Mostrar mensagens com a etiqueta Lisbon Improvisation Players. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Lisbon Improvisation Players. Mostrar todas as mensagens

14/08/2020

Sal em jazz de água doce [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 27 NOVEMBRO 2004

Os Spring Heel Jack voltam a surpreender, com um álbum mais introspectivo que os seus estrondosos antecessores. Na Suécia reza-se. Os Bad Plus divertem-se. Em Portugal a improvisação dá as mãos a Zeca Afonso.

Sal em jazz de água doce

Há discos que estão nas margens do jazz. Discos que empurram o jazz para fora das margens. A música dos Spring Heel Jack, desde que a dupla John Coxon e Ashley Wales decidiu desviar-se dos caminhos do drum ‘n’ bass e enveredar por uma abordagem jazzística radical, tem suscitado uma série de perplexidades, a menor das quais não será a dificuldade em traçar a sua genealogia e fazer a sua catalogação. Depois de “Amassed” e do álbum ao vivo, “The Sweetness of the Water” prossegue a saga de conciliar a eletrónica e o “sampling” com alguns dos melhores improvisadores da cena jazzística atual. Do “Live” para o novo álbum apenas ficou Evan Parker, juntando-se-lhe o trompetista, membro do AACM e da Creative Construction Company, com Anthony Braxton e Leroy Jenkins, Wadada Leo Smith, e uma secção rítmica formada por John Edwards (contrabaixo) e Mark Sanders (bateria) cuja colaboração já havia dado frutos em “Nisus Duets”.
            “The Sweetness of the Water” começa com aquecimento improvisacional, em dois quadros abstratos, “Track four” e “Quintet”. No primeiro desenrolam-se ângulos cortantes de guitarra elétrica por Coxon, taquicardias rítmicas e o desempenho atmosférico de Leo Smith no trompete, num tema onde a “gaiola de elevador” faz figura de instrumento musical. Parker deambula por ali, em “Quintet”, mostrando-se tão à vontade no contexto do circo eletrónico como no seu próprio Electro-acoustic Ensemble.
            Mas o primeiro grande momento acontece em “Lata”. Sobre um fundo eletrónico que sugere o balanço romântico-psicótico de “Chree”, dos Suicide, Evan Parker procede à dilaceração do tempo, com cada frase, por mais livre que seja, a encaixar-se de modo mágico na pulsação maquinal. “Duo” é um subtil trabalho de fi ligrana de Sanders, na bateria, com Coxon adicionando-lhe efeitos e “noise” a la Sonny Sharrock.
            “Track one” é outros dos temas belíssimos de “The Sweetness of Water”, ilustrando o lado mais meditativo do grupo, com simulacros de gongo, Wadada a pairar no topo do mundo e um Parker ternamente melódico no tenor. Eno encontra os Art Ensemble of Chicago num templo tibetano. As improvisações coletivas de “Inlet” e “Track two” reforçam o facto de este ser o álbum mais introspetivo dos Spring Heel Jack, o último tema a explorar as goelas do piano e um Smith perfeitamente extasiado.
            “Autumn” termina “The Sweetness of the Water” na mesma nota épica de “Live”, com eletrónica espacial/cósmica a servir de campo de manobras à oratória de trompete de Leo Smith, numa fusão de jazz astral com a selva digital de Jon Hassel. Os Spring Heel Jack voltaram a arriscar, já não com o ímpeto iconoclasta dos dois trabalhos anteriores, mas com a devoção de verdadeiros musonautas agora infiltrados nos meandros do silêncio.
            Outro álbum devocional que se afasta dos cânones do jazz tradicional é “In Winds, in Light” do contrabaixista sueco Anders Jormin, fundador, nos anos 70, dos progressivos Rena Rama e autor de uma discografia onde contou com “sidemen” como Arve Henriksen, Mats Gustafsson e Marc Ducret.
            O álbum é um ciclo de música sacra e tem como parceiros de Jormin a cantora folk Lena Willemark, Marilyn Crispell (piano), Karin Nelson (órgão de igreja) e Raymond Strid (percussão). Tudo se subordina à elevação e à espiritualidade, o que não quer dizer que tudo se reduza à oração. Em “Choral”, o órgão de igreja vai da beatitude de um Messiaen a explosões na cúpula de catedral, numa demencial fuga de Bach com Lena Willemark a abandonar o registo recitativo para se entregar a cânticos de extrema visceralidade. O curto intervalo de contrabaixo solo em “In Winds” prepara o terreno para novas litanias de demanda do desconhecido (o título original desta obra era “Além”) e um dos traços mais interessantes é o contraponto entre a faceta folk (por mais que ela a tente disfarçar) da cantora e o piano espartano de Marilyn Crispell, magnífico em “Flying”, luxuriante queda de água de notas contrapostas à solenidade do órgão de igreja.
