JAZZ
BALANÇO
PÚBLICO
3 JANEIRO 2004
Das recriações em grande estilo, de Bourassa e Hemingway, ao novo corte radical dos Spring Heel Jack se
fez o melhor jazz chegado a Portugal este ano. Pontes para o futuro que os
portugueses atravessaram sem receio. Nas reedições, saúdem-se as velhas glórias
Armstrong, Holiday, Webster e Gordon mas 2003 foi também o ano de Sun Ra. Além
dos dois capítulos do “mito solar” chegaram de Saturno outros dois momentos
fulcrais da saga intergaláctica: “It’s After the End of the World” e o volume
duplo das “Nuits de la Fondation Maeght”.
1 FRANÇOIS
BOURASSA TRIO
Live
Effendi, distri. Multidisc
Bourassa é um
pianista de exceção, capaz de equilibrar “clusters” tão vastos como o cosmos
com miniaturas de ourives, além de fabuloso arquiteto e desenhador de “riffs”,
de uma fluência e imaginação inesgotáveis. Cidades construídas dentro de
cidades, segundo uma infinidade de escalas sobrepostas O modo como “30 Octobre
85” cresce de motivos simples para o recorte de frases cuja força e
complexidade se concentram na recriação do “Big Bang”, em conjugação com o
desempenho explosivo de André Leroux, no tenor, constitui um daqueles momentos raros
de audição de música em que apetece gritar de excitação. Tudo a transbordar de “swing”,
mais a oferta de um espetacular momento de bop e um “medley” de Monk que entra
diretamente para a galeria dos clássicos.
2 SPRING HEEL
JACK
Live
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
A dupla exilada
do drum ‘n’ bass, John Coxon e Ashley Wales, reincide com o mesmo bando de
“malfeitores” de “Amassed” (Han Bennink, Evan Parker, William Parker, Matthew
Shipp e J. Spaceman) em duas longas improvisações que projetam a música numa
selva de criaturas mutantes. O que em “Amassed” surpreendia pelo lado estrutural
explode aqui num espetacular “tour de force” de jazz multidimensional e
orgânico onde a raiva, a inteligência e a inovação andam de mãos dadas. Como se
a “free music” dos anos 60 decidisse que o futuro lhe volta a pertencer.
3 GERRY HEMINGWAY
QUARTET
Devils Paradise
Clean Feed, distri. Trem Azul
Como pode o
diabo habitar no paraíso? Encare-se a questão do seguinte modo: O que Hemingway
e os seus companheiros fazem é simultaneamente uma revolta e uma libertação das
linguagens tradicionais do jazz, através de uma reconversão que devolve o
prazer sob novas formas. Improvisador nato, o baterista mantém latente um
estado de tensão que Eskelin estica até aos limites e Ray Anderson, pelo
contrário, contraria, distendendo e embalando a música com um gozo infantil, de
marchas, “gospel” e “Dixieland”.
4 DAVE HOLLAND
QUINTET
Extended Play
2xCD ECM, distri. Dargil
Obra monumental
gravada há dois anos no mítico Birdland de Nova Iorque. Holland justifica esta
aventura em larga escala com a necessidade de explorar novas fórmulas para
temas antigos, fazendo delas “veículo para a intuição e a imaginação”. “Extended
Play” ostenta a novidade e a incandescência do princípio do mundo. E, porque
não, do princípio do jazz. Contra tais factos, contra um baixo como este, não
há argumentos.
5 GIANLUIGI
TROVESI OTTETTO
Fugace
ECM, distri. Dargil
“Fugace” é um
mundo. A música de baile italiana do pós-guerra, reminiscências do
boogie-woogie e do jazz de Dixieland, o swing de Benny Goodman, citações de
Louis Armstrong, mas também Scarlati, Duffay e Bartok, mais eletrónica em
intricados rendilhados, combinam-se numa síntese absolutamente original que se
desfruta como a visão de um vasto e épico “western spaghetti” em Cinemascope e
som Sensaround.
6 JEAN
DEROME/LOUIS SCLAVIS QUARTET
Un Moment de
Bonheur
Victo, distri. Trem Azul
Sclavis,
herdeiro de Portal, e Derome, canadiano com larga e por vezes burlesca obra na
editora Ambiances Magnétiques encontram-se neste entusiasmante diálogo de
música improvisada, em uníssonos, contrapontos e fugas que atingem o âmago do
“free jazz” nos longos “L’errance” e “Suite pour un bal”, esta última cortada a
meio por uma descarga de ruído e de…rock, na melhor tradição da escola RIO
(“Rock in Opposition).
7 VANDERMARK 5
Airports for
Lights
2xCD Atavistic, distri. Ananana
Saber e cheiro
a Chicago. “Airports for Lights” junta em doses exatas o esquematismo
hermético-matemático de Braxton, o fluxo sanguíneo de Parker e o palimpsesto de
discursos sobrepostos de Dolphy. Mas Vandermark confronta-nos com um poder que
é só seu. Entre o “bas fond” do pós-jazz de Chicago, o “blues” em figurações
cubistas, o “hard bop” futurista e o “free” mais solitário e estratosférico, o saxofonista
faz o que quer, com o desplante dos génios.
8 AKOSH S. UNIT
Vetek
Ed. e distri. Universal
“Vetek” cultiva
o gosto pelas músicas do mundo, em sintonia com uma visão planetária construída
sobre raízes comuns mas plurifacetada nas suas ramificações. Rasteja e amontoa
tensões e clímaxes, profana os templos zen de Stephan Micus e Steve Shehan,
acolhe o grito nas florestas cerimoniais de Boris Kovak para finalmente
rejubilar na tradição e espalhar a felicidade e o êxtase.
