29/07/2016
26/07/2016
Grateful Dead - So Far
Pop Rock
1990
VÍDEOS
GRATEFUL DEAD
So Far
Edivideo
Passados 23 anos, os
Grateful Dead insistem na imagem de papas do psicadelismo. Extintos há muito os
Quicksilver Messenger Service e com os Jefferson Airplane reduzidos à condição
de caricaturas, a banda de Jerry Garcia permanece como último e fiel baluarte
do movimento iniciado na costa Oeste americana com a ajuda das teorias do
professor Timothy Leary e a filosofia emergente do pacifismo “hippie”. “So Far”
apresenta os Grateful Dead interpretando ao vivo, no Coliseu de Oakland, sete
temas: “Not Fade away”, “Uncle John’s Band”, “Playing in the Band”, “Lady with
a Fan”, “Space”, “Rhythm Devils” e “Throwing Stones”, intercalados de imagens
do mais puro estilo psicadélico. No início, a coisa apresenta-se normal: dois
temas lentos, convencionais, acompanhados por imagens vulgares, para não
destoar do ar de veterania exibido pelos diversos músicos. Explosões de
fogo-de-artifício, sincronizadas com frases do tipo “Can you See the Light” ou
cromos de casas rurais anunciando “como é bom viver no campo”, compartilhando a
felicidade com galinhas, vacas e couves lombardas. Depois, uma sucessão de
paisagens aéreas, mostrando mares, rios, pores-do-sol, searas ao vento e como o
nosso planeta pode ser bonito se for bem tratado. Tudo bem, pensamos, são a
mensagem e imagem possíveis após a ressaca do LSD. “Não há tempo para odiar” –
canta Jerry Garcia candidamente, como se fosse possível acreditar. Em “Uncle
John’s Band” somos confrontados com retratos de pessoas. Num deles, uma família
come, à volta de uma mesa. “Inserts” de fotografias de bisontes. Presume-se que
a família se refastela com suculentos bifes do citado bicho. Ou então, o que é
mais provável, contenta-se com depenicar verduras, numa evidente mensagem
ecológica de proteção à espécie. Chega a vez a dança, em “Lady with a Fan”.
Orquestras e dançarinos, “swing” e “rock’n’roll”, com muitas saias esvoaçantes
e cuequinhas à mostra. Multidões aplaudem. O quê? – pergunta-se. Um par
romântico, réplica da dupla Ginger Rogers/Fred Astaire, evolui em volutas
irreais, ele todo entradas e brilhantina, ela vestido rodado, qual cinderela em
baile de debutantes. Finalmente uma orgia de pernas, transformadas em
psico-pernas-fractais, em simetrias caleidoscópicas, reduzidas a um padrão
repetitivo e abstrato. E, de repente, quando nada o fazia prever, a grande
“trip”, uma ”acid jam” como nos bons velhos tempos. Quinze minutos de pura
desbunda instrumental, com improvisações eletrónicas e percussivas e imagens à
boa maneira hipnótico-alucinogénea do passado. Num quarto de hora alucinante,
passa-se em revista a história do Universo, desde o Big Bang e a expansão das
galáxias até ao apocalipse industrial da atualidade, passando pela visão de
protozoários na brincadeira, coloridas espirais de ADN, um especial “National
Geographic” e um “compacto” Terceiro Mundo. Os horrores da atualidade
(poluição, guerra e outros do estilo) são apresentados em imagens de arquivo, a
vermelho e negro, dando por fim lugar a um tom mais otimista com a Terra vista
do espaço, toda engalanada de azuis e verdes oceânicos. A arte, outro dos
tópicos importantes da temática humana. Ocupa também, como não podia deixar de
ser, um lugar de destaque no aparato visual do vídeo. Vitrais de catedrais
figurando a pomba do Espírito Santo, sobrepostos a baixos relevos e mandalas
orientais. Antes já tinha sido o surrealismo e as cartas mágicas do Tarot,
evoluindo sobre uma paisagem digital do tipo “chão em tabuleiro de xadrez com
montanhas roxas no horizonte e uma lua no céu”, criada pelo departamento
gráfico da RTP, com o recurso às “técnicas mais sofisticadas”. O mais engraçado
reside em que esta estética, dir-se-ia ultrapassada, resulta em pleno,
transportando-nos aos poucos para essa época, não muito distante, em que se
viviam todos os sonhos como se fossem realidade. ***
The Waterboys - Room To Roam
Pop Rock
1990
VIVER NO CAMPO
THE WATERBOYS
Room to Roam
LP e
CD, Ensign, ed. EMI/Valentim de Carvalho
Os
irlandeses sentem o apelo irresistível das origens. Alguns vão até ao fundo e
obedecem à chamada, mergulhando totalmente nas sonoridades ancestrais. São às
centenas e mantêm viva a chama da tradição. Integram o vasto mundo da chamada
“música folk”, incensada pelos conhecedores, seguida com alguma atenção e
ocasional interesse pelos curiosos e apreciadores de música em geral. No meio,
estão os que se ficam pelas meias-tintas. Não se atrevendo a confinarem-se ao
círculo restrito da folk, optam por integrá-la em correntes mais acessíveis, a
principal das quais é o rock, como não podia deixar de ser. Uns mais do que
outros tornam-se permeáveis ao som dos antepassados, deslocando-o para
contextos mais apelativos e suscetíveis de rentabilização.
Do lote
dos mais ilustres praticantes da nova vaga folk rock fazem parte os Pogues, The
Man They Couldn’t Hang e os Oyster Band, de raízes urbanas e virados para mercados
onde competem, de igual para igual, com a imensidade de bandas independentes
que pululam no Reino Unido.
Os
Waterboys não escondem o amor que nutrem pela mãe rural. O mais engraçado é que
até nem são irlandeses, mas sim escoceses. “Room to Roam” investe no entanto
numa incursão decidida pelo folclore irlandês, retomando com maior convicção a
via já anteriormente trilhada em álbuns como “This is the Sea” e principalmente
“Fisherman’s Blues”. Mike Scott aventura-se pelas danças e baladas
tradicionais, sem preconceitos nem falsos purismos. Sabe que não pode competir
com os “folkies” genuínos nem será isso que lhe interessa. No seu caso trata-se
antes de uma prolongada e sincera relação de amor pelo passado riquíssimo de
uma ilha cuja história também se construiu de lendas, e da oportunidade de o
dar a conhecer a um público alargado, sem que no processo se notem sinais
evidentes de interesses comerciais mal disfarçados.
