04/12/2014

O último "reel" é o primeiro [Festival Intercéltico do Porto]



cultura TERÇA-FEIRA, 4 ABRIL 2000

Lúnasa subiram ao pódio do Festival Intercéltico do Porto

O último “reel” é o primeiro

Da Irlanda veio, uma vez mais, a glória. Com os Lúnasa, que no segundo dia do Intercéltico rubricaram uma das melhores atuações de sempre de um grupo irlandês no festival. Jornada inesquecível também para os galegos Muxicas. O Intercéltico fechou as portas no domingo, com o regresso triunfal de Fausto à cidade do Porto.

Sábado, 2 de Abril, ficará para a história do Festival Intercéltico do Porto como um dos dias em que a música rondou a perfeição. Lúnasa, irlandeses recém-chegados ao circuito “folk” europeu, e Muxicas, galegos, há longos anos a defenderem a genuína música tradicional da sua região, levaram, por caminhos diferentes, a loucura a um público que esgotou a lotação do Coliseu.
            Os Muxicas foram a força e a autenticidade das raízes galegas. O som que nasce da terra e do mar nas gaitas-de-foles, na sanfona, nas percussões e no canto coletivo. Liño Figueroa Costas, Magoia Bodega Pérez e Diego Garcia Rodriguez fizeram soar com a força de um imperativo as gaitas, símbolo de afirmação de um nacionalismo que, na música, constantemente se defronta com a intromissão aquém (Castela) e além (Irlanda) fronteiras.
            A solo, em duo ou em trio, a ancestral voz das gaitas primou pela pujança e pela afirmação de uma individualidade que, na Europa, apenas terá paralelo nas “uillean pipes” irlandesas e na “biniou kozh” bretã. Cantos de unidade, agora irmanados em cânticos de resistência e logo apaziguados em momentos de intimismo e união com os segredos mais íntimos da forma de sentir tradicional. Através da música dos Muxicas enfrentamos as ondas do mar para logo a seguir nos aconchegarmos à lareira a escutar os lamentos da noite e os sortilégios das “meigas” (feiticeiras).
            Muiñeiras, polcas, rumbas galegas, danças antigas que os Muxicas renovam sem traírem, extraídas dos álbuns “Desafinaturum”, “Escoitando Medra-la Herba”, “No Colo do Vento” e “Naturalmente” cativaram a plateia, que acolheu de braços abertos esta música atlântica que amiúde bailou numa roda do Minho.
            Mas, depois do intervalo e de uma visita à feira de construtores de instrumentos tradicionais instalada numa das salas do Coliseu, vieram os Lúnasa e, como já acontecera em edições anteriores do Intercéltico, sempre que atuam grupos irlandeses de primeira grandeza tudo parece mergulhar na penumbra para melhor deixar brilhar os génios da Ilha Esmeralda.
            Aconteceu assim antes com os Chieftains, com os De Dannan, com os Dervish ou com os Four Man and a Dog. Voltou a acontecer com os Lúnasa. Como qualquer destas bandas, os Lúnasa incluem-se na categoria das “máquinas infernais”. Começam a carburar em grande, engrenam na vertigem e acabam numa orgia de bem-aventurança. Se pudessem tocar para sempre, para sempre a música continuaria a rolar como uma locomotiva que tudo atropela na sua passagem. Pegando nas palavras de um dos elementos da banda na introdução de um “set” instrumental, da mesma forma que para um irlandês “the last pint” (o último copo) da noite nunca é verdadeiramente o último, também o último “reel” deixa sempre lugar para mais outro. Para mais uma aceleração, mais um gesto técnico prodigioso, mais uma mudança súbita de compasso na transição do “jig” para o “reel”. Eis o que torna a “irish traditional music” contagiante e eis o que os Lúnasa fizeram no Porto de forma superlativa.
            Bem apoiados por uma secção rítmica composta por Trevor Hutchinson, no contrabaixo, e Donogh Henessey, na guitarra, os três solistas, Kevin Crawford, na flauta e “tin whistle”, Séan Smyth, no violino e “tin whistle” e um novo elemento, nas “uillean pipes”, fizeram miséria. A uma música já de si rica acrescentaram a mais-valia de uma criatividade constante, ao nível dos arranjos e da interpretação. Brilhantes os “breaks” executados a meio de um tempo acelerado para lhes conferir um “swing” e um “drive” adicionais, técnica só ao alcance dos sobredotados. Não falemos sequer de velocidade, capítulo em que os Lúnasa deixaram o Coliseu de rastos. Falemos antes da alegria, da absoluta comunicação entre os músicos e dos músicos com a assistência, da forma como os sons e as emoções se combinam para exemplificar aquilo que toda a gente amante da “folk” já sabe – que a música irlandesa, quando feita por mestres como os Lúnasa, é a melhor música do mundo. E dançou-se no Coliseu, claro, enquanto no átrio se esgotaram num ápice os dois álbuns do grupo, “Lúnasa” e “Otherworld”.
            Domingo assistiu ao regresso triunfal de Fausto ao Porto, com o espetáculo “Grande, Grande É a Cidade”. Canção urbana inspirada nos ritmos tradicionais portugueses que levou a assistência do Coliseu ao rubro. Uma viagem que começou na crítica “à tirania do pop e do rock”, responsáveis, para este cantautor, pela normalização da música atual, passou pela dramatização declamada do tema da “Peregrinação” e terminou em euforia com a inevitável “Navegar, navegar”.
            Noutros locais do Intercéltico, assistiu-se ainda à conversão do grupo de percussão O Ó Que Som Tem à bateria e a uma vertente teatral na linha dos Stomp e ao louvável trabalho sobre a música coral do Norte de Portugal pelo grupo vocal feminino Segue-me à Capela. Saldo final: organização impecável, como é timbre do Intercéltico, e música que apenas desiludiu com os Ceolbeg. Para o livro de ouro: Kepa Junkera, Muxicas e Lúnasa.

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