29/12/2014

Com a tranquilidade no olhar [June Tabor]



DESTAQUE

ENTREVISTA COM JUNE TABOR, QUE CANTA HOJE À NOITE NO CCB

COM A TRANQUILIDADE NO OLHAR

SERÁ A TERCEIRA APRESENTAÇÃO AO VIVO EM PORTUGAL DE JUNE TABOR, UMA DAS VOZES E FIGURAS MAIS MARCANTES DA MÚSICA POPULAR BRITÂNICA DAS ÚLTIMAS TRÊS DÉCADAS. COMEÇOU PELA FOLK, ARRISCOU O PUNK, GOSTA DE FLIRTAR COM O JAZZ E É DETENTORA DE UMA CARREIRA IMACULADA. “A QUIET EYE” É O SEU MAIS RECENTE DISCO. UM DISCO “HAUNTING”, “FANTASMAGÓRICO”, COMO ELA DIZ.

JUNE TABOR nasceu em Warwick, Inglaterra, no último dia do ano de 1947. Ao longo da década de 60 e da primeira metade dos 70, viveu, como todas as cantoras inglesas da sua geração, um pouco apagada na sombra de Sandy Denny. A nobreza e a absoluta ausência de concessões da sua música acabaram, porém, por impô-la como uma das maiores cantoras das Ilhas Britânicas.
Embora o seu nome esteja ligado sobretudo à música tradicional, são frequentes as incursões pelo jazz e pelos compositores contemporâneos. Já gravou com os punk-folkers Oysterband e atuou ao lado dos Albion Band e dos Fairport Convention. Colaborou com Nic Jones, Martin Carthy, Peter Bellamy, Savourna Stevenson e Maddy Prior, formando com esta última o grupo Silly Sisters. Nos últimos anos, a sua música ganhou um apuro formal e uma elegância inultrapassáveis que nos álbuns se traduzem numa quase fantasmagoria.
            June Tabor, que já atuou duas vezes em Portugal, afirmou uma vez que “os nossos problemas seriam resolvidos se o mundo fosse governado por jardineiros… os verdadeiros, claro”. June é um desses jardineiros que semeia a terra com as sementes de outro mundo.
            Apresentar-se-á em trio com Huw Warren, no piano, e Mark Emerson, no violino e viola de arco.
            PÚBLICO – Durante anos consecutivos foi a vencedora crónica na categoria de “melhor cantora” nos prémios da revista “Folk Roots” que, finalmente, resolveu instituir um prémio especial de carreira só para si. Sentiu-se arrumada numa gaveta?
            June Tabor – Esse concurso… É sempre bom quando se ganha. Fica bem no currículo… Mas a responsabilidade também aumenta. Acabou por ser do meu interesse e da revista ter sido tomada essa decisão.
            P. – Ao fim de quase 30 anos de carreira, já não tem nada para provar?
            R. – Ao mundo, decerto que não. A mim, provavelmente, sim… Quando nos dirigimos aos outros, são importantes as suas opiniões sobre a imagem de mim própria que procuro transmitir. Mas quando tentamos provar alguma coisa a nós próprios, o caso muda de figura. Neste caso sou o mais acérrimo dos críticos. Os níveis de qualidade que imponho a mim própria são mais exigentes do que qualquer pressão que possa vir do exterior.
            P. – Ainda sente essa pressão de cada vez que entra em estúdio para gravar um novo álbum?
            R. – Sem dúvida! Os nervos são uma coisa necessária. E a adrenalina… Às vezes os nervos surgem sem razão aparente. É preciso acreditarmos em nós próprios para conseguirmos ultrapassar estas fases. Eu consigo-o quase sempre.
            P. – Os seus discos são todos bons. Se calhar as pessoas têm curiosidade em saber quando dará um passo em falso…
            R. – … E espero nunca dar! Mas a verdade é que quando se termina um disco, está feito, já não se pode mudar nada. Fica escrita a versão definitiva e é possível ser-se julgado de uma maneira diferente daquela que se gostaria. É difícil dizer qual é a versão definitiva de uma canção. Em princípio qualquer coisa que fica gravada, em geral, nunca é tão boa como numa apresentação ao vivo. Gravar um disco é uma atividade estranha, artificial. Depois, o dinheiro para o fazer é limitado, a não ser que se seja famoso e se possa ficar fechado anos num estúdio. No caso da folk, não costuma haver muito dinheiro e o tempo em estúdio é limitado o que torna problemático captar a essência de uma canção. Às vezes, por sorte, consegue-se… De resto, todo o processo de apresentação de um disco é artificial, um exercício efémero num caminho que é a vida inteira. Não será a fórmula mais sincera de todas…

“Cantora folk é um pouco redutor”