Fazem
parte do álbum dezassete temas, alguns deles de curta duração, pouco mais de um
minuto, pequenos apontamentos retratando momentos mágicos e intemporais de uma
História imaginada. “In Search of a Rose”, “Upon the Wind and Waves”, “Spring
comes do Spiddal”, “Natural Bridge Blues” (com alusões à música “cajun”), “Trip
to Broadford”, “The Kings of Kerry” evocam atmosferas misteriosas e danças
jubilosas, a guitarra elétrica quase parecendo intrusa, entre a
respeitabilidade ancestral do violino e a delicadeza aérea do “tin whistle”,
instrumentos da praxe neste campo. “A Man is in Love”, “Something that is gone”
ou “Further up, Further in” são alguns bons exemplos de baladas que completam
de forma coerente a tonalidade geral do disco, com a voz de Scott lembrando por
vezes um pouco a de Don McLean e saxofones “limpinhos” dando o toque de
contemporaneidade onde este não seria de todo necessário. O instrumental
“Something that is gone” ou o tradicional “Raggle Taggle Gypsy” fariam passar
os Waterboys por um típico grupo folk, se escutados isoladamente por ouvidos
não iniciados. “Room to Roam” é um disco apelativo, bem mais interessante que a
megalomania U2 e o seu séquito de imitadores, capaz de satisfazer os
incondicionais da banda e de converter mais uns quantos fiéis, em prol da causa
folk. Os já convertidos sorrirão, condescendentes; os neófitos darão pulos de
entusiasmo.
Prefab Sprout - Jordan: The Comeback
Pop Rock
1990
DIZ-ME ESPELHO MEU:
HÁ ALGUÉM MAIS GÉNIO DO QUE
EU?
PREFAB SPROUT
Jordan: The Comeback
LP,
MC e CD, CBS, distri. CBS
Incensa-se
o homem e a sua genialidade como compositor. Ele próprio não se faz rogado,
proclamando bem alto não ser necessário procurar mais o novo messias da música
pop. Ele, Paddy McAloon, levará à terra prometida o rebanho tresmalhado dos
“songwriters” confundidos e em busca de luz. Ele é o mestre, o resto do mundo
uma procissão de discípulos, com os mais exaltados à frente, brandindo o
“Melody Maker” e o “New Musical Express”, anunciando a boa nova, a descida à
terra do deus das canções imaculadas.
Olhando-se
para a fotografia do homem, na capa de “Jordan: the Comeback”, não se lhe
adivinham as tendências messiânicas. A pose é altiva, certo, o olhar perdido na
contemplação das ideias musicais, o caracol do lado direito da cabeça voltado
para o céu, sugerindo talvez a antena que lhe serve para receber a inspiração
cósmica. O olho do mesmo lado, oculto no negrume, simbolizando o nigredo
alquímico, fundamental para a gestação da “obra”. Mas, no todo, a imagem que
fica é a de uma figura sóbria, “clean”, de aspecto saudável e inteligente.
“Jordan” é
a sua mais recente contribuição para a arte musical do nosso século: mais de
uma hora (não fez a coisa por menos) de música, distribuída por dezanove
canções, em que canta temas tão diversificados como “o amor”, o Amor ou
simplesmente o amor. Claro que não desce ao nível do “I love you babe” dos seus
colegas de ofício menos instruídos, para quem o tema se reduz à beijoca da
praxe e às atividades que por vezes se lhe seguem, de índole variável mas
geralmente agradável, ou aos desencontros e grandes dores morais provocados
pelo amor platónico, que, segundo a sapiente definição, “como tónico que é,
serve para abrir o apetite”. No caso de Paddy, o motor que faz andar o mundo,
desenrola-se sempre em cenários grandiosos e exóticos como a Atlântida, Ibiza,
o Harlem ou, mais grave ainda, nas recônditas profundezas da alma humana. As
personagens são Deus (nas letras mais autobiográficas), Lúcifer, Galileu, o rei
David, tudo gente de meter respeito. A Jesse James dedicou uma sinfonia e um
bolero.
Por estas
e por outras, se vê que, do ponto de vista poético, estamos perante um génio.
Há tiradas grandiosas do tipo “se procuras a Atlântida, devias deitar um olhar
cá para o rapaz” (tradução livre dos primeiros versos do tema que abre o
disco). E, se ele, Paddy, é o exemplo do amante ideal, não admira que “o mundo
inteiro ame os amantes”. Mas não se desconsidere mais o rapaz, deixe-se o tom
irónico e reconheça-se que, por este lado, até não há muitas razões de queixa,
se compararmos o estilo com a alarvidade patente na maioria dos produtos que
usurpam desavergonhadamente o estatuto de “canção”.
Passe-se então
para a música propriamente dita, para os sons, para o “tataratata”, que é, no
fim de contas, o que faz vibrar o tímpano do auditor. Paddy McAloon possui uma
voz doce, daquelas que pulverizam todas as defesas erguidas pelo raciocínio mal
intencionado ou a sensibilidade empedernida. É mais do tipo “lalarilolé” do que
“tataratata”, insinuante, deslizando por entre os instrumentos, elegante,
límpida, soletrando bem cada palavra, cada sílaba, mesmo as mais difíceis.
Chega a parecer sobrenatural o modo como consegue cantar de seguida as dezanove
canções, sem nunca se enganar. Proeza só ao alcance dos eleitos. O que incomoda
um pouco é o facto de todas elas se assemelharem bastante entre si. À quinta é
provável uma ligeira sugestão de monotonia. À décima fica-se completamente
sugestionado. À décima nona compreende-se finalmente a intenção do mestre em
demonstrar uma unidade conceptual indestrutível.
