05/11/2020

ANA DA SILVA - The Lighthouse

 Y 14|JANEIRO|2005

música|discos

 


ANA DA SILVA

The Lighthouse

Chicks on Speed, distri. Ananana

8|10

 

Oito anos após a sua retirada do meio musical, consumado o enterro das The Raincoats, a madeirense Ana da Silva fechou-se no seu quarto de brinquedos, na companhia de um teclado eletrónico e de um sequenciador, e saiu de lá com um punhado de canções electropop de veia melancólica. São vinhetas com pequenos sons e ritmos ondulantes que Ana embala dentro de caixas coloridas atadas com histórias em volta. Ana da Silva flutua nas águas de uma lagoa da infância para logo a seguir esbracejar entre as ondas de um mar revolto, cantando com voz ofegante os medos da escuridão. Passeia-se pelos campos sem animais selvagens de Virgínia Astley, brinca com a pop desconjuntada dos Flying Lizards, mas é quando canta em português uma “Modinha” que o coração acorrentado desce aos abismos de uma nostalgia que prolonga em tons góticos a agonia “Eighties” dos Joy Division. O espírito “indie” e do “do it yourself” ainda faz borbulhas neste novo século.

Ani DiFranco - Knuckle Down

 Y 14|JANEIRO|2005

música|discos

 


ANI DI FRANCO

Knuckle Down

Righteous Babe, distri. Megamúsica

8|10

 

É bonita, sem ser excecionalmente bonita. Pouco importa porque ela está-se nas tintas para a indústria. Mas faz boa música como poucas “singersongwriters” da sua geração. Depois de “Educated Guess”, está de volta com um dos seus álbuns mais “barrocos”. Dividiu a produção com Joe Henry e chamou uma série de colaboradores. O resultado é uma paleta de sons deslumbrante (piano elétrico, sampler, violino, glockenspiel, melódica…) sobre a qual distribui as suas visões e ideologia de “outsider” emancipada. Arrisca flirtar com géneros que vão de sombrias paisagens ambientais, a inflexões “jazzy” e mesmo a “spoken word”, como no perturbante “Parameters”. Está num ponto de carreira semelhante ao atravessado por Joni Mitchell em “The Hissing of Summer Lawns”, isto é na sua fase mais inrotulável. Admirável é o facto de cada uma destas canções, por mais obliqua que seja a forma, roçar-nos tão perto como uns lábios sobre a pele.

Na barca com Ulisses [Cristina Branco]

 Y 7|JANEIRO|2005

música|capa

 



na barca com ulisses

 

cristina branco

 

“Venham meus amigos, Não é demasiado tarde para partir em busca de um mundo novo, porque sempre tive o propósito de viajar para além do crepúsculo…”. Este extrato do poema “Ulysse”, de Alfred Lord Tennyson (1809-1883), impresso no interior da capa do disco de Cristina Branco, serve de legenda a um projeto de intenções que a cantora vem pondo em prática desde o início da sua carreira. “Ulisses” é mais uma viagem que parte do fado para chegar a um canto universal que tem na saudade a sua vela e a sua âncora. Cristina Branco nunca quis confinar-se à estrita condição de fadista. Isso seria limitar os seus sonhos, a inquietude de descoberta. “Ulisses” é um périplo por várias músicas, poesias, línguas e geografias.

            “Sonhei que estava em Portugal”, tema de abertura, apresenta Cristina a cantar com sotaque brasileiro um poema de João de Barro. Logo a seguir, em “Alfonsina y el mar”, o idioma escolhido é o castelhano. O sentimento ultrapassa a formulação de estilos estratificados. É uma música que a cada nota parte em demanda de novos portos. “Sete pedaços de vento” é a primeira composição com a assinatura de Custódio Castelo, uma vez mais condutor musical do projeto. Imaculada é a versão de “Redondo vocábulo”, de José Afonso, servido por distinta impressão digital do piano de Ricardo Dias.