            “In Winds, in Light” ficaria talvez melhor nas “new series” da editora. Enquanto “Jazz” é, tal como “Lux Aeterna”, de Terje Rypdal, um objeto adjacente, estranho a quaisquer noções tradicionais deste tipo de música. Todavia belo.
            Para recarregar as baterias de músculo e suor, há bom remédio. Basta tomar uma dose de “Give” dos The Bad Plus, o “power trio” de piano/baixo/bateria que em “These are the Vistas” já havia dado nas vistas.
            Os Bad Plus tentam tocar jazz mas a métrica e a rítmica, com a bateria a espancar os tempos fortes, tombam mais para o lado do rock. Há influências de “gospel”, música latina, “honky tonk”, Ethan Iverson, no piano, faz de Monk e soletra a primeira letra do seu abecedário e, para desassossegar ainda mais, não faltam versões de “Street woman”, de Ornette Coleman, “Velouria”, dos Pixies, e “Iron man” dos… Black Sabbath. Para um aficionado de jazz-jazz, será talvez forçar a nota em demasia. O que para os The Bad Plus é indiferente. Acima de tudo, eles divertem-se.
            Em Portugal, o jazz também vai longe. Por vezes onde menos se espera. O contrabaixista José Eduardo, por exemplo, “foi-se” à música de José Afonso e o que poderia ser trabalho redundante acaba por ser mais uma dedicatória que honra a obra do cantautor, abordando-a sob a dupla perspetiva de “consciência” e “património”.
            Por outras palavras, o que o trio José Eduardo, Jesus Santadreu (sax tenor) e Bruno Pedroso (bateria) procuram traduzir é a música (ou a música das músicas) que está para além delas (as palavras), acabando “A Jazzar” por ser, neste aspeto, um disco revolucionário. Nunca “Grândola, vila morena” imaginou poder ser dita através de um lancinante solo de saxofone, em versão pautada por alguma ironia, nem que o que fazia falta a “O que faz falta” fosse um longo solilóquio de contrabaixo. Santadreu está igualmente bem e forte em “Coro da Primavera”, qual Sonny Rollins voltado mais para a frente. “A Jazzar no Zeca” é mais um filme do que um retrato, inscrevendo-se nessa “música imaginária” tão cara ao contrabaixista. Zeca nunca imaginaria…
            Editado mais recentemente pela Clean Feed, o novo trabalho dos Lisbon Improvisation Players (LIP) chama-se “Motion” e tem como intervenientes Rodrigo Amado (saxes barítono e tenor), Steve Adams (saxes sopranino e tenor), Ken Filiano (contrabaixo) e Acácio Salero (bateria). Na música improvisada tem-se em conta a ligação, os elos, o saber ouvir e o saber interrogar o desconhecido. Não basta tocar por tocar, é necessário guiar (ou ser guiado) com um propósito em mente.
            Os LIP têm um corpo sólido e um discurso eloquente. O modo como os saxofones de Amado e Adams se dão as mãos para seguir juntos nas descobertas (“Motion”, “All the things we are”, “Wrist action” nunca são caminhada solitária) é um dos pontos a favor deste “Movimento”, que parte do “free” à descoberta de uma outra ordem, ainda que esta já tenha sido encontrada (uma ordem, ou a sua subversão…) por gente como Peter Brötzmann, influência detetável. A combinação saxofonística de “Wrist action” é para ser devorada, tal a suculência do som e a sucessão de soluções de pergunta/resposta encontradas.
            “Shipping news” completa em arco o ambiente inquisitivo do tema inicial “Perpetual explorers”, com Salero a fazer detonar o tempo e Filiano a arrumá-lo. A exploração continua. Faltam, porventura, portas de saída a este jazz que não receia ser solidário.
            No limite mais afastado do “mainstream”, “Quartets”, de Manuel Mota, procura apanhar os estilhaços de uma música que se pulveriza em gestos onde o silêncio se inscreve numa quadrícula. Mota, como Derek Bailey ou o Fred Frith mais sarcástico (de “Guitar Solos”), arranca da sua guitarra elétrica ruídos e eletricidade pura. Tem a seu lado Fala Mariam, no trombone, companheira habitual de Sei Miguel, Margarida Garcia, no baixo, e, num interessante complemento tímbrico que no entanto se esgota quando cessa o efeito surpresa, César Burago, no carrilhão.
            Os temas não se diferenciam o sufi ciente uns dos outros para manter acesa a atenção e a insistência na contenção levada ao extremo acaba por se tornar cansativa. “Downstairs” parece ter sido cortado aos bocados e “Good eve” condescende com o ambiental. “Menos é mais” ou há algo mais escondido nesta música que o ouvido não apanha?