Volta-se a
ouvir o disco e, postos a funcionar os mecanismos psíquicos impeditivos do
sono, reconhece-se finalmente que sim, que sim, que “Jordan” é uma obra-prima,
um portento de originalidade, Paddy McAloon já há muito devia habitar o Olimpo,
ao lado dos seus pares. Os pobres, os miseráveis excêntricos como Peter
Blegvad, Anthony Moore, R. Stevie Moore, Fraser, Edward Ka-Spel, que ousam
escrever canções “esquisitas”, inspiradas sabe-se lá por que terríveis
divindades pagãs, e desafiar os “consagrados”, deviam ajoelhar e pedir perdão
pela ousadia. E agradecer a Paddy (os outros, Wendy Smith, Neil Conti e o irmão
Martin, quase nem contam) os ensinamentos proporcionados por este autêntico
compêndio de “canções pop, que desprezam as modas e para as quais vender é
secundário”.
Apesar de
tudo, no fim, fica-se com a impressão incómoda de que o estendal de maravilhas
se deve essencialmente ao trabalho do senhor da produção, um tal Thomas Dolby,
que aqui se desdobra numa série de milagres, inventando luxuosos revestimentos
sonoros para cada um dos dezanove quadros encenados. Ao vazio melódico e
repetitivo de muitas das canções (propositado, claro), responde Dolby com
outro, aparente, construindo, a partir de uma discreta mas complexa utilização
das possibilidades oferecidas pelo estúdio, uma sucessão de reflexos e
refrações, cintilações ofuscantes, fazendo da voz de Paddy um brinquedo
passível de subtis transformações, acrescentando a cada canção o toque de uma
harpa, um eco final, a pulverização da estrutura instrumental convencional. O
génio encontra-se frequentemente onde menos se espera.
Fairground Attraction - Ay Fond Kiss
Pop Rock
1990
FAIRGROUND
ATTRACTION
Ay Fond Kiss
LP e CD, RCA, distri. BMG
Agora que o Verão se
instalou em força, e os miolos torram, aprisionados em corpos estendidos no
areal, discos como este dos Fairground Attraction, sabem bem. Refrescam, lançam
gotas de luz que não obrigam ao uso de óculos escuros e protetores, para
suavemente deslumbrarem, durante minutos, até se evaporarem no ar vibrátil e
solar. São quatro jovens, duas guitarras, bateria e uma voz feminina, de menina
ingénua. Chama-se Eddi Reader mas não precisa sequer de saber ler para
encantar.
“Ay Fond Kiss”, onda de
canções leves, “jazzy”, cujo refluxo deixa na alma uma espuma leve que pica e
colora enquanto perduram os sonhos efémeros da estação. Sade Adu, Carmel,
Isabelle Antena, Suzanne Veja, misturam-se num “cocktail” ao qual se retiraram
os ingredientes mais fortes, até nada restar senão o doce, suave e passageiro.
Melodias recatadas, à sombra de árvores perdidas na quietude do silêncio,
sussurram segredos, cantam a discreta mas vibrante alegria de estar vivo.
Sombras prolongando-se pela noite dentro, ao ritmo de rumbas e licores. Viagens
no comboio-fantasma da fantasia, como num conto de Bradbury. “Walking after
Midnight”, “Mystery Train”, “The Game of Love”, títulos evocativos de esboços
traçados languidamente na areia, enquanto o mar não os apaga. Canções
esquecidas em lados B de “singles” e “maxis”, a par de originais. A derradeira
“Ay Fond Kiss”, é um clássico tradicional irlandês, composto pelo grande Robert
Burns. Como um beijo, o disco deixa imperceptíveis marcas, que o tempo esvai e
faz esquecer.
Neil Young & Crazy Horse - Ragged Glory
Pop Rock
1990
CANÇÕES
ELÉTRICAS
NEIL YOUNG &
CRAZY HORSE
Ragged Glory
LP e CD, Reprise, distri. WEA
Datava de 1987, com a edição de “Life”, a última
colaboração de Neil Young com os Crazy Horse, que tão bons resultados dera nos
primeiros álbuns, “Everybody Knows this is Nowhere” e, mais tarde, “Comes a
Time”, “Rust never Sleeps” e “Trans”. Frank “Poncho” Sampedro, Billy Talbot e
Ralph Molina formam o trio básico guitarra-baixo-bateria, neste caso capaz dos
maiores desvarios e de elevar o nível decibélico a alturas inusitadas.
Com “Ragged Glory”, Neil Young produz um dos discos
que, em termos exclusivamente musicais, é dos mais violentos da sua carreira. É
o retorno à dureza original do rock’n’roll, à eletricidade e a uma
agressividade que chega a competir com as novas bandas “noise”, ao ponto de
levar um crítico como Edwin Pouncy, da revista “Vox”, a comparar o fruto mais
recente da associação Neil Young/Crazy Horse aos Sonic Youth.
Descontando o exagero, resultante talvez do
desconhecimento de anteriores trabalhos (recorde-se por exemplo a fabulosa
descarga de energia que é “Re-actor” ou as proezas guitarrísticas de “Zuma”),
ressalta realmente em “Ragged Glory” a inexistência de baladas, de temas mais
pausados, substituídos por uma cadência incansável de tempos médios,
propulsionada pela batida poderosa de Ralph Molina e pelos massacres sonoros
perpetrados pela guitarra de “Poncho” Sampedro.
Se procurarmos comparações, talvez possamos antes
encontrá-las nos Velvet Underground de “White Light/White Heat”, nomeadamente
no tratamento das cordas, com uma genial utilização do “feedback” e dos pedais
de “fuzz” aqui pisados até à exaustão. Do princípio ao fim do disco prevalece
um som agreste e ácido. Temas como “F*!#in’ up”, “Over and Over” terminam em
ruído puro, prolongando-se por alguns segundos com a eletricidade deixada à
solta. Neurose melódica, os instrumentos soltando chispas, a voz de Neil,
dificilmente mantendo a impassibilidade nasalada que a caracteriza, cercada e
empolgada pela “desbunda” dos colegas.