            A surpresa surge com “A case of you”, tema de Joni Mitchell. Será caso para supor que a portuguesa e a canadiana são irmãs espirituais. Cristina toca nos timbres, nas acentuações e nas ornamentações de Joni. Joga com as mesmas luzes e sombras. O caminho fica aberto a todas as ousadias. Ricardo Dias e Vitorino criaram um ambiente que de início sugere Paredes, em “Navio triste” e “Soneto” é uma nova apropriação da poesia de Camões, com sabor a música antiga e a Chico Buarque criado por Castelo. “Choro” é equilíbrio perfeito entre a guitarra portuguesa de Castelo e o piano de Dias em notável exemplo de nova MPP com raízes na tradição folk. Depois do castelhano e do inglês, o francês é utilizado por Cristina para interpretar a “Liberté” de Paul Éluard, exercício Breliano, um tipo de energia por enquanto ainda afastada da sensibilidade da cantora. O “Cristal” de Vasco Graça Moura e Castelo é mais neo-folk-progressiva idealizada a grande altura, com sensual vocalização e “Porque me olhas assim” satisfaz as exigências da autoria de Fausto. Custódio Castelo cria sobre as palavras de David Mourão-Ferreira, Júlio Pomar e Alexandre O’Neill, respetivamente em “E por vezes”, “Meu amor corre-me o corpo” e numa “Gaivota” onde pela primeira vez a cantora assume o vocabulário e a postura fadistas. “Ulisses” fecha com um instrumental de Castelo. Chama-se “Fundos” mas tem a leveza da “new age” e, no final, a provocação de uma batida “drum ‘n’ bass”. A viagem não poderia afastar-se mais das convenções.

            Cristina Branco chama-lhe um “encontro com o amor, desta vez um amor satisfeito e assumido”, e um toque de liberdade – “de escolher um itinerário próprio ao fim da vitória sobre tantas contrariedades”.

 

CRISTINA BRANCO, Ulisses,

Ed. e distri. Universal, 10 de Janeiro

Woody Allen brilha em "réveillon" como antigamente

 CULTURA

DOMINGO, 2 JANEIRO 2005

 



Woody Allen brilha em “réveillon” como antigamente

 

Woody Allen e a sua banda de jazz tradicional foram mesmo o melhor da passagem de ano no Casino do Estoril. Tocaram pouco tempo. O suficiente para fazer nascer um brilhozinho nos olhos de toda a gente

 

O ano terminou com uma catástrofe mas nem por isso as pessoas quiseram deixar de divertir-se. Faz parte da natureza humana esquecer e resta sempre a esperança de que o ano novo seja melhor e traga motivos de felicidade. Woody Allen esteve no “réveillon” do Casino Estoril a tocar jazz e a maneira como o fez contribuiu para trazer um pouco dessa felicidade às 800 pessoas que pagaram 500 euros para o ver e ouvir e, já agora, desfrutar da festa gastronómica do Casino.

            Woody é exatamente como nos filmes. Uma personagem frágil e deslocada do cenário que no entanto emana um fortíssimo carisma. Houve quem lhe chamasse “figura de cartoon” e quem não se cansasse de gritar “We love you Woody!”. Ele agradeceu, falou de Portugal como um “paraíso” e tocou o velho jazz de New Orleans de olhos fechados, o pé sempre a bater o compasso e com uma enorme paixão.

            Mas isso aconteceu quando já passava uma hora da meia noite e os festejos já haviam sido cumpridos. Bem cedo, mesmo assim com uma hora de atraso sobre o horário previsto, às 20h, o Casino abriu as suas portas à “socialite” e demais pagantes, com os fotógrafos e jornalistas a afadigarem-se para recolher imagens e impressões das figuras do “jet set”. Os homens vinham de “smoking”, as senhoras com vestidos nalguns casos bastante reveladores.

            Carla Matadinho, Miss Playboy, era uma das mais solicitadas. Certamente não por causa das suas curvas perfeitas e do decote provocante. O facto de Woody Allen ser a estrela convidada “teve algum peso” na sua vinda ao casino do Estoril. Carla esperava ouvir “música fantástica” de um género, o jazz, “que é para se ouvir ao vivo”. A desnudada missa não viu nenhum dos filmes do cineasta, apenas conhece alguns “de comentar” porque nunca costuma “estar muito atenta aos filmes que saem”. Mal comece o ano, partirá para a Colômbia, onde representará Portugal no concurso de Miss Café.