Spring Heel Jack
The Sweetness of the Water
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
8 | 10

Anders Jormin
In Winds, in Light
ECM, distri. Dargil
7 | 10

The Bad Plus Give
Columbia, distri. Sony Music
6 | 10

Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Zeca
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

Lisbon Improvisation Players
Motion
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

Manuel Mota
Quartets
Ed. e distri. Headlights
5 | 10

18/10/2016

Jazz com outro gosto no Jazz em Agosto

CULTURA
SEXTA-FEIRA, 2 AGO 2002

Jazz com outro gosto no Jazz em Agosto

FESTIVAL COMEÇA HOJE NA GULBENKIAN

Chicago e Reino Unido. Jazz e algo mais. São os dois eixos de sustentação de um festival para o qual jazz não liga com preconceito. Keith Tippett, Barry Guy, Evan Parker, Marilyn Crispell, Fred Anderson e Chicago Underground Quartet irão atrair para a sua causa também o público rock

Foi mais ou menos a meio da década de 60 que o jazz e o rock começaram a reparar na existência um do outro. O jazz condescendeu em deitar uma vista de olhos ao rock e o que viu agradou-lhe. O rock perdeu o respeito ao jazz e mordeu-lhe as canelas. O casamento era inevitável. Chamou-se “jazz rock” antes de se chamar “fusão”.
            Miles Davis lançou a bíblia “Bitches Brew” em 1969, mas a “beat generation” há anos que escutava com atenção o que se passava do “outro lado”. Desde então muitas certezas ficaram pelo caminho. Entre o jazz “downtown” e algum pós-rock o caminho é curto.
            É essa margem de incerteza, mas também por isso, de descoberta, que o Festival Jazz em Agosto, cuja 19ª edição arranca hoje na Gulbenkian, em Lisboa, e se prolonga até dia 10, se propõe dar a conhecer a franjas de público com educação musical e sensibilidade suficientes para beberem a cicuta da transgressão e navegarem entre a nascente e a foz de tradições que não passam por Nova Iorque.
            Há um jazz que agrada ao público de rock (o oposto já não é tão verdadeiro…). Jazz aberto, interveniente, descomprometido, experimental. Jazz negro, jazz branco, jazz mestiçado de geografias várias, algumas delas imaginárias.
            É algum desse jazz sem fronteiras que o Jazz em Agosto traz a Portugal, durante nove dias recheados de concertos, conferências e “workshops” que já andam a pôr a cabeça em água a muita gente. No Grande Auditório da Gulbenkian, no Anfiteatro ao ar livre, na sala Polivalente e no Auditório 2. De tarde e à noite. Para nos empanturrarmos. De petiscos. Porque palha é coisa que não há, numa programação que consideramos um verdadeiro luxo.
            Dois eixos, Chicago e Reino Unido, permitem estabelecer a ponte. Chicago é a sede americana do pós-rock (ou do pós-jazz…), cultivado por grupos como os Tortoise, DKV, Isotope 217 e Chicago Underground (duo, trio, quartet…). Estes últimos – formação composta por Rob Mazurek, Chad Taylor, Noel Kupersmith e Jeff Parker – estarão presentes no Jazz em Agosto, num dos concertos aguardados com maior expetativa.