Em “Farmer John” (um clássico da dupla Don
Harris/Dewey Terry), atinge-se uma maior concisão e uma secura compassada que
lembram os Steppenwolf – “Hard rock”, se quisermos, para utilizar uma expressão
caída em desuso. “Mansion on the Hill” devolve-nos o Neil Young dos primórdios,
a letra mencionando o eterno “old man walkin’ in my place” com “psychedelic
music filling the air”, provando que a costela de Woodstock não se perdeu. As
harmonias vocais de “Days that used to be”, fazem questionar como seria se Crosby,
Stills e Nash não se tivessem ido embora e perdido pelo caminho e o tom quase
“gospel” de “Mother Earth (Natural Anthem)”, sugerem talvez suavidades onde
estas não existem. Em ambos os temas as guitarras permanecem implacáveis, no
segundo desarticulando-se num fraseado saturado de efeitos, sem se perder o
sentido melódico, que encontrou em Jimi Hendrix o seu maior mestre e cultor.
“Ragged
Horse” dispensa quaisquer truques de produção e embelezamentos supérfluos,
provando definitivamente (se ainda era necessário fazê-lo) a incapacidade do
músico de se render às imposições do mercado, mantendo intocável a imagem de
“loner” de óculos escuros e ar de “junkie” mal arrependido, nas tintas para o
“show business” (glória rota e esfarrapada, como ironicamente anuncia o título)
a par de uma veia criativa que se diria inesgotável. No fundo permanece a velha
máxima: “Hey Hey, my my, rock’n’roll will never die” – Para sempre.
John Hiatt - Stolen Moments
Pop Rock
1990
JOHN HIATT
Stolen Moments
LP e
CD, A&M, distri. Polygram
O papel de
vítima, do desgraçado que não fez outra coisa senão sofrer durante anos a fio,
salvo mesmo à justa pela música das garras da miséria e da degradação, é um dos
favoritos dos profissionais do rock. Dá boa imagem, um passado difícil e a
vitória final do “self-made man”. Às vezes, as histórias de terríveis
sofrimentos padecidos pelo artista são um pouco exageradas pelas diretivas
editoriais que sabem como vender o produto quando o talento não abunda.
Noutras, as dificuldades dão reais, se bem que por si só não queiram dizer nada
em termos de qualidade. Mas que ajudam, ajudam. John Hiatt foi, desde a
infância, um desgraçado, a vida foi sempre sua madastra. Vingava-se escrevendo canções.
Aos 12 anos tinha escrito mais de 600, uma das quais dedicada à namorada de um
colega, porque ele, John, era “demasiado gordo e inseguro para entrar no mítico
mundo das mulheres”. Foi andando aos trambolhões pela vida fora até ao dia em
que compôs uma canção que foi êxito na voz de Tracy Nelson: “Thinking of You”.
Com o dinheiro ganho comprou um automóvel e o resto gastou-o em bebida. De copo
em copo, de angústia existencial em angústia existencial, lá foi gravando
discos e arrecadando uns cobres. Em “Stolen Moments” – confessa – conseguiu
finalmente “viver no seu próprio tempo” e até “divertir-se um pouco”. Há dias
felizes. Sobretudo para quem não tiver de ouvir o disco. Mais sopa FM, um
cheirinho a country, uma voz como os americanos gostam, ligeiramente rouca para
se perceberem as cicatrizes que a má vida deixou, produção “state of the
heart”, chegam para embasbacar e fazer babar a sensibilidade embotada de
muitos. Vai vender.
20/07/2016
Garth Brooks - No Fences
Pop
Rock
13
MARÇO 1991
LP’S
COWBOY SEM
FRONTEIRAS
GARTH BROOKS
No Fences
LP / MC / CD, Capitol, distri. Emi-VC
“Vende
220 mil discos por semana, nos Estados Unidos” – deve ser bom, com certeza. “Já
é dupla platina, por vendas superiores a dois milhões de exemplares” – deve ser
muito bom! “Primeiro lugar durante um mês consecutivo no top de álbuns
‘country’ da ‘Billboard’” – superdisco! No ano passado, “venceu dois prémios da
Associação de Música Country” – ultradisco!! “Nomeado para sete prémios da Academia
de Música Country – hiper, hiper! Uau!!! –, entre os quais ‘artista do ano’ –
ooohhh! –, ‘cantor do ano’ – não é possível! –, ‘single do ano’ – desmaios – e
‘álbum do ano’ – não há palavras!
Vergado
ao peso de tanto ouro e honrarias, o crítico colocou o disco no prato, com a
reverência que aos deuses é devida e o nervosismo inevitável de quem se
reconhece mero humano, lama que Garth Brooks deve pisar com botins de espora de
ouro, cravejados de diamantes. Enfim…
O
disco não é mau. Mas olha-se para todos os lados e não se vê razões para
embandeirar (tão) em arco. Na “Q”, por exemplo, dá-se-lhe cinco estrelas, com
base na menção dos prémios intermináveis e no argumento (entre outros) de Garth
Brooks possuir o “maior chapéu de ‘cowboy’ de Nashville”. Pela fotografia da
capa, ninguém diria… Na “Vox” (classif. Oito em dez), a mesma coisa – os
prémios, o sucesso, a voz agradável, blá blá blá. Garth Brooks ostenta um
indisfarçável ar “clean”, bem barbeado, olhar puro e decidido, que lhe dá a
imagem perfeita do “americano médio ideal, branco caucasiano, defensor das boas
causas e dos não menos bons lucros. A América, na altura do lançamento, em
vésperas de partir para a guerra, viu-se retratada na música e nas virtudes de
um “cowboy” (como Reagan, como Bush), de pistola e baladas em punho, preparado
para salvar a “honra da nação”. Sabe-se como os americanos se perdem de amores
por aquela que consideram ser, mais que o jazz – coisa de negros – a “sua”
música. São assim os americanos, trocam de bom grado a “grande música negra”,
nascida nas entranhas de New Orleans, por uma importação adaptada das ressacas
alcoólicas de irlandeses amigos de dançar e trabalhar.