            Fátima Lopes, a conhecida estilista, não estava menos deslumbrante, também ela com um decote abismal que lhe descobria totalmente as costas e mesmo algo mais. Fátima veio a este “réveillon” de luxo por ser “uma noite muito especial” e porque o casino “significa um pouco a magia que faz sonhar”. E Woody Allen? “Também ajudou!”. Dele a estilista conhece apenas os filmes, não o músico de jazz. “Nunca o vi tocar, mas agradável decerto que vai ser”. Fátima Lopes não destacou nenhum filme em particular porque o importante, disse, “é o estilo”. “Só há um Woody Allen”.

            Quem não podia deixar de estar presente era o cantor Fernando Tordo, habitual participante nas atividades artísticas do Casino do Estoril desde 1968, “quando ainda era um miúdo dos conjuntos”. No ano passado Tordo fez uma temporada de quatro meses nesta sala. Veio, este ano, “pela festa”. Em relação a Woody Allen não nutre expectativas exageradas. “É uma figura genial do cinema, se fosse também bom músico, sabia-se, mas pronto tem graça…”. Para Tordo o ano que passou não deixa saudades. “Para quem, como eu, está muito ligado às coisas do seu país, foi um ano péssimo, para esquecer, não tenho nenhuma boa recordação”. As coisas poderão melhorar em 2005, “desde que haja um melhor governo, melhores governantes, e mais respeito pela cultura e pelas artes”.

            Invariavelmente presente em tudo o que é acontecimento social, Lili Caneças atraía, como é hábito, as atenções, até por causa dos esforços desesperados que fazia para manter a altura do decote em níveis moralmente aceitáveis Lili veio ao casino por ser uma época em que, normalmente, está em Portugal, com os filhos, com quem costuma passar o Natal em família. E sempre que está por cá, Lili passa nesta época do ano pelo Casino do Estoril. “Desde os meus 15 anos de idade, sinto-me aqui em casa”. A tia das tias portuguesas defende que o local deve deixar de ser visto apenas como “um sítio para jogar” mas também como de “entretenimento”, onde já assistiu a espetáculos como os de Tony Bennett, Art Garfunkel e Liza Minelli, alguns dos “maiores génios do mundo”. Lili é fã de Woody Allen, de quem viu “os filmes todos”. E gosta de jazz. “Estive em New Orleans, no sítio onde foi criado o ‘Dixieland’, tenho discos de ‘Dixieland’ e acho que ele toca clarinete fabulosamente”. Depois de um ano 2004 “fantástico” – “lancei uma linha de jóias, anunciada na TV Shop, que está a vender lindamente” – Lili Caneças começará a gravar em Março de 2005 um novo programa de televisão. “Estou a dizer-lhe isto em primeira mão”. A primeira coisa que vai fazer em 2005 é “pedir muita paz para o mundo e alegria de viver”.

            Assim foi passada a primeira hora, a ver e ser-se visto, antes de se entrar no salão Preto e Prata onde a festa propriamente dita iria decorrer. Nas mesas, tudo a postos, com cada lugar munido de um “kit” de divertimento temático – árabe, havaiano… – que incluía corneta, língua de sogra e serpentinas. Era altura de se iniciar o repasto. Ao som do grupo de câmara Quartet d’Arco, José Cabeleira & Cª e os Forrógode, que ninguém se esforçou muito em ouvir.

            Às 12 badaladas, anunciadas em palco pelo diretor artístico do casino, Júlio César, a alegria e o barulho mostraram que a festa estava a ser boa (pudera, a 500 euros…). Damas e cavalheiros saltaram para cima das cadeiras, as serpentinas enrolaram-se em redor dos sonhos, trocaram-se beijos e fizeram-se votos, ao vivo e por telemóvel.

            Só quando a New Orleans Jazz Band subiu ao palco, sem se fazer anunciar, é que o ambiente mudou por completo. As luzes baixaram, ouviram-se “shius” e os farristas chegaram-se à boca de palco para ver melhor aquele por quem ansiavam. Woody manteve-se quase todo o tempo de olhos fechados, anunciou ao microfone a excitação que estava a sentir por estar ali e a música saltou, pela primeira vez, para o centro das atenções. “I love you, Woody!” não parava de exclamar Lili Caneças enquanto ajeitava o decote e cantava de cor “Sweet Georgia Brown”. “É um grande artista”, exclamava outro. Woody e os seus companheiros tocaram pouco mais de uma hora. Com entusiasmo e paixão. Estavam dentro de uma cápsula de tempo. O seu tempo e o nosso coincidiram por momentos.

