “Alice no País dos Matraquilhos”. Depois o silêncio e o exorcismo
final expresso numa imensa e reconhecida salva de aplausos.