“No
Fences” agrada e funciona na medida em que sabe vestir os valores mais
conservadores do género, com uma produção perfeita, que faz da clareza e rigor
extremos a sua maior arma. Tudo é nítido e evidente, desde a limpidez das
baladas (“If Tomorrow never Comes”, “The Dance”, “Friends in Low Places”) ao
rigor rítmico e ao balanço dos temas mais acelerados. Os instrumentistas sabem
o que fazem e fazem-no bem. Rob Hajacos corta a golpes de violino a respiração
e os corações em “The Dance”. As guitarras fulgem em “Wild Horses”. Canções que
correm como as águas de um rio imune às tempestades. Garth Brooks transporta consigo
os sonhos de uma nação inteira, montada a cavalo na ilusão de que o futuro fica
na direcção do pôr do Sol. Como Lucky Luke, Garth Brooks não pode falhar –
“poor lonesome cowboy”.
Para
sempre. ***
19/07/2016
Craobh Rua - The More That's Said The Less The Better
POP ROCK
19 Fevereiro 1997
world
Craobh Rua
The more that’s said the less the better
LOCHSHORE, DISTRI. MC
– MUNDO DA CANÇÃO
Embora gravando para uma editora
escocesa, os Craobh Rua são um quarteto irlandês, cuja formação é composta por
Mark Donelly (“uillean pipes” e “tin whistle”), Jim Byrne (guitarra, mandola e
voz), Michael Cassidy (rabecas) e Brian Connolly (banjo, bandolim e “bodhran”).
O elogio público parte de um escocês, Phil Cunningham, dos Silly Wizard, que
realça o misto de “excitação” e “descontração” que caracteriza a postura
instrumental da banda. As vocalizações de Jim Byrne lembram os Fairport
Convention e, em “Jock O’Hazeldean”, os Dando Shaft (quando é que alguém se
lembrará de importar as reedições em compacto?). As “pipes” de Mark Donelly
estão ao melhor nível do que se pode encontrar na ilha, sendo o grupo, no seu
todo, instrumentalmente seguríssimo. (8)
Muzsikás and Márta Sebestyen - Morning Star
Sons
3
de Outubro 1997
WORLD
O nome da rosa
Muzsikás and Márta Sebestyen
Morning Star (9)
Rykodisc, distri. MVM
Ao
longo das últimas três décadas os Muzsikás têm vindo a reforçar a posição de
expoentes da world music que alcançaram na sequência de uma discografia
exemplar e “performances” ao vivo verdadeiramente empolgantes (que o digam
todos quantos assistiram às duas atuações do grupo em Portugal, nos festivais
Cantigas do Maio, no Seixal, e Intercéltico, do Porto). A este sucesso a nível
internacional não é alheia a presença assídua da cantora Márta Sebestyen, que,
recentemente, deu o salto para o “estrelato” graças à sua contribuição para a
banda sonora de “O Paciente Inglês”, devorador da última edição dos Óscares de
Hollywood, e no megaêxito “Boheme” dos Deep Forest.
Mas
Márta Sebestyen não é a cantora dos Muzsikás da mesma maneira que Éva Molnár é
a cantora dos também húngaros Kolinda, por exemplo. São antes entidades
distintas que se completam na perfeição. Márta encetou mesmo uma carreira a
solo, tendo gravado os álbuns “Apocrypha” e “Kismet”, nos quais abordava,
respetivamente, as programações eletrónicas utilizadas de forma exaustiva e uma
world music que extravasava as fronteiras do seu país natal. Atreveu-se mesmo a
participar num projeto radical de música contemporânea como “Kaddish”, do
coletivo Towering Inferno.
Os
Muzsikás, pelo contrário, mantiveram-se sempre fiéis ao longo dos anos ao
reportório da Transilvânia ou dos Cárpatos, revelando, álbum após álbum, toda a
sua mestria na execução das csardas e outras danças tradicionais magiares,
embora avaliadas à luz de uma postura necessariamente modernizadora.
“Morning
Star” surge na sequência de álbuns como “The Prisoner’s Song”, “Márta Sebestyen
and Muzsikás”, “Blues from Transylvania” e “Máramaros”, funcionando de novo a
magia da aliança das baladas sinuosas cantadas por Márta Sebestyen (entre as
quais uma nova e galante versão, acústica, de um tema de “Kismet”, “I wish I
were a rose”) com o virtuosismo e o ecletismo instrumentais do grupo. Os longos
instrumentais “Füzesi lakodalmas”, “Ej, de széles”, “Baj, baj, baj” e
“Gyimesi”, incursões profundas nas vísceras e na alma húngaras, são panoramas
onde a síncope sanguínea dos ritmos convida tanto à dança como à introspeção.
Não assinado
Lar doce lar [Maura O'Connell]
Sons
29
Agosto 1997
Lar doce lar
Maura O’Connell nunca se considerou uma cantora tradicional, embora
tivesse feito parte dos De Danann. Um almoço glorioso e uma sessão de canto
numa quinta com Dolores, Rita e Sarah Keane contribuíram para a gravação do seu
novo álbum, “Wandering Home”, a descoberta da alma irlandesa e do caminho de
regresso para casa.
Da Irlanda para a América e de novo
para a Irlanda é o percurso desta cantora que, juntamente com Dolores Keane –
que considera a maior – e Mary Black, é uma das maiores vozes irlandesas da
velha guarda. Depois de uma passagem pelos De Danann, dedicou-se a cantar
autores contemporâneos, como Richard Thompson, no novo álbum “Wandering Home”,
que interpreta com o histrionismo de uma verdadeira atriz.
PÚBLICO
– “Wandering Home” é um retorno às suas origens irlandesas, diferente dos seus
álbuns anteriores, onde interpreta temas de vários compositores e o som é mais
americano...
MAURA O’CONNELL – Como eu, há muitas
pessoas que viajaram pelo mundo e se interessaram por outras músicasm além da
do seu país natal. Habituamo-nos de tal forma à música que nos está mais
próxima que a tomamos como algo natural, sem a valorizarmos o suficiente, ao
ponto de acharmos mais interessante o que ouvimos lá fora. Até que chega um dia
em que nos apercebemos da sua beleza, quase como turistas. Na verdade, nunca
prestara atenção suficiente à música irlandesa, mesmo nos dois anos em que
estive nos De Danann, a única experiência que tive com a música tradicional.
