Y 4|JULHO|2003
música|capa
United
States of Lou Reed
Traz a Coimbra “NYC Man” e “The Raven”, peças do
“puzzle” da vida de um homem do tamanho de Nova Iorque.
“Duas
guitarras, baixo, bateria. Qualquer banda os pode tocar. É disto que gosto nas
minhas canções: Pode-se ter o QI de uma tartaruga e tocar-se uma canção de Lou
Reed. É também o que aprecio no rock ‘n’ roll. Qualquer um consegue tocar
rock‘n’roll, incluindo eu. Três acordes chegam-me perfeitamente. Não me
interessa aprender mais nenhum. Prefiro dominar estes três. Se são
suficientemente bons para John Lee Hooker, também são bons para mim”.
É deste modo que Lou Reed comenta “Heroin”,
uma das canções emblemáticas da sua carreira, incluída na antologia “NYC Man”,
que serve de base ao alinhamento do duplo concerto em Coimbra, hoje e amanhã,
pelas 22h, no Jardim da Sereia. Atitude de modéstia que, de certa forma, é
contrariada pela grandiloquência de “The Raven”, o seu mais recente álbum, com
as suas orquestrações e uma complexidade, musical e poética, que desmente a
teoria dos três acordes. Já nos estávamos a esquecer: Lou Reed também é capaz
de contar uma boa anedota.
Claro que a voz é monocórdica e que a
estrutura das canções permanece, regra geral, fiel aos mandamentos do rock‘n’roll,
o que não obsta a que a obra gravada de Lou Reed possa ser considerada um dos
blocos de apontamentos – onde este nova-iorquino de 59 anos anotou de tudo um
pouco – mais ricos da música popular dos nossos dias. Entre as exceções, contam-se
a descarga de ruído elétrico em bruto de “Metal Machine Music” (cuidadosamente
remasterizado numa edição recente, Lou Reed dá muita importância à qualidade de
som), “The Bells”, que o próprio define como uma “mini sinfonia rock” (cuidado,
António Manuel Ribeiro!), com a participação do trompetista oriundo do “free
jazz” Don Cherry, e o novo “The Raven”, obra conceptual inspirada na literatura
fantástica de Edgar Allan Poe.
É igualmente claro, ou escuro, que discos
como “Berlin”, uma daquelas obras que nos faz provar o sangue e a noite por um
cálice do mais puro cristal, “Transformer”, que alguns arrumaram rapidamente na
gaveta do “glam rock”, ou “Magic and Loss”, requiem, de uma beleza dolorosa,
por um amigo morto, estão longe de se confinar à constelação do rock‘n’roll e
que aquela asserção de Reed deverá ser entendida à luz da ironia. Ou, melhor
dizendo, do sarcasmo.
auto-retrato. O que Lou Reed apresentará ao vivo em
Coimbra, depois do concerto semifalhado que constituiu a sua anterior
apresentação em Portugal, no encerramento da Expo-98, foge às regras de
funcionamento habituais dos concertos “antológicos”. À semelhança de “NYC Man”,
não se trata tanto de um “best of” de propaganda dos “maiores êxitos”, mas de
uma espécie de filme (ou documentário, Reed chama-lhe um auto-retrato) em que
cada canção se relaciona com as que lhe estão próximas, segundo um encadeamento
onde prevalecem as conotações subterrâneas, as afinidades psicológicas ou
geográficas (em que Nova Iorque aparece, obviamente, como uma das personagens
em destaque) ou inusitadas coincidências da matéria sonora propriamente dita (o
“riff” de guitarra de “Ecstasy”, de 2000, remete e é o prolongamento natural de
um outro “riff” de guitarra, de “Sweet Jane”, dos VU de 1970).