9 JOHN SURMAN
Free and Equal
ECM, distri. Dargil
Inspirado na
Declaração dos Direitos Humanos, este registo ao vivo no Queen Elizabeth Hall, Londres,
junta o saxofonista inglês com Jack DeJohnette e a orquestra de metais London
Brass numa obra em larga escala notável que combina sequências instrumentais
majestosas, secções improvisadas, diálogos luminosos entre os dois solistas, o
espírito do Barroco e o romantismo característicos de Surman.
10 MARTY EHRLICH
Line on Love
Palmetto, distri. Trem Azul
Adepto de
aventuras conceptuais, Marty Ehrlich entrega-se a uma inflexão na tradição e
num jazz de grande lirismo de que andava arredado em trabalhos como o igualmente
estimulante “The Long View”. Os desempenhos no sax alto são de altíssimo
calibre, como no surpreendente e hardbopante solo, em tempo lento, de “St. Louis
Summer”, concluindo a tocar clarinete baixo na magnífica arquitetura rítmica de
“The git go”.
11 MICHAEL BRECKER
QUINDECTET
Wide Angels
Verve, distri. Universal
Brecker dirige
uma “big band” de 15 elementos e não desperdiça a oportunidade para se revelar,
além do saxofonista de costela coltraniana (embora sem a preocupação de atirar
o jazz para esferas inatingíveis) que é, um surpreendente arquiteto e
arranjador, capaz de fazer saltar da cartola soluções harmónicas e rítmicas
surpreendentes. “Wide Angles” faz renascer no reino da fusão a esperança de que
o jazz continue a ser a força-motriz.
12 TIM BERNE
Science
Friction
Night Bird, distri. Trem Azul
“Science
Friction” revela o lado descontraído e mais mundano do saxofonista.
Emparceirado com o jazzrock, a turbina “funk” do movimento M-Base e o jazz progressivo,
passam por aqui correntes realmente futuristas, na guitarra de Marc Ducret e
nos teclados elétricos de Craig Taborn. Antecipação jazzística de um futuro que
afinal continua a ser de marcianos verdes, máquinas do tempo e pistolas de
raios laser.
13 JANE IRA BLOOM
Chasing Paint
Arabesque, distri. Multidisc
A saxofonista
soprano e manipuladora de “live electronics” Jane Ira Bloom transpõe para
música o universo pictórico do pintor Jackson Pollock. A luz, neste caso, não
se esconde mas brilha no lirismo de “The sweetest sounds”, refletida nas “Many
wonders” que recompensam quem se dispuser a viajar até ao término da “Alchemy”,
onde uma “white light” se vislumbra enfim. Jazz sem amarras, filho da tradição
mas pujante na tensão criativa.
14 DAVID S. WARE
Freedom Suite
Aum Fidelity, distri. Ananana
Ware, o mais
Coltraniano dos tenoristas da nova geração, entrega-se à tarefa “Rollinsoniana”
(ele que já recriara, de resto, deste compositor, “East Broadway Run Down”) com
uma paixão que chega a ser avassaladora. Acompanham-no o habitual quarteto
formado por Matthew Shipp (piano), William Parker (baixo) e Guillermo E. Brown
(bateria), imprimindo em conjunto um sentido ascensional à obra que em Rollins
se desenrola à luz de um sentido lúdico e de uma liberdade mais “horizontal”.
15 ANGELICA
SANCHEZ
Mirror Me
Omnitone, distri. Trem Azul
Um estilo
discreto de execução e ausência de preconceitos permitem a Angelica tocar tanto
a música sacra de Olivier Messiaen como a “country” de Merle Haggard ou o
“boogie pop” dos T. Rex. Mas “Mirror me” é jazz ao mais alto nível, em
“environments” dirigidos à criatividade de solistas como o Michael Formanek e
Tony Malaby. O diálogo entre a ternura e a ferrugem, do sax, e o metal e água
da pianista, no título-tema, é um dos pontos altos e de maior extravagância de
“Mirror Me”.
REEDIÇÕES
1 LOUIS
ARMSTRONG
The Complete Hot Five and Hot Seven Recordings, Vol. 1, 2 & 3 Columbia, distri. Sony Music
2 BILLIE HOLIDAY The Billie Holiday
Collection, Vol.1, 2, 3 & 4 Columbia,
distri. Sony Music
3 BEN WEBSTER Soulville Verve, distri. Universal
4 DEXTER GORDON Our Man in Paris
Blue Note, distri. EMI-VC
5 SUN RA The Solar-Myth
Approach, vol. 1&2 Sunspots, distri.
Trem Azul
PORTUGUESES
1 CARLOS
BARRETTO
Locomotive Clean Feed, distri. Trem Azul
2 MÁRIO LAGINHA
& BERNARDO SASSETTI Mário Laginha & Bernardo Sassetti Ed. autor, distri. FNAC
3 RODRIGO AMADO,
CARLOS ZÍNGARO, KEN FILIANO The Space Between Clean
Feed, distri. Trem Azul
4 SEI MIGUEL Ra Clock Ed. e distri. Headlights
5 JOÃO PAULO,
PAULO CURADO, BRUNO PEDROSO As Sete Ilhas de Lisboa Clean
Feed, distri. Trem Azul