P.
– Na contracapa do disco refere, como uma das razões que a levaram a esta
aproximação, o ambiente familiar da sua infância, passada na casa em Ennis...
R. – Sim, mas em minha casa os meus
pais ouviam sobretudo ópera, por isso não se pode dizer que tenha crescido a
ouvir música tradicional, como aconteceu, por exemplo, com Dolores Keane. É
verdade que este disco é um regresso a casa, mas nos meus álbuns anteriores já
havia temas irlandeses, embora contemporâneos, canções de Paul Brady ou de
Gerry O’Beirne. Nunca me senti uma cantora tradicional, falta-me a
naturalidade. Considero-me antes uma cantora que canta o que quiser.
P.
– Falou em Dolores Keane. Nas notas de capa menciona também uma tarde memorável
passada com ela e com as suas tias, Sarah e Rita, determinante na gravação de
“Wandering Home”...
R. – Foi um dia mágico, num Verão em
que não parou de chover na Irlanda. Mas este foi diferente, maravilhoso. Elas
vivem numa quinta antiga, no condado de Galway. Estavam lá 30 ou 40 pessoas, a
equipa toda da digressão. Ofereceram-nos um almoço magnífico e, a seguir,
começaram a cantar, com toda a naturalidade. Já as conhecia antes, elas são
famosas nos círculos tradicionais, mas foi a primeira vez em que a sua música
me afetou profundamente. Não sei se por causa da informalidade da situação, a
simples visão de as ver cantar. Fiquei completamente apaixonada pelo som e pelo
sentimento. Para algué, como eu, que sempre gostou de música soul americana,
impressionou-me a alma com que as duas cantavam. Abriram-me os olhos. Percebi
que também havia soul na música irlandesa.
P.
– Por que razão foi viver para Nashville?
R. – Os meus interesses estiveram
sempre voltados para a música americana. Mas nos anos 80 a minha carreira
desenvolveu-se na Irlanda, depois de deixar os De Danann, quando comecei a
gravar os primeiros álbuns a solo. Acontece que a Irlanda é um país demasiado
pequeno para albergar a quantidade incrível de cantoras tradicionais que lá
existem. Depois, fiz muitos amigos na América, como o meu produtor Jerry
Douglas, que me fazem sentir muito bem aqui. E o meu marido é americano. Tenho
sorte em poder trabalhar também na Irlanda, como no projeto “A Woman’s Heart”.
P.
– O que pensa desse projeto?
R. – Vendeu milhões. Foi aquele que
obteve mais sucesso, de todos aqueles em que me envolvi. Um encontro das
cantoras mais velhas, como Dolores Keane, Mary Black e eu, com as mais novas,
Frances Black e Eleanor Shanley.
P.
– A propósito, que opinião tem de Dolores Keane, a cantora que a antecedeu nos
De Danann?
R. – Dolores é a rainha. Em absoluto,
a melhor cantora de todas.
P.
– É ou era?
R. – Bem, ainda acredito que, numa
noite boa, Dolores não tem rival. Lembro-me de a ver, há uns anos, em frente ao
microfone, era como se a música viesse diretamente da terra.
P.
– Voltemos a sua casa e à música que ouvia...
R. – Que não era tradicional, mas do
tipo de ópera ligeira, como algumas das canções deste álbum, “I hear you
calling”, composta por John McCormack, ou “Down by the Sally gardens”, em
oposição ao registo mais tradicional de “Down the moor”, por exemplo, que
surgiu da audição da música dos De Danann e de outros grupos dos anos 70. Mas a
minha memória está mais povoada com coisas do estilo de “lullabies” de
Brahms...
P.
– O álbum dos De Danann em que participa como vocalista principal é “The Star
Spangled Molly”. A seguir abandonou o grupo. Porquê?
R. – Como já disse, nunca me
considerei uma cantora tradicional. Eles dizem que me convidaram depois de me
terem ouvido cantar num bar, numa festa. Eu acho que foi por o empresário deles
me conhecer... Fui a primeira cantora a cantar com eles depois de Dolores
Keane, que esteve com o grupo por volta de 1974, 1975. Após uma fase com
cantores masculinos surgi eu, iniciando-se um período de dez anos dos De Danann
com vocalistas femininas. O convite inicial era para os acompanhar durante seis
semanas numa digressão pela América. Disse-lhes que não conhecia nenhuma canção
tradicional, mas para eles estava tudo OK. O que eu fazia nessa altura, e
continuei a fazer depois de sair do grupo, era cantar canções de autores de que
gostava, como Bonnie Raitt, Emmylou Harris, “Mississipi” John Hurt, velhos
blues.
P.
– Mas nesse disco canta praticamente só tradicionais...
R. – Sim, mas a verdade é que o único
tema vagamente tradicional que trouxe comigo quando entrei para o grupo era
“Maggie”, escrito em Chicago em 1850, que um amigo meu tocava na guitarra como
um blues urbano. Isto para se perceber que a maior parte dos temas de “The Star
Spangled Molly” foram compostos ou compilados na América, embora toda a gente os
tenha aceite como canções irlandesas.
P.
– A era dos chamados “Dias da rádio”, que dá uma atmosfra especial a esse disco
e que também está presente neste seu novo álbum numa canção como “I hear you
calling”, não é verdade?
R. – Precisamente. John McCormack, um
tenor, cantava esse tipo de reportório. Toda a gente fala dos tenores
irlandeses, ele era “o” tenor irlandês. Esta era também a música que ouvia em
casa dos meus pais, mas quando se é novo não se quer saber da música que os
pais ouvem. Há uns anos comprei uma série de CD de McCormack e foi aí que
descobri essa canção, composta em 1926.
P. – Antes de “The Star Spangled Molly” já tinha
cantado noutro álbum dos De Danann, “Anthem”, numa versão de “Let it be” dos
Beatles...
R. – As vozes principais pertenciam a
Mary Black e Dolores Keane. Eu fazia apenas o coro. Não cantei em mais nenhum
álbum dos De Danann.
P.
– Não é verdade. Canta na última canção de “Song for Ireland”, “Barney form
Killarney”...