            Do outro lado do Atlântico, a Inglaterra conferiu um significado novo ao “free jazz” e chamou-lhe “free music”. “Music” e não “jazz”. A marcar uma posição e a desmarcar o jazz como reserva, região demarcada.
            Mas voltemos atrás, e viajemos de novo até aos anos 60 e à Inglaterra. O rock andava encandeado pelo psicadelismo. O mesmo era dizer que o LSD corria com abundância. Considerando que o jazz nunca foi propriamente abstémio, era natural que o binómio onirismo/LSD não passasse despercebido aos “jazzmen” da Velha Albion. Não passou. Desde 1965 que Londres vibrava nas metamorfoses de um caleidoscópio de sonhos musicais coloridos. Jazz e rock confundiam-se numa teia esfusiante de experiências partilhadas que prosseguiria, já no contexto do rock progressivo, pelos anos 70. Foi o “boom” da “free music”. Músicos de jazz formaram bandas de rock. Ray Russell, John Surman, Ken Hyder, Mike Westbrook, Michael Gibbs, Neil Ardley misturaram os saxofones e as guitarras elétricas, esticando e deformando o velho “4/4”.
            Os Soft Machine tinham começado por ser irmãos espirituais dos Pink Floyd mas acabaram por juntar o psicadelismo ao jazz mais cerebral. E se formações como os Trio, Amalgam, Ovary Lodge, Spontaneous Music Ensemble ou AMM não eram propriamente fáceis de assimilar pelo “mainstream”, mesmo nessa época de permissividade cultural, outras como os Back Door, Rock Workshop, Isotope ou Nucleus penetravam como um vírus carregado de “speed” nos neurónios dos estudantes para quem ser “arty” era estar na crista do momento.
            Toda esta cena borbulhante eclodiu e gritou bem alto o clima de entusiasmo e utopia que então se vivia, com a super-orquestra Centipede, promotora de uma reunião histórica que daria origem ao duplo-álbum “Septober Energy”. Dois meses num: Setembro e Outubro. Duas músicas numa: jazz e rock.
            Keith Tippett foi o grande impulsionador deste projeto. Também ele estará presente no Jazz em Agosto, em piano solo e, num concerto de encerramento que se antevê apoteótico, com a sua Tapestry Orchestra, “big band” em cujas fileiras pontificam nomes lendários do jazz inglês dos anos 60 e 70, ainda hoje expoentes dessa forma muito “british” de responder aos “blues” negros com uma lição de matemática esquizoide: Elton Dean (fez parte dos Soft Machine, no seu período áureo, dos álbuns “Third”, “4th” e “5”), Henry Lowther, Mark Charig (“session man” em álbuns dos King Crimson), Paul Rutherford, Malcolm Griffiths, Julie Tippetts (a ex-rocker Julie Driscoll, atual mulher de Keith Tippett e autora de um álbum espectral, “Sunset Glow”), Maggie Nicols, Louis Moholo… Ainda Paul Dunmall, Paul Rogers e Tony Levin que, juntamente com Keith Tippett, formam o quarteto Mujician.

