MÚSICAS
KEPA
JUNKERA E FAUSTO NO INTERCÉLTICO DO PORTO
POR
ESTE PORTO ACIMA
COMEÇA HOJE A 11ª EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERCÉLTICO. UM FIM-DE-SEMANA
RECHEADO DE BOA MÚSICA E ATIVIDADES PARALELAS EM TORNO DE UMA MANEIRA DIFERENTE
DE ENTENDER A EUROPA, AS SUAS RAÍZES E PARTE DA SUA RAZÃO DE SER. KEPA JUNKERA,
CEOLBEG, MUXICAS E LÚNASA SÃO OS ESTRANGEIROS DE UM CARTAZ QUE FECHA COM O
PORTUGUÊS FAUSTO.
A PRESENÇA de Fausto no
Intercéltico é a principal novidade de um festival em plena fase de crescimento
que, pelo segundo ano consecutivo, estende as suas atividades por duas salas da
capital nortenha, o Coliseu, onde terão lugar os concertos mais importantes, e
o Rivoli, de gratas recordações para os “habitués” do festival, onde ficará
instalado o Café Concerto e decorrerão algumas das atividades paralelas.
Kepa
Junkera vem ao Porto disposto a triunfar, na sequência de anteriores e
memoráveis atuações no nosso país, nomeadamente no Cantigas do Maio, no Seixal,
no Funchal, na Madeira, e num “showcase” na FNAC do Colombo, em Lisboa.
Preparem-se as gentes do Norte, e não só, para vibrar, já esta noite, com a
música deste basco, executante de “trikitixa” (acordeão), cujo virtuosismo,
criatividade e entusiasmo põem invariavelmente as polvorosa as audiências
perante as quais se apresenta.
Em
termos de virtuosismo Kepa olha para a sua frente e não vê ninguém. Será hoje,
provavelmente, o expoente do acordeão, em termos de pesquisa e desenvolvimento
sistemáticos das possibilidades expressivas deste instrumento, colocando-se, a
este nível, ao lado do que um Valentin Clastrier faz em relação à sanfona. Kepa
é daqueles instrumentistas “sobrenaturais” cujas proezas técnicas na
“trikitixa” parecem impossíveis. Mas impossível é termo que não cabe no
dicionário de Kepa Junkera. Ele vai sempre mais longe na sua relação com a
“trikitixa”, consigo próprio e com a música tradicional basca, que nele
encontrou um sucessor para os Oskorri, enquanto embaixador da música deste
“país” no mundo.
O
grupo que o acompanha é excelente, recomendando-se a máxima atenção para a
execução simultânea, a quatro mãos, da txalaparta (variante móvel e aumentada
do xilofone, em versão basca), por Harkaitz Martinex e Igor Otxoa. Steve Reich,
se alguma vez os ouvisse, decerto que os recrutaria de imediato para as
fileiras do minimalismo…
Bilbau, à meia-noite
Da
discografia de Kepa Junkera destacam-se os álbuns “Trans Europe Diatonique” (em
trio com outros dois tecnicistas do acordeão, o inglês John Kirkpatrick e o
italiano Riccardo Tesi), “Lau Eskutara” (com Júlio Pereira) e o “Bilbao
00:00h”, este último com convidados como Hedningarna, La Bottine Souriante,
Carlos Nuñez, Xosé Manuel Budiño, Justin Vali, Paddy Moloney (dos Chieftains),
Oskorri e a portuguesa Dulce Pontes.
Antes
de Kepa Junkera atuam os escoceses Ceolbeg, com garantias dadas no panorama
folk europeu e uma apetência rara para a troca de correspondência com a música
de outras tradições, como as da Galiza ou dos Balcãs. Entre o folk rock, a
característica veia guerreira da música de gaita-de-foles das terras altas e os
rendilhados intimistas da música de câmara para harpa céltica, a música dos
Ceolbeg nem sempre se pautou pelo equilíbrio sendo inegável, porém, que desse
facto nunca se ressentiram as suas atuações ao vivo, como se pôde comprovar
pela primeira passagem do grupo por Portugal, nas festas da cidade da Amadora.
O
mesmo acontece, de resto, na fase mais recente da discografia dos Ceolbeg, em
“Ceolbeg 5” e, provavelmente, no álbum já deste ano, “Cairn Water”, onde a
energia que desde sempre é imagem de marca do grupo está disciplinada e
enquadrada da melhor forma numa leitura renovada da tradição. Uma chamada de
atenção para a voz de comando do guitarrista e vocalista Rod Paterson, para a
delicadeza da harpa de Wendy Stewart (autora de notáveis álbuns a solo neste
instrumento) e para o verdadeiramente incendiário Gary West, uma força da
natureza, nas “Highland bagpipes”.