R. – Canto o quê? Não canto nada, não
sou eu!
P.
– Temos o disco à nossa frente, onde podemos ler “voz de Maura O’Connell”. E
ouve-se, de facto, uma voz feminina...
R. – Não pode ser! Tenho que receber
os direitos de autor! [risos]
P.
– A sua carreira construiu-se, a partir dos De Danann, na América e em Nashville,
onde coheceu e colaborou com os New Grass Revival. Isso não a afastou do
público irlandês?
R. – Nunca me procupei com isso. Volto
a frisar o facto de que nunca fui uma cantora tradicional. O que fiz depois de
sair do grupo foi continuar o que já fazia antes. Na Irlanda, apenas meia dúzia
de pessoas é que me iria ver num clube folk qualquer. Em Nashville, pelo
contrário, logo o primeiro álbum que gravei a solo foi disco de ouro.
P.
– Fez parte dos De Danann, mas neste álbum colabora com Donal Lunny e canta um
tema de Paul Brady, que pertenceram ambos aos Planxy...
R. – Certo. Paul Brady nasceu, como
eu, no condado de Clare. Donal Lunny, que também pertenceu aos Bothy Band, é um
tipo formidável. Um dos melhores. A única coisa que tive de fazer foi cantar. O
álbum foi gravado em oito dias, um dos mais fáceis da minha carreira e, sem
dúvida, o que meu deu maior prazer.
P.
– Há no nov álbum uma canção, “Down where the drunkards roll”, de Richard
Thompson, onde a tragédia se escreve como um épico. Por que a escolheu, tendo
em conta que, como já disse numa outra sua entrevista, gosta de vestir a pele
das personagens que canta, assumindo o lado mais teatral da música?
R. – É uma “killer song”. Já a cantava
mesmo antes de entrar para os De Danann, com Mike Hanrahan, dos Stockton’s
Wing, que são da mesma região que eu, Ennis, com quem formei um duo chamado
Tumbleweed. Há anos que a queria gravar, a dúvida estava em onde a encaixar.
Finalmente acabei por incluí-la neste álbum irlandês. A minha tarefa é fazer as
pessoas sentirem a mesma emoção que eu sinto quando ouço pela primeira vez uma
canção. Como um ator que entra na personalidade da personagem, quer se trate de
alguém com o coração destroçado ou de alguém que se sente feliz.
Tam 'Echo' Tam - A Capella
POP
ROCK
26
Março 1997
world
Tam ‘Echo’ Tam
A Capella
JARO, DISTRI. MEGAMÚSICA
As
Zap Mama já estão noutra, vão pela estada do “hip hop”, em direção ao arco do
triunfo. Entram em cena as Tam ‘Echo’ Tam, um quarteto multinacional e
multirracial formado por dois homens, Larbi Alami e Daniel Vincke, e duas
mulheres, Aline Bosuma e Valérie Lecot, numa mistura belgo-zairense que retoma
os caminhos que as Zap abriram no primeiro álbum e em “Sabsylma”. São as
combinações lúdicas “a capella”, com as vozes a fazerem a vez de instrumentos
de ritmo, segundo a mesma fórmula de polifonias sinuosas, aqui compostas na
totalidade pelo grupo, onde se cruzam temas que sugerem tradições várias com
experiências (muito semelhantes ou quase decalcadas das do grupo de Marie Daulne,
como em “Sophie s’envole”) que apenas buscam o prazer do jogo vocal. Mais “jazzy” (“La fuite de jazz”, “What does it mean?”) e, em termos de
forma, menos rebuscados do que as Zap, os Tam prestam igualmente atenção ao
trabalho desenvolvido pelos Manhattan Transfer ou por Bobby McFerrin. Num
terreno fértil da “world music”, onde começa a chegar, talvez em número
excessivo, uma quantidade de curiosos em praticar as delícias da polifonia, os
Tam ‘Echo’ Tam têm a seu favor o “swing” e a inegável facilidade com que
assimilaram as regras impostas pelas Zap Mama e contra, obviamente, a falta,
para já, de uma voz (ou vozes...) própria. (7)
Guardadores de rebanhos [Segredo dos Deuses]
Pop
Rock
12
Março 1997
Grupo de Inês
Santos estreia-se em disco
Guardadores de rebanhos
Durante
dois anos, na “Garagem”, em Coimbra, mantiveram a música no segredo dos deuses.
A designação ficou, num disco de canções intimistas com a poesia de Florbela
Espanca e Fernando Pessoa e a voz de uma Inês Santos, vencedora da Chuva de
Estrelas, liberta da crisálida de Sinead O’Connor.
Deixou
de ser segredo. O Segredo dos Deuses é o nome do grupo e de um álbum de estreia
onde a voz de Inês Santos – vencedora em 1995 do concurso televisivo de
descoberta de novos talentos Chuva de Estrelas – é o alvo das atenções. Ela a o
baterista Nuno Pinto falaram ao PÚBLICO do prazer que sentiram nesta sua
primeira gravação. O terceiro elemento presente, o guitarrista Francisco
Caetano, falou que se fartou...
PÚBLICO
– Depois da vitória no Chuva de Estrelas, seria de esperar uma opção por uma
carreira a solo. Mas, ao invés disso, acabou por gravar integrada num coletivo.
Porquê?
INÊS SANTOS – Já conhecia os cinco
elementos do grupo que, aliás, já existia antes, os Euterpe. Decidi convidá-los
quando o Tó Zé, da BMG, me convidou, por sua vez, para fazer o disco, ganhasse
ou não o Chuva de Estrelas. Significa que este disco não é o do prémio do
concurso. É outro contrato.
NUNO PINTO – Além de que, durante o
tempo que estivemos a trabalhar neste projeto, na “Garagem”, a arranjar as
músicas, verificámos que existiu uma envolvência grande entre nós os seis. Não
faria sentido o disco sair em nome da Inês Santos.
P.
– Os Euterpe perderam a sua autonomia...
N.P. – Foi um risco, obviamente.