Monstros e uma gata

Tippett, já se vê, é um dos nomes sem os quais o jazz inglês não teri sido capaz de abolir o preconceito. Gravou na editora de rock progressivo Vertigo o álbum “Dedicated to you but you weren´t Listening”, disseminou pérolas de piano elétrico em três álbuns dos King Crimson, rigiu o monumento em honra dos heróis, Centipede, montou outra “big band”, os Ark, instituiu, enfim, uma forma de jazz em que o vórtice do “free” não dispensava algumas das regras de etiqueta que são apanágio de todo o “gentleman”. Tippett e alguns outros elementos da sua orquestra tocarão ainda integrados no octeto de Paul Dunmall, o homem que teve a ousadia de trazer a gaita-de-foles para a música de jazz.
            Outro dos nomes-choque do festival é o do baixista Barry Guy. Fez parte, nos anos da loucura, Spontaneous Music Ensemble, Amalgam, Iskra 1903 e da “escola” London Jazz Composers Orchestra. O Jazz em Agosto recebê-lo-á em contrabaixo solo, com a sua Barry Guy New Orchestra (o programa assim o anuncia, mas suspeitamos que será antes “Now Orchestra”, a mesma que pode ser escutada em “Study – Witch Gong Game 11/10”...), em quarteto com Marilyn Crispell, Mats Gustafsson e Raymond Strid, e em trio com Evan Parker.
            O que nos leva a bufar de novo de excitação e a tirar o chapéu ao programador do festival. É que tanto Marilyn Crispell como Evan Parker são outros “monstros sagrados” do novo jazz internacional. Crispell é gata de jazz, ou jazz de gatas, arranhões e arabescos, gritos e lâminas cortantes, pianista de outra galáxa que não teria tido medo de caminhar ao lado das notas de Contrane, da mesma forma que não receou fazê-lo ao lado de Anthony Braxton.
            Evan Parker é uma espécie de Deus. A família da música improvisada contemporânea tem o seu apelido. Parker, como o outro, Charlie de seu nome, inventou um mundo próprio mas tão vasto que outros se instalaram dentro dele. É a improvisação como corrente indomável mas também como sinfonia. O saxofone soprano, tocado por Evan Parker, é uma nave espacial voando entre as estrelas. Menção especial ainda para um dos percussionistas menos catalogáveis da música improvisada, Paul Lytton, bateria, percussão e “live electronics” em busca constante de novos horizontes.

Ritual Chicago

Do outro lado do Atlântico, a linha do horizonte dobra-se em Chicago. Dos Chicago Underground, que em Lisboa serão Quartet, já se disse alguma coisa. Atuam no território em constante mutação onde o jazz, o rock, a eletrónica e o inesperado cruzam armas e argumentos. Os Art Ensemble of Chicago, seus progenitores espirituais, prezavam a liberdade com outra força. Eram a selva que irrompe na cidade. O quarteto liderado por Rob Mazurek e Chad Taylor é mais um caçador de feras virtuais. Há diferenças na ferocidade e na intensidade dos rugidos. Mas é igual a verdade de ambos: o ritual.
            Com cartão de sócio da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), Fred Anderson (sax tenor) e Hamid Drake (bacteria) prometem ser outro dos grandes momentos do Jazz em Agosto. Ao duo juntar-se-á o contrabaixista Peter Kowald, compondo o Fred Anderson Trio. Jeb Bishop (trombone) apresenta-se, por seu lado, em trio com Kent Kessler e Tim Mulvenna. Bishop trabalha regularmente com o saxofonista e atual “enfant terrible” da cena de Chicago, Ken Vandermark. Chega, como garantia.
            Fora do perímetro, mas bem dentro do espírito de abertura que caracteriza a 19ª edição do Jazz em Agosto, a surpresa poderá surgir do jazz de câmara da formação norueguesa Different Rivers, sob a liderança do saxofonista Trygve Seim, do grupo multinacional Essencia, composto por um músico alemão (Gebhard Ullman), um suíço (a pianista Sylvie Courvoisier) e um português (o contrabaixista Carlos Bica), do duo de contrabaixos nacional formado por Carlos Bica e Carlos Barretto (ainda a fumegar do seu extraordinário encontro com Louis Sclavis, no novo álbum “Radio Song”) ou dos Lisboa Improvisation Players, com a presença de Steve Adams, membro regular do Rova Saxophone Quartet. O pós-jazzrock e o conceito multimédia nascerão do encontro do saxofonista Mats Gustafsson e da dança de Lotta Melin, no espetáculo “Bevllo-hallat Hhu/Ö”.
            É muita e fora-de-série a música que animará a primeira metade de Agosto na Gulbenkian. O melhor jazz, como o melhor Verão, é único e irrepetível – fora de série.