Funcionar de acordo com estes parâmetros
até às suas últimas consequências, no disco e em concerto, requer a consciência
de um vigilante e um pulso de ferro. Assim se compreende que tenha sido o
próprio Lou Reed a determinar um alinhamento onde as evidências são passagens
através de buracos negros, ligando mundos que a olho nu parecem tão afastados
entre si como o sonho da rotina do quotidiano.
De que outra forma se poderá explicar que,
na compilação, “Who am I?”, de “The Raven” (2002), desemboque em “Sweet Jane”,
dos Velvet, ou que “Kill your sons” (gravação ao vivo de 1984) se interponha
entre “Walk on the wild side” e “Vicious”, ambas de “Transformer”, embora neste
caso, a própria sequência de títulos atire já a imaginação para um enredo
perturbante? Ou que a evocação termine nos recônditos, mas tão atuais, sons de
“Pale blue eyes”, dos Velvet do álbum homónimo de 1969 (ao vivo será “Candy says”)?
Ainda o comentário mordaz: “Quando se faz
uma compilação, a última pessoa com quem se fala é o artista. Geralmente até se
espera que ele já esteja morto de maneira a não incomodar com as suas
sugestões.” Em “NYC Man”, pelo contrário, Lou Reed foi contactado e foi ele
quem selecionou e sequenciou esta história de 25 anos na qual se interligam e
justapõem – numa imagem de aparente caos que será, afinal, uma ordem, a mesma
ordem babilónica sobre a qual se constroem os múltiplos ritmos e existências de
Nova Iorque –, como se diz no disco, o melodrama e a tragicomédia, rock
visceral e música ambiental austera. Tudo isto que nos concertos de Coimbra
estará representado através do mítico “The Velvet Underground & Nico” – com
a inclusão no alinhamento de “Sunday morning”, “Venus in furs” e “All tomorrow
parties” (Laurie Anderson suportará a presença do fantasma de Nico?) – e da
obra-prima de 1973, com “Men of good fortune” e a desolação de “The bed”.
o
artista está “alto”. Há quem diga que o estranho da história é o facto
de Lou Reed ainda estar vivo. Que o “anjo do bizarro”, parafraseando o título
de um conto de Edgar Allan Poe, sorria ainda ao explicar que o “lado negro” e o
“lado claro” não são mais do que os dois lados de uma mesma moeda a que chama a
“vida real” e que é impossível sermos sempre infelizes ou felizes (embora uma
canção como “Perfect day” mostre que é possível ser-se ambas as coisas ao mesmo
tempo), ou que canções que nos habituámos a associar a um estado de depressão
crónica do artista sejam afinal, como “Vicious”, o resultado de bons momentos e
de “great fun” vividos no estúdio na companhia de amigos como Mick Ronson ou
Bowie.
Sobrevivente dos tempos em que a sua única
amiga era a heroína ou diletante hedonista, cronista pop da fauna da “Big
Apple” ou poeta iluminado que ousa comparar as palavras de “Street hassle” a um
monólogo de Tennesse Williams, Lou Reed é o puto sem grande voz que queria ser
o artista que matou a arte, no circo dada antipsicadélico com o cartaz Velvet
Underground, mas que acabaria por se tornar o grande edifício urbano, tão
“alto” como o “empire state human” de que falavam os Human League. Lou Reed, o
escarro, e Lou Reed, o esteta. Lou Reed, que se atrapalhou quando, em 1972, na
gravação do álbum de estreia, “Lou Reed”, lhe puseram pela frente dois
dinossauros do rock progressivo, Rick Wakeman e Steve Howe (ambos dos Yes!), e,
anos mais tarde, viria a casar-se com a avatar da arte de vanguarda chamada
Laurie Anderson. Um corpo, dois rostos. Laurie Anderson, a autora do
megadocumento multimédia “United States of America”, Lou Reed, capaz de injetar
na veia de uma canção de três minutos o reservatório completo de ADN (ácido desoxirribonucleico,
embora o autor de “Heroin” tivesse especial predileção pelo pó branco) do rock
& roll. Cada um deles alter-ego do outro. Ambos representantes dos estados
unidos da música popular. Mais especificamente: estados alterados.