            P. – Gostaria de ser considerada a primeira dama da folk?
            R. – Não seria verdade. Tanto canto canções folk como outras que não o são. Gostaria que me encarassem como uma cantora de canções fortes que conta histórias fortes, venham elas de onde vierem. “Cantora folk” é um pouco redutor…
            P. – Mas a verdade é que metade dos temas que fazem parte do seu novo álbum, “A Quiet Eye”, são tradicionais…
            R. – Sim, serão 50 por cento, mas mesmo essas não são interpretadas de uma maneira tradicional.
            P. – Ainda a propósito de “primeiras damas”, o som de álbuns como “Angel Tiger”, “Against the Streams”, “Aleyn” ou “A Quiet Eye” tem a mesma qualidade espectral de um disco como “Once in a Blue Moon”, de Lal Waterson com Oliver Knight ou dos mais recentes trabalhos de Norma Waterson…
            R. – Espectral? Bem, eu ainda aqui estou deste lado do telefone! (risos). Mas sei o que quer dizer, a minha música tem, de facto, essa qualidade fantasmagórica (“haunting”). No trabalho de produção é muito importante descobrir o som específico de cada voz. O som das vozes de Norma e Lal tem essa qualidade.

Letras que contem uma boa história

            P. – Qual o papel de Huw Warren, que há anos faz os arranjos para as suas canções, nesse processo?
            R. – Funcionamos cada vez melhor um com outro, é uma aprendizagem mútua. Primeiro escolho as canções com base nas letras e faço um primeiro esboço do modo como acho que devem ser interpretadas e do tipo de instrumentação que deve ser usada. Digamos que aprendo a cantar a canção, só depois, já em conjunto, é que decidimos qual vai ser o acompanhamento. Em princípio cada canção é interpretada ao vivo duas ou três vezes até chegar à forma certa. No caso de “A Quiet Eye” tudo isto demorou bastante tempo antes de Huw escrever as partituras para a orquestra.
            P. – Essa é outra das questões levantadas pelo disco. Li uma crítica negativa ao modo como a secção de metais (não) ligava com a sua voz, chamando aos arranjos “música de casino”. Não partilho desta opinião, mas gostaria de ouvir o seu comentário.
            R. – Toda a gente tem direito a fazer as críticas que quiser mas é óbvio que não concordo. Música de casino? Há sempre alguém à procura de poder dizer mal de qualquer coisa. Essa é a forma mais reles de deitar abaixo, de denegrir o que considero ser um trabalho esplendoroso a todos os níveis, instrumentação, interpretação, arranjos, escolha de reportório. Estou-me absolutamente nas tintas para as pessoas que fazem esse tipo de afirmações, são opiniões que valem pouco mais que zero! Fiz-me entender?
            P. – Completamente! Pessoalmente os arranjos para metais fizeram-me lembrar – e, utilizando o seu termo – os arranjos “esplendorosos” de “Anthems in Eden”, de Shirley e Dolly Collins, um clássico. Muito mais que o trabalho exaustivo com instrumentos de sopro dos Brass Monkey…
            R. – Adoro esse álbum mas nem sequer me lembrei dele na altura das gravações. Mas gosto da comparação! Os Brass Monkey são outra coisa, os nossos arranjos usam sobretudo as surdinas, segundo técnicas muito próximas do jazz. Pouca gente reparou nisso…
            P. – O longo tema “The writing of Tipperary/It’s a long way to Tipperary” é um dos destaques de “A Quiet Eye”.
            R. – É épico. Sempre gostei deste tema mas não sabia qual a melhor maneira de o cantar. Decidi-me finalmente como resultado desta minha primeira colaboração com elementos da Creative Jazz Orchestra.
            P. – Richard Thompson, Maggie Holland e Nic Jones, todos ligados à folk, estão presentes com composições em “A Quiet Eye” e são escolhas óbvias, mas é a primeira vez que canta Ewan MacColl, em “The first time I ever saw your face”…
            R. – Uma personalidade tremenda e um grande compositor. Mas apesar de admirar quase todas as suas canções não há muitas que se adaptem a mim. É algo de subjetivo.
            P. – Afirmou há pouco que escolhia sempre as canções a partir das letras.
            R. – Sim, tudo o resto é secundário. Procuro letras que contem uma boa história ou que contenham uma sugestão visual forte, com economia de palavras. O máximo de coisas ditas num mínimo de espaço. Canções que façam sentir e pensar.

JUNE TABOR
Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, hoje, às 21h30
Bilhetes entre 1500$ e 4000$


AS QUATRO FASES DA LUA

ASHES AND DIAMONDS, 1977
Primeira obra-prima. O álbum do “escândalo”, onde June Tabor, purista das puristas, utiliza um sintetizador. Canções “a capella” alternam com arranjos instrumentais belíssimos, como “Now I’m easy”, “The earl of Aboyne” e “Cold and raw”. E “Lisbon”, balada que narra o encontro amoroso, no Renascimento, de uma portuguesa com um marinheiro inglês, no porto de Lisboa. Quarto crescente.

