Sons
23 de Janeiro 1998
Rão Kyao viaja em “Navegantes”
Bambu e especiarias
Foi-se o fado, mas as ondas do mar continuam a empurrar Rão Kyao na direcção de uma música cada vez mais ampla e com mais espaço para respirar. Em “Navegantes”, o seu novo álbum, a flauta de bambu dança com as vozes, um saltério e uma secção de cordas. Índia, Jamaica, Arábia, Portugal olhado do Oriente. Mapa de uma viagem interior atenta ao sopro dos mestres e do mundo.
“Navegantes” é um álbum acústico em que Rão Kyao desenha as cores do que ele próprio chama o “uno no múltiplo”. Uma espécie de espectáculo ao vivo da alma do músico, inspirada no movimento das águas e na sabedoria de um dos mestres indianos da flauta, Hariprasad Chaurasia.
PÚBLICO – “Navegantes” recorre a uma quantidade de meios técnicos e humanos pouco habitual nos seus discos. Trata-se de um alargamento da sua visão musical ou de algo mais?
RÃO KYAO – Há, efectivamente uma mudança. Gravar um novo disco, só por gravar, não fazia sentido. É uma ideia que já tinha com o Luís Pedro Fonseca [produtor e arranjador do álbum], de apresentar um disco basicamente acústico, uma direcção que quero aprofundar cada vez mais, bem como uma utilização orquestral, algo que já havia feito antes, mas de uma forma mais ligeira.
P. – Afirma na capa que este disco é “uma viagem interior”.
R. – Um dos títulos que cheguei a ponderar muito para este disco, só que não consegui reduzi-lo a uma palavra, era “o uno no múltiplo”. A unidade da expressão musical manifestada através de certas experiências que me são intimas. Essa viagem interior passa por vários pontos que são, no fundo, o meu legado musical, a minha espiritualidade musical. É um tipo que está a navegar, navegação no sentido interior.
P. – Uma viagem sob o signo das águas...
R. – Águas, porque é, de todos os elementos, o mais associado à própria sonoridade da flauta de bambu.
P. – “Navegantes” navega explicitamente nas águas da “world music”. Na contracapa aparece mesmo o rótulo “rare things from Portugal”. Uma aposta para o estrangeiro?
R. – Espero que sim. Interessa-me alargar o meu mercado o mais possível. Parece-me que há um interesse, lá fora, por este tipo de música, não só por ser “world music”, mas por um tratamento natural dos sons. “Navegantes” é quase um disco de rua.
P. – “No balanço” tem por base um ritmo reggae...
R. – É uma coisa de rua. Um aceno a um ritmo de que gosto muito e que se tornou internacional. É um tema que temos vindo a tocar ao vivo, que confere à música uma coloração muito festiva.
P. – A música árabe aflora em “Arab”.
R. – Isso é mesmo, abertamente, um aceno aos nossos amigos árabes, cuja música constitui para mim uma grande influência.
P. – Depois há a música indiana. O mais interessante é que, para além dos temas em que esta música assume, de forma inequívoca, esta influência, ela está presente, de forma mais subtil, nos temas que tomam por base a tradição portuguesa. Isso nota-se, por exemplo, nas interpretações vocais. Até a convidada Filipa Pais soa algo indiana quando canta uma canção como “Na vindima”...
R. – Acho giro que diga isso, embora talvez não gostasse de vê-lo escrito, poderia soar a uma pretensão absurda da minha parte...
P. – Não é uma crítica, antes pelo contrário...
R. – Pois, a nossa música, através de todas as suas formas, tem realmente esse aspecto. Digamos que eu, ao interpretá-la, vou mais para esse lado. É algo que me é íntimo. Uma música que, sendo portuguesa, tem essa costela mais desértica, no sentido daquela sonoridade que vem da Índia.
P. – “Oca” e “Ecos tribais” são exercícios solitários, respectivamente na ocarina e na flauta de bambu, onde recorre à técnica de “multitracking”. Um desejo de interiorização mais abstracta?
R. – São as tais viagens. Se assistir a um espectáculo meu, seria incompleto não aparecer esse aspecto... Não é só o “multitracking”, mas a maneira como se joga com a sonoridade e as possibilidades do instrumento. A flauta pode ser vista de uma forma percussiva, de uma forma cantada, de uma forma encantatória... Os “Ecos tribais” têm um aspecto ritualizado...
P. – Nunca tinha tocado ocarina antes, nos seus discos. Trata-se de experimentar diferentes tipos de respiração, no sentido mais lato deste termo?
R. – Sim. Tenho várias maneiras de desenvolver as técnicas de respiração. Por exemplo, estou a introduzir, lentamente, a utilização da respiração, da sua sonoridade, pelo nariz, como um ritmo alternado à flauta. Uma das coisas que a música tem que ter é uma boa respiração. Num músico de sopros essa respiração é-lhe naturalmente dada pelo facto de ter que respirar.
P. – Também toca, pela primeira vez, em “Lençóis de trigo”, um saltério, que nem sequer é um instrumento de sopro...
R. – Utilizo-o apenas para obter um determinado tipo de ressonância.
P. – E canta muito neste disco...
R. – É uma coisa que tenho andado a fazer nos espectáculos ao vivo. Pensando bem, este disco é como se fosse um espectáculo meu ao vivo. Uso a voz de uma forma onomatopaica que não pode ser escutada separada da flauta.
P. – A espiritualidade que ressalta da sua forma de tocar fez-nos lembrar o flautista indiano Hariprasad Chaurasia. Conhece a sua música?
R. – É um grande amigo meu! Conheci-o na Índia, onde estive muitos anos a estudar flauta, numa altura em que eu tinha arranjado emprego a tocar em filmes indianos. Tornámo-nos amigos. Sou fã dele e reconheço-o como uma influência muito grande na minha música.
P. – E Stephan Micus, outro músico que me parece cada vez mais próximo de si?
R. – Esse já pelo aspecto do conceito. É um músico que já chamo de “vanguarda”, no sentido de ir à frente, de ver a música com outra profundidade e de abrir novos caminhos...
P. – Trata-se de alguém cuja música está muito ligada aos elementos e que, inclusive, já tocou em pedras e em vasos. Sente também essa ligação forte com a Natureza?
R. – É um dos aspectos que sempre me fascinou. Nunca quis tocar uma flauta transversal, metálica. A flauta de bambu sempre representou a minha aproximação a um elemento natural.
P. – Considera-se um músico de fusão?
R. – O termo só me desagrada por achá-lo exagerado. Ou seja, não como frango por ananás. A fusão só faz sentido, ou concordância, ou consonância, na ligação de estilos. Se formos a ver, toda a música que tem uma raiz funda no mundo nasceu de uma fusão. O jazz, por exemplo, é uma música completamente de fusão, no entanto tem uma característica própria. E a nossa própria música tradicional – mais fusão é impossível... Há, realmente, coisas que surgem e se mantém pelo tempo, criam uma raiz e dão frutos de fusão. Mas, ao mesmo tempo, sou um músico que pensa muito em termos de uma música de raiz, há aqui uma bipolaridade. O maior músico é aquele que tem uma raiz muito profunda, mas, ao mesmo tempo, está sempre aberto a encontros.
P. – Como e quando é que vai levar “Navegantes” para a estrada?
R. – Vou levar os músicos todos. O início da digressão pelo país vai ser no próximo dia 3 de Fevereiro, no espaço Roma, em Lisboa. O que não quer dizer que vá fazer o mesmo nos espectáculos de província – não é para minimizar, mas não posso andar com 40 músicos atrás. Aí teremos que fazer um apelo aos “samplers”.