MAPA DE CONCERTOS CHICAGO VS. REINO UNIDO

SEXTA, 2
TRYGVE SEIM “Different Rivers”
Grande Auditório, 21h30
Bilhetes entre 12,50 e 17,59 euros

SÁBADO, 3
FRED ANDERSON/HAMID DRAKE
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

ESSENCIA
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

CHICAGO UNDERGROUND QUARTET
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

DOMINGO, 4
CARLOS BICA/CARLOS BARRETTO
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

JEB BISHOP TRIO
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

FRED ANDERSON TRIO
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

QUARTA, 7
MARILYN CRISPELL + MATS GUSTAFSSON + BARRY GUY + RAYMOND STRID
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

QUINTA, 8
BARRY GUY
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

PAUL DUNMALL OCTET
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

SEXTA, 9
KEITH TIPPETT
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

LISBON IMPROVISATION PLAYERS
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

BARRY GUY NOW ORCHESTRA
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

SÁBADO, 10
MATS GUSTAFSSON + LOTTA MELIN
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

BARRY GUY + EVAN PARKER + PAUL LYTTON
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

KEITH TIPPETT TAPESTRY ORCHESTRA
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros


A programação do Jazz em Agosto inclui ainda uma conferência por John Corbett (“Chicago Now: Creativa Music Renaissance”), sexta, 2, na Sala Polivalente, às 18h30; “Le Champ Jazzistique”, lançamento do livro, por Alexandre Pierrepont, quarta, 7, na Sala das Tapaçarias, às 17h; mesa redonda com Bill Shoemaker e músicos britânicos, quarta, 7, na Sala Polivalente, às 18h30; conferência de Jorge Lima Barreto (“Perigrafias do Jazz”), quinta, 8, na Sala Polivalente, às 15h30, todos com entrada livre; e um “workshop” de contrabaixo, com orientação de Ken Filiano, quarta, 7, na Sala Polivalente, das 10h às 12h (nº limite de participantes: 15)

19/09/2016

A jazzar em português é que a gente se entende

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 28 DEZEMBRO 2002

2002 foi um bom ano para o jazz português. Dos melhores, discograficamente falando. Sete propostas.

A jazzar em português
é que a gente se entende

Dos bons músicos que temos é lícito esperar bons discos. Contámos sete, só este ano. Número mágica a prometer um futuro ainda mais risonho. Carlos Baretto reincidiu. Depois de uma “Radio Song”, apimentada com a presença do soprador francês Louis Sclavis, que fica como um dos melhores registos do ano, “Solo Pictórico” mostra o outro lado deste exímio contrabaixista. Solo absoluto, de sons e de cores (cada tema tem correspondência numa obra pictórica também da sua autoria), espraia-se por uma série de “variações” e “deambulações”, entrecortadas por “Round midnight”, de Monk. Contido, de uma depuração extrema, nas execuções “a dedo”, Barretto abre espaços imensos quando opta pelo arco, como nas deambulações com os números 2 e 3, em que de uma certa atitude “new age” percetível na primeira se eleva à pura religiosidade, na segunda. Amplitude tímbrica, refrações oníricas, um sentido universalista da melodia conjugam-se numa obra que dispensa o acessório para se concentrar no essencial, que aqui é canto, mais do que solitário, solidário.
                Cokm dedicatórias a Morris e Goscinny, Edgar Pierre Jacobs, Hergé, Hugo Pratt, Robert Crumb, Gilbert Sheldon, Bilal e Tardi e títulos como “I’m a poor lonesome cowboy”, “Armadilha diabólica”, “As sete bolas de cristal”, “Blues dos freak brothers” e “A mulher-armadilha”, só se poderia esperar balões preenchidos por música de memória longa e leitura rápida. “Filactera”, com “design” sonoro do guitarrista Mário Delgado, é uma homenagem à banda desenhada, projeto ideologicamente próximo de “Vol pour Sidney” ou “Bandes Originales du Journal de Spirou”, ambos editados na NATO. Carregado de citações, respirando a Bill Frisell, quando calha a Delgado ser Lucky Luke, ágil nos tempos mais “bopados”, servidos pelo saxofone dócil de Andrzej Olejniczak e pelo contrabaixo sabido de Barretto, aos encontrões amigáveis com a “gentalha” infetada da editora Recommended (Zero Pop, Orthotonics, Semantics… em “Gatos e corvos”), bem-humorado na aerofagia, salvo seja, do trombone de Claus Nymark, “Filactera” é jazz aos quadradinhos, histórias para ler de ouvido, sem pretensões de inquietar o coração e confundir o pensamento.