Célticos latinos
Sábado é dia
dos galegos Muxicas e dos irlandeses Lúnasa. Os primeiros já atuaram em
Portugal numa das edições dos Encontros Musicais da Tradição Europeia. Os
segundos constituem estreia absoluta. Naturais de Vigo os Muxicas constituem,
de há longos anos a esta parte, uma fortaleza contra as investidas da
“irlandização” da música galega. Adeptos da teoria, contestável, de que a
música desta região do Norte da Península Ibérica é “mais latina do que celta”,
os Muxicas construíram uma obra de uma solidez a toda a prova que, alheia à
polémica, soa indiscutivelmente “galega” e, nalguns casos, minhota e transmontana.
As
gaitas-de-foles são uma afirmação de poder, os cantos possuem o orgulho e a
integridade das velhas invocações religiosas ou de trabalho dos tempos antigos,
o coletivo impõe-se ao indivíduo numa música cuja pujança e vivacidade o Porto
terá oportunidade de apreciar. Siga-se a evolução dos Muxicas ao longo dos
últimos quatro álbuns: “Desafinaturum”, “Escoitando Medra-la Herba”, “No Colo
do Vento” e “Naturalmente”.
Lúnasa, em
gaélico “Lughnasdh” (festa ligada às colheitas mas também designação do mês de
Agosto), é um grupo recente do qual se poderá esperar algumas aproximações ao
rock, pelo menos a julgar pelos antecedentes de um dos seus elementos, Trevor
Hutchinson, ex-baixista dos Waterboys mas que também integrou uma das formações
da acordeonista Sharon Shannon e tocou ao lado de Máire Breatnach, Eileen
Ivers, Moving Cloud e Altan. Dos Moving Cloud transitou também para os Lúnasa
um notável flautista, Kevin Crawford. Veremos qual o balanço que os Lúnasa
imprimem aos jigs e reels da praxe, atendendo a que tocam música exclusivamente
instrumental, onde a importância dos arranjos é fundamental. “Lúnasa” e
“Otherworld” são, até agora, os álbuns editados pelo grupo, o último na
insuspeita Green Linnet, o que, por si só, serve como atestado de qualidade.
Um segredo bem
guardado
É
com alguma expetativa que se aguarda a atuação de Fausto no último dia do
Intercéltico. Sendo raras as suas aparições em público e conhecendo-se a
importância deste autor-cantor na música popular portuguesa das últimas duas
décadas, justifica-se em pleno a sua escolha para fecho de festival.
Acompanhado por um coletivo de nove elementos, entre os quais João Balão,
mentor do recente projeto Cantigas de Amigos, e de dois Gaiteiros de Lisboa,
José Manuel David e Carlos Guerreiro, Fausto apresentará os mais recentes
capítulos de uma odisseia ímpar na música portuguesa que começou com “Por Este
Rio Acima”, prosseguiu com “Atrás dos Tempos vêm tempos” e fez uma pausa em
“Grande Grande é a Viagem”.
No
Café-Concerto instalado no Teatro Rivoli, tocará (hoje e amanhã, cerca das 24h)
outra banda irlandesa, os Shantalla, um quinteto apostado em revitalizar o
reportório tradicional irlandês e escocês em bases acústicas (acordeão,
bouzouki, flautim, flauta, bandolim, violino, viola de arco, bodhran, guitarra
e gaita-de-foles) que reivindica, como influências, os grandes Planxty, The
Bothy Band e Dick Gaughan. Um crítico irlandês chamou aos Shantalla “o segredo
da música céltica tradicional mais bem guardado da Europa”. Um segredo que já
começou a ser desvendado através do álbum “Shantalla” e que continuará a sê-lo,
nas altas e misteriosas horas do Intercéltico em que se descobre a sua face
mais intimista.
Os
Segue-me à Capela atuam hoje e amanhã, no mesmo espaço, enquanto os Comvinha Tradicional
(hoje e amanhã, pelas 23h) e os O Ó Que Som Tem, de Rui Júnior, com a Companhia
de Música “Tocá Rufar” (amanhã, pelas 18h) ocuparão o Teatro Rivoli. As
atividades paralelas incluem uma Feira/Exposição de Instrumentos com a
participação de construtores portugueses e galegos (entre os quais a nova
cooperativa Bailadouro, orientada por Tentúgal), uma Feira do Disco Folk e
Celta, a mostra de vídeos de temática céltica, Celtivideo, a apresentação do
livro autobiográfico “Carlos Paredes – A Guitarra de um Povo”, com a
participação musical de Paulo Soares (guitarra portuguesa) e Fernando Alvim
(guitarra), no Rivoli, amanhã, pelas 17h, e um workshop de guitarra portuguesa
dirigido por Paulo Soares. O Intercéltico é uma iniciativa da Câmara Municipal
do Porto, produzida pela Culturporto, com produção executiva, programação e
divulgação a cargo do MC - Mundo da Canção.
ARTES | sexta-feira, 31 março 2000