AQABA, 1988
Deslumbrante. Nesta altura já June Tabor passeava a voz e o talento por músicas de outras paragens. É o disco de apresentação de Huw Warren, em quem a cantora descobre o parceiro ideal. A voz parece pairar no éter, criando um ambiente de religiosidade. June cobre-se com o manto da noite. Lua cheia.

AGAINST THE STREAMS, 1994
Juntamente com o anterior “Angel Tiger”, é um álbum de depuração que descobre o ponto de equilíbrio: com um mínimo de meios, o máximo de emoção. Ainda a continuação de um ciclo, eternamente reaberto, de regresso à música tradicional. Uma noite de luar banhada pelo espírito da paz. Quarto minguante.

A QUIET EYE, 2000
Um manto de negrume adensa-se sobre esta voz, cada vez mais grave, de uma das maiores cantoras inglesas vivas. É um disco essencialmente “folk” onde cada balada é transformada num “standard” para a eternidade. Do exotismo “world” de “Pharaoh” ao “tour de force” folky “The writing of Tipperary/It’s a long way to Tipperary”, que recupera os ambientes do fabuloso “Ashes and Diamonds”. Lua nova.


UMA GERAÇÃO NA SOMBRA

SANDY DENNY dominou o panorama das vozes femininas folk em Inglaterra durante uma década, desde a sua estreia discográfica com os Strawbs, em 1967, até ao seu álbum a solo de despedida, “Rendez-Vous”, de 1977. No ano seguinte, uma hemorragia cerebral provocada pela queda de umas escadas na casa de um amigo privou o mundo de uma voz que sempre viveu ensombrada pela tragédia.
            Nestas condições era difícil a qualquer outra cantora folk inglesa, por maiores que fossem as suas capacidades, sobressair na sombra que era todo o espaço que Denny deixava às suas “rivais”. June Tabor faz parte desse grupo de cantoras originárias do circuito folk inglês dos anos 60 que lutava por um lugar ao sol. Curiosamente, o seu primeiro registo discográfico, “Silly Sisters”, surge em 1976, ou seja, numa altura em que a carreira de Denny se aproximava do ocaso e numa união de esforços com Maddy Prior, então nos Steeleye Span, outra das cantoras que também sempre lutara por se destacar do brilho ofuscante da antiga vocalista dos Fairport Convention.
June Tabor e Maddy Prior, ambas consideradas expoentes da folk britânica (não esqueçamos que a competição também foi sempre feroz com a vizinha Irlanda que, em matéria de “marketing”, tem sabido apresentar as suas melhores vozes embaladas com o irrecusável rótulo de “celtic”… não estavam, porém, sozinhas, nesta luta pela emancipação.
Nomes como Jacqui MsShee, dos Pentangle, Shirley Collins, Anne Briggs (uma das mestres de June) ou, mais ligadas ao folkrock, Bridget St. John, Gay Woods (da primeira formação dos Steeleye Span aos quais regressou recentemente), Linda Thompson (ex-mulher de Richard Thompson), Beverley Martyn (ex-mulher de John Martyn) ou Polly Bolton, dos Trees, surgiam com alguma regularidade na página de folk do jornal “Melody Maker”, pela pena de Colin Irwin, mas apenas as duas primeiras, Jacqui e Shirley, conseguiram atravessar de forma ativa e marcante as duas décadas consequentes.
Além destas, havia uma papisa: Norma Waterson, que debutara no seio de uma estranha família de cantores amantes da tradição rural inglesa e das danças “morris”, os The Watersons, hoje reavaliados como a raiz comum. A sai irmã Lal, já falecida, e o seu atual marido, Martin Carthy, o “Dylan inglês”, como lhe chamam, faziam igualmente parte desse coletivo cuja importância nunca é demais destacar.
Mas Norma nunca se preocupou em sair do anonimato. Foi preciso esperar até ao final do milénio para o seu nome ser dignificado, através de dois álbuns a solo que são outras tantas obras-primas da folk, junção perfeita dos veios mais antigos com uma atitude que não poderia ser mais contemporânea: “Norma Waterson” e “The Very Thought of You”, qualquer deles considerado pelo PÚBLICO como dos melhores dos respetivos anos.
Sem Norma, sem June, sem Maddy, sem Shirley e, indubitavelmente, sem Sandy, não haveria futuro. Mas elas existiram. E uma herança inestimável é transportada hoje por jovens como Eliza Carthy (na foto), menina-prodígio, cantora e violinista, filha de Martin Carthy e Norma Waterson, Kate Rusby ou Jo Freya (ex-Blowzabella).


ARTES | sexta-feira, 15 setembro 2000

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