Cinema jazz

                A jazzar, a jazzar, José Eduardo, outro contrabaixista de créditos formados, fez obra séria em “A Jazzar no Cinema Português”, gravado ao vivo com a sua “Unit” no cineclube de Faro. Pegar em “standards” conotados com a sétima arte nacional como “Se eu fosse um dia o teu olhar”, de Pedro Abrunhosa, “Balada da Rita” e “Os demónios de Alcácer-Quibir”, de Sérgio Godinho, “Grândola, Vila Morena” e “Os índios da meia-praia”, de José Afonso, “Eu vi este povo a lutar”, de José Mário Branco, “Peregrinações”, de Fausto ou “Verdes anos”, de Carlos Paredes, não é tarefa para todos. Operação de alquimia, mudar o fato e refazer o feito. Eduardo não esquece em nenhuma ocasião a trave mestra melódica que sustenta cada composição mas constrói tão longe e tão fortes quanto pode as paredes. Jesus Santadreu, no saxofone tenor, tem técnica e intuição apuradas, o que lhe permite fazer, com brilho, o que faz em “Grândola, Vila Morena”. O que para outros seria armadilha mortal, nele é via de “free”, fazendo jus à revolução. O longo medley formado pelo par “Os demónios de Alcácer-Quibir”/”Eu vi este povo a lutar” junta o espírito dos Lounge Lizards, o grande jazz de costela “bluesy” swingante e uma grande intervenção, a rasgar, do contrabaixista. Que também é pianista, em segundo plano ou à boca de cena (“Peregrinações”).
                Santadreu reaparece em “Ciclope”, no quinteto do baixista Nelson Cascais. Notável a clareza e limpidez do fraseado, aqui mais “cool”, modulado e cantante a fogo, bem secundado pelo trompete de Avishai Cohen, para nós, uma revelação. Cascais assina a quase totalidade das composições e fá-lo com os pés bem assentes nos principais capítulos da história. Jazz-modelo, clássico mas vibrante.
                Na mesma editora de Cascais (que, por sinal, gravou o seu CD em Paris), surgiu igualmente “O Osso”, registado ao vivo num único “take” no Hot Clube de Lisboa, por um quinteto sob a liderança do guitarrista André Fernandes. De novo a tradição a fazer valer os seus direitos, agora com os ouvidos postos, mas não colados, ao jazz mais fino que se fez nos anos 50 e 60, linhas de tecelagem de novas malhas. Fernandes é um Montgomeriano por afeto, quer-nos parecer, mas, enquanto compositor, a sua música atinge uma elaboração e um requinte extremos, apesar da sua aparente simplicidade. O piano elétrico Fender Rhodes de Peter Rende confere à música um colorido e delicadeza especiais, fazendo lembrar os Nucleus, Gordon Beck e o Canterbury-jazz de Steve Miller ou de uns Gilgamesh, com a guitarra de Fernandes a condizer. Melhor dizer um bordado. Julian Arguelles, nos saxes tenor e soprano, sopra com descontração e boa temperatura. Bernardo Moreira, no baixo, swinga como um safado. Ouçam-no a surfar nas notas de “Zing”.
                Um dos grandes discos do ano tem a assinatura de Bernardo Sassetti e foi gravado em ambiente de “verdadeira magia”, diz o próprio, na Quinta de Belgais, de Maria João Pires. Homem de muitas músicas, fez mais uma das suas incursões pelo jazz. Pela porta grande de Bill Evans. Em trio com Carlos Barretto (quem mais?) no contrabaixo, e Alexandre Frazão, na bateria. Jazz voltado para dentro, atento aos movimentos mais íntimos e secretos. Melancolia, uma despedida, um tempo além do tempo que faz sorrir tristemente sem se saber bem porquê. “Reflexos”, o “Sonho dos outros”, um “Olhar” e uma “Música callada” são quadros com azul molhado de lágrimas e nuvens. “Quando volta o encanto”, pergunta-se? Está sempre presente. E um aceno e trocadilho a Monk (“Monkais”). Paisagens impressionistas (“Sonho dos outros” e Satie, Chopin, Debussy, de uma beleza soluçante, sagrada, emocionante) pintadas com pontos, traços, sugestões e luzes. “Reflexos” soa como música de um filme por filmar, pinceladas de sentimentos em imagens de ouvir, melodia ao mesmo tempo familiar e estranha. Os diálogos com Barretto e Frazão são para se acompanhar como um segredo – experimente-se escutar “Cançon nº7” com as luzes apagadas e a saudade bem acesa. Sassetti é um grande pianista, já o sabíamos. Desconhecíamos era que estivesse e soubesse conviver tão perto e de forma tão tocante com o silêncio.