Quando entrámos no projeto sabíamos que isso iria acontecer e vai continuar a
acontecer. Mas aceitámos de bom grado, não queremos notoriedade. O grupo até já
tinha ido ao Rock Rendez-Vous. Quando demos início a este projeto, é claro que
tivemos de começar a fazer música direcionada para a voz da Inês.
P.
– O facto de a Inês ter ganho o concurso trouxe vantagens para a sua carreira
ou, pelo contrário, poderá de futuro constituir um entrave?
I.S. – A curto e médio prazo
representa uma dificuldade. A longo prazo deixa de o ser, passando a ser uma
facilidade, porque as pessoas irão deixando de me conhecer como a Sinead
O’Connor.
P.
– De resto, a sua imitação da cantora irlandesa não tem nada a ver com os registos
vocais em que canta neste disco...
I.S. – Sim, tem muito pouco a ver,
realmente. Considero que nem sequer fiz uma boa imitação. Fiz uma boa
interpretação, mas a voz que estava lá era a minha. Mas no CD nota-se uma
grande diferença. Eu sou mezzo soprano e o meu registo é bem, bem agudo. O que
eu queria ser é cantora lírica. Tem tudo a ver com a minha formação clássica de
Conservatório.
P.
– Um registo e um timbre que num tema como “Fugaz” lembram bastante Annie
Haslam, a cantora de um grupo de rock sinfónico dos anos 70, os Renaissance.
I.S. – Tem graça, sempre que canto
esse tema lembro-me da Viviane, dos Entre Aspas...
P.
– O disco insiste na tónica do intimismo e de algum secretismo.
I.S. – O que está lá é tudo natural.
Vem bem do fundo de cada um de nós. Não foi propositado fazer mistério ou
mostrar essa intimidade. O nome tem a ver com a maneira como tudo se passou, em
que estivemos dois anos na “Garagem”, uma sala de ensaios em Coimbra, sem
ninguém conhecer as músicas, sem ninguém entrar lá dentro. Foi tudo com muito
segredo... Mas as composições e as letras também têm misticismo.
P.
– Foi por isso que utilizaram poemas de Fernando Pessoa e Florbela Espanca?
I.S. – São dois dos grandes poetas
portugueses e dois dos nossos grandes ídolos. A primeira música que o grupo me
apresentou foi, precisamente, “Se tu viesses ver-me”, com poema de Florbela
Espanca. Foi o grande impulso.
P.
– Em termos musicais, nunca se afastam muito desse registo. Não quiseram
arriscar?
N.P. – Não houve a preocupação de
fazer uma coisa comercial, com um “single” para passar na rádio. Apenas fizemos
as músicas e as letras da maneira que gostamos. Com grande responsabilidade e
apoio, nos arranjos e na produção, de Fernando Júdice.
I.S. – A minha irmã diz que é um
daqueles discos de que se aprende a gostar. Não é um disco imediato. Há uma
homogeneidade, um todo que queremos mostrar às pessoas.
P.
– Quando é que pensam mostr-alo ao vivo?
I.S. – Estamos a trabalhar com a União
Lisboa na marcação de espetáculos. Temos marcados para Março, incluindo uma
apresentação em Coimbra, no dia 21, no Scotch.
P.
– Há alguma canção de “Segredo dos Deuses” que lhe tivesse dado especial prazer
cantar?
I.S. – Todas têm a ver comigo. Mas
talvez haja uma especial, “Nos céus de Coimbra”, porque é uma homenagem à
cidade onde crescemos e vivemos. Convidámos cinco músicos, na guitarra da
Coimbra, viola, teclas e ainda uma voz característica de Coimbra.
P.
– O tal intimismo que atravessa todo o disco foi induzido pelo ambiente da
cidade?
N.P. – É capaz. Não de uma forma
consciente, mas é verdade que não somos indiferentes a uma certa nostalgia.
P.
– O Francisco tem alguma coisa a acrescentar?
FRANCISCO CAETANO – Até agora eles não
têm falhado... Tenho estado atento para ver se não dizem nenhuma asneira. Mas
não, esteve tudo correto.
Maria Kalaniemi - Iho
POP ROCK
15 Janeiro 1997
world
Maria Kalaniemi
Iho
OLARIN MUSIIKKI OY,
DISTRI. MC-MUNDO DA CANÇÃO
Com a chancela da Academia Sibelius,
“Iho” sucede a “Maria Kalaniemi” na discografia desta acordeonista, uma das
mais reputadas executantes deste instrumento da atualidade. Álbum heterogéneo
de referências e cruzamentos de estilo, conta com o apoio de uma superbanda de
músicos finlandeses, entre os quais uma das eminências pardas da “finnish
folk”, o violinista Arto Järvellä, dos Tallari, e Matti Mäkelä, dos JPP e
Troka. A música, composta pela acordeonista ou por Timo Alakotila, também dos
Troka (e igualmente presente no álbum das irmãs Kaasinen), não é
fundamentalista, não se destinando ao gozo exclusivo de meia dúzia de
iniciados. Tem, pelo contrário, um apelo universalista, apostando em simultâneo
nos parentescos com a referência céltica e numa riqueza harmónica só possível
em executantes de alto nível. Exemplo desta capacidade de tocar nos arquétipos
do que poderíamos designar por “folclore universal” é um tema como “Green
score”, onde o acordeão de Kalaniemi percorre diversas escalas e modos por uma
vereda algures entre o “jazz” e um “folk rock” aveludado. Uma secção de metais
usada com subtileza e um tango de Carlos Gardel contribuem para conferir a “Iho”
a tal variedade de registos que torna a sua audição numa sucessão de pequenas e
grandes surpresas. No título-tema, os metais juntam-se a uma guitarra elétrica
aquática no que poderia ser a versão escandinava de uns Brass Monkey ou Home
Service. “Trolipolska” possui o mesmo balanço sincopado de um “horo” dos
Balcãs. Tudo somado, significa que Maria Kalaniemi, um dos poucos músicos
naturais da Escandinávia ativos na cena folk europeia, soube aproveitar deste
convívio o melhor que este tem para oferecer: o diálogo de culturas e de
estilos, traduzido na afirmação daquilo a que já, por várias vezes, chamámos,
“nova tradição”. (8)
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