cultura TERÇA-FEIRA,
4 ABRIL 2000
Lúnasa
subiram ao pódio do Festival Intercéltico do Porto
O último
“reel” é o primeiro
Da Irlanda
veio, uma vez mais, a glória. Com os Lúnasa, que no segundo dia do Intercéltico
rubricaram uma das melhores atuações de sempre de um grupo irlandês no
festival. Jornada inesquecível também para os galegos Muxicas. O Intercéltico
fechou as portas no domingo, com o regresso triunfal de Fausto à cidade do
Porto.
Sábado, 2 de Abril, ficará
para a história do Festival Intercéltico do Porto como um dos dias em que a
música rondou a perfeição. Lúnasa, irlandeses recém-chegados ao circuito “folk”
europeu, e Muxicas, galegos, há longos anos a defenderem a genuína música
tradicional da sua região, levaram, por caminhos diferentes, a loucura a um
público que esgotou a lotação do Coliseu.
Os
Muxicas foram a força e a autenticidade das raízes galegas. O som que nasce da
terra e do mar nas gaitas-de-foles, na sanfona, nas percussões e no canto
coletivo. Liño Figueroa Costas, Magoia Bodega Pérez e Diego Garcia Rodriguez
fizeram soar com a força de um imperativo as gaitas, símbolo de afirmação de um
nacionalismo que, na música, constantemente se defronta com a intromissão aquém
(Castela) e além (Irlanda) fronteiras.
A
solo, em duo ou em trio, a ancestral voz das gaitas primou pela pujança e pela
afirmação de uma individualidade que, na Europa, apenas terá paralelo nas
“uillean pipes” irlandesas e na “biniou kozh” bretã. Cantos de unidade, agora
irmanados em cânticos de resistência e logo apaziguados em momentos de
intimismo e união com os segredos mais íntimos da forma de sentir tradicional.
Através da música dos Muxicas enfrentamos as ondas do mar para logo a seguir
nos aconchegarmos à lareira a escutar os lamentos da noite e os sortilégios das
“meigas” (feiticeiras).
Muiñeiras,
polcas, rumbas galegas, danças antigas que os Muxicas renovam sem traírem,
extraídas dos álbuns “Desafinaturum”, “Escoitando Medra-la Herba”, “No Colo do
Vento” e “Naturalmente” cativaram a plateia, que acolheu de braços abertos esta
música atlântica que amiúde bailou numa roda do Minho.
Mas,
depois do intervalo e de uma visita à feira de construtores de instrumentos
tradicionais instalada numa das salas do Coliseu, vieram os Lúnasa e, como já
acontecera em edições anteriores do Intercéltico, sempre que atuam grupos
irlandeses de primeira grandeza tudo parece mergulhar na penumbra para melhor
deixar brilhar os génios da Ilha Esmeralda.
Aconteceu
assim antes com os Chieftains, com os De Dannan, com os Dervish ou com os Four
Man and a Dog. Voltou a acontecer com os Lúnasa. Como qualquer destas bandas,
os Lúnasa incluem-se na categoria das “máquinas infernais”. Começam a carburar
em grande, engrenam na vertigem e acabam numa orgia de bem-aventurança. Se
pudessem tocar para sempre, para sempre a música continuaria a rolar como uma
locomotiva que tudo atropela na sua passagem. Pegando nas palavras de um dos
elementos da banda na introdução de um “set” instrumental, da mesma forma que
para um irlandês “the last pint” (o último copo) da noite nunca é
verdadeiramente o último, também o último “reel” deixa sempre lugar para mais
outro. Para mais uma aceleração, mais um gesto técnico prodigioso, mais uma
mudança súbita de compasso na transição do “jig” para o “reel”. Eis o que torna
a “irish traditional music” contagiante e eis o que os Lúnasa fizeram no Porto
de forma superlativa.
Bem
apoiados por uma secção rítmica composta por Trevor Hutchinson, no contrabaixo,
e Donogh Henessey, na guitarra, os três solistas, Kevin Crawford, na flauta e
“tin whistle”, Séan Smyth, no violino e “tin whistle” e um novo elemento, nas
“uillean pipes”, fizeram miséria. A uma música já de si rica acrescentaram a
mais-valia de uma criatividade constante, ao nível dos arranjos e da
interpretação. Brilhantes os “breaks” executados a meio de um tempo acelerado
para lhes conferir um “swing” e um “drive” adicionais, técnica só ao alcance
dos sobredotados. Não falemos sequer de velocidade, capítulo em que os Lúnasa
deixaram o Coliseu de rastos. Falemos antes da alegria, da absoluta comunicação
entre os músicos e dos músicos com a assistência, da forma como os sons e as
emoções se combinam para exemplificar aquilo que toda a gente amante da “folk”
já sabe – que a música irlandesa, quando feita por mestres como os Lúnasa, é a
melhor música do mundo. E dançou-se no Coliseu, claro, enquanto no átrio se
esgotaram num ápice os dois álbuns do grupo, “Lúnasa” e “Otherworld”.
Domingo
assistiu ao regresso triunfal de Fausto ao Porto, com o espetáculo “Grande,
Grande É a Cidade”. Canção urbana inspirada nos ritmos tradicionais portugueses
que levou a assistência do Coliseu ao rubro. Uma viagem que começou na crítica
“à tirania do pop e do rock”, responsáveis, para este cantautor, pela
normalização da música atual, passou pela dramatização declamada do tema da
“Peregrinação” e terminou em euforia com a inevitável “Navegar, navegar”.
Noutros
locais do Intercéltico, assistiu-se ainda à conversão do grupo de percussão O Ó
Que Som Tem à bateria e a uma vertente teatral na linha dos Stomp e ao louvável
trabalho sobre a música coral do Norte de Portugal pelo grupo vocal feminino
Segue-me à Capela. Saldo final: organização impecável, como é timbre do
Intercéltico, e música que apenas desiludiu com os Ceolbeg. Para o livro de
ouro: Kepa Junkera, Muxicas e Lúnasa.
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