Em transe

                Para acabar em beleza. Para acabar – porque não? – o ano, em grande, nada melhor do que um bom desacato. E proclamamo-lo com a máxima veemência: Rodrigo Amado, Marco Franco e Paulo Curado (todos saxofonistas), Pedro Gonçalves, no contrabaixo, e Acácio Salero, na bateria, os cinco Lisbon Improvisation Players, sabem melhor do que ninguém como criá-lo. Gravado ao vivo no Teatro Tivoli, em Lisboa, o álbum dos LIP obedece a alguns dos princípios “harmolódicos” preconizados por Ornette Coleman na enunciação do “free jazz” e da conjugação entre método e liberdade criativa, a saber, a possibilidade de em simultâneo solar e enquadrar esse discurso individual na matemática do coletivo. Claro que por vezes não é fácil destrinçar a ordem do caos, a aleatoriedade da “imposição cósmica” que determina, ao mais alto nível, a improvisação. Música independente desta natureza é também música dependente da fortuna e do acaso. Viver do encontro do momento implica admitir a possibilidade do desencontro. Os LIP arriscam, mesmo assim, conversar, gritar, tropeçar e avançar. Imaginamos até onde poderiam ir, se estimulados, por exemplo, por um Evan Parker. Não é preciso, porém, imaginar onde já estão – num lugar de aventura mas também de conhecimento. Quando um deles enfrenta o precipício, saltam todos. Quando um deles alcança a grande ordem oculta sob a aparências, alcançaram todos. Lisboa, cidade de terramotos.


Carlos Barretto
Solo Pictórico
Ed. e distri. CBTM
8|10

Mário Delgado
Filactera
Clean Feed, distri. Trem Azul
8|10

Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Cinema Português
Ed. e distri. Cineclube de Faro
8|10

Nelson Cascais Quintet
Ciclope
Tone of a pitch, distri. Trem Azul
7|10

Quinteto André Fernandes
O Osso
Tone of a pitch, distri. Trem Azul
7|10

Bernardo Sassetti
Nocturno
Clean Feed, distri. Trem Azul
9|10

Lisbon Improvisation Players
Lisbon Improvisation Players
Clean Feed, distri. Trem Azul
8|10