            Depois deles, a festa acabou. Houve ainda quem dançasse a música brasileira chata da banda Treme Terra e esperasse pela atuação tardia de Armando Gama. Anti-clímax. O chocolate quente ajudou a amenizar a madrugada e a fazer esquecer que o novo ano pode não ser exatamente da mesma cor que os sonhos.

 

 

Jantar a vários ritmos

 

Numa ementa pouco imaginativa mas razoavelmente bem confecionada, desfilaram sobre as mesas do Salão Preto e Prata, terrina de foie gras de ganso com geleia de figos e pão de especiarias, dueto de lavagante e camarão tigre com flor de espargos verdes, sorbet de limão, tarte de requeijão com framboesas em ninho de chocolate, café e mignardises, na companhia de um branco Pêra Manca e um tinto Prazo de Roriz. À meia-noite foi servido champagne Moêt & Chandon Brut Imperial. De início, o serviço respeitou um ritmo pausado e atento, dando tempo de degustação própria a cada prato. A dado momento, porém, a tendência mudou para a confusão e para uma pressa inexplicável, com os pratos a serem positivamente atirados para as mesas sem medida nem método. A horas mais tardias, então, os convivas foram votados ao abandono. Quem quisesse mais festa que a inventasse sozinho.

Woody, tocante anacronismo [Woody Allen]

 CULTURA

DOMINGO, 2 JAN 2005

 

Crítica Música

 

Woody, tocante anacronismo

 

New Orleans Jazz Band

Casino do Estoril. Dia 1 de Janeiro, à 1h. Sala cheia.

 

O realizador de cinema a dedicar grande parte do seu tempo e da sua vida a tocar um estilo de jazz que os compêndios registam não mais do que nas suas primeiras páginas? Certamente uma imensa paixão e o puro gozo de tocar. Woody Allen esteve no Casino do Estoril como uma estrela de cinema mas o seu desempenho como músico deve ser visto como algo mais que um capricho de vedeta ou mero “fait divers”, forma de entretenimento, de uma personalidade reconhecidamente complexa.

Não, Woody Allen toca clarinete como se disso dependesse a sua vida e como se o nascimento do jazz fosse uma fonte eterna situada fora do curso de tempo. Ele e os restantes músicos da New Orleans Jazz Band cumprem metodicamente um acto de amor. Nenhum deles é um grande músico mas a música que fazem cresce na medida da sua entrega. Compõem o quadro de uma banda irreal, presa para sempre ao seu ritual.

Woody esteve sentado no meio da fila da frente, com os holofotes apontados a si. Iniciou a sua atuação num solo sem rede, apenas acompanhado pelo banjo, deficientemente amplificado, de Eddy Davis, e o contrabaixo de Conal Fowles. O timbre e o fraseado que saem do seu clarinete são secos, quase agrestes. Mas o espírito e o “swing” estão bem vivos e é essa vitalidade que ilumina toda a atuação da New Orleans Jazz Band. Tanto Woody como Simon Wettenhall (trompete) e Jerry Zigmont (trombone) deram tudo por tudo, fazendo as marcações e os floreados, nunca muito complicados, que o escasso número de acordes utilizados neste estilo de música exige. Cynthia Sayer, presença sensual no piano, apesar de se fazer ouvir deficientemente, segurou as pontas e deu terreno livre. Eddy Davis, e o seu banjo, é uma entidade vinda de outro mundo, um anacronismo sábio que assume por inteiro a sua missão. Woody e toda a mitologia que o rodeia faz o resto.

É ele que arrasta a imaginação. Mesmo em silêncio, o seu rosto e os seus olhos fechados revelaram que a música nunca pára de o sacudir por dentro. Ele tem dentro de si os “blues” e uma religiosidade que não se perdeu. Sentiu-se isso em cada nota que tocou.

O seu jazz pode ser um filme menor na sua obra mas é sem dúvida a expressão de uma necessidade interior. Por isso, à sua escala própria, foi um momento, se não grande, pelo menos tocante.