metal
e magia. Lou Reed, que
se pode gabar de, por sugestão da heroína, ter gravado o álbum mais inaudível
da música popular, o atrás citado “Metal Machine Music”, cuja audição, na
íntegra (coisa que, diz-se à laia de anedota, até ao presente ninguém logrou
aguentar), equivalente a uma radiografia sonora do cérebro de um condenado à
cadeira eléctrica no momento da execução. Lou Reed, o contador de histórias
ternas, das tardes que assassinam o tempo, a ver “the animals in the zoo”. Lou
Reed das fantasmagorias, nas asas do corvo alimentado com os poemas
putrefactos, o álcool e o ópio de Poe, em “The Raven”. Lou Reed, sem receio de
empunhar o escalpelo de Édipo em “Rock minuet”. Lou Reed, a fazer soar os sinos
subliminares da loucura, em “The Bells”. Lou Reed, a dançar nos mais datados
“nightclubs” de “disco sound” de NYC, em “Sally Can´t Dance”. Lou Reed da
grande perda, que em vez de se abandonar ao abraço uterino da morte, e correr
para a porta de saída, optou por seguir a seta a indicar a (re)entrada na vida,
em “Magic and Loss”. E, no entanto, a sua voz continua a ser monocórdica.
Quantas histórias cabem numa só corda da garganta?
Lou Reed virá a Coimbra acompanhado por
Fernando Saunders (baixo), Mike Rathke (guitarra), Jane Scarpantoni
(violoncelo) e Antony (o “crooner” do momento, com voz de “castratto”, que
atuou recentemente em Portugal ao lado dos Current 93). Sentado algures no
palco estará o mestre Guang Yi Ren, professor de artes marciais e terapeuta.
Terapia por terapia, antes ouvir “Metal Machine Music” de ponta a ponta.
os discos do concerto
Na
atual digressão, o “NYC Man” recuou aos primórdios da sua obra, dela tirando a
percentagem maior de canções para o alinhamento dos concertos. Com o corvo a
sobrevoar.
VELVET UNDERGROUND & NICO (1967)
O
álbum da banana é o álbum que jamais teria existido sem o patrocínio de Andy
Warhol, o homem-banana. Geralmente considerado como um marco e das obras mais
seminais do rock contemporâneo (seria fastidioso enumerar as bandas para quem
os VU são a fundação), “The Velvet Underground & Nico” desvia-se apenas por
esse pequeno senão de não ser um álbum rock. O tribalismo rítmico deriva antes
dos mantras minimalistas de La Monte Young e do monolitismo hipnótico de Tony
Conrad, outro frequentador do “Teatro da Música Eterna”, do qual John Cale
fizera parte, aliada ao dadaísmo do circo Exploding Plastic Inevitable (Warhol,
hidra de muitas cabeças). Só que “VU&N” desce à praça pública da música
popular, servida com uma violência inaudita. E uma voz sem fundo refletida nas
águas do poço. Sem Nico, a música deste disco teria sido raiva e pedregulhos.
Com ela, a passagem do veludo pela pele deixa a sensação da cobra. Fria. Porém,
tão pura como a noite.
TRANSFORMER (1972)
A
ideia era fazer de Lou Reed uma estrela de rock. Missão cumprida. “Transformer”
entrou nos tops rodeado de uma aura de vício e “glamour”, tudo o que Warhol lhe
ensinara mas que só a produção e os arranjos da dupla David Bowie (também ele
fascinado por Warhol) e Mick Ronson conseguiram transformar num objeto
apelativamente pop. O inesquecível solo de guitarra de Ronson em “Vicious”, os
coros de “Andy’s chest”, de construção ostensivamente bowieana, a
inexorabilidade melódica de “Perfect Day” e “Walk on the wild side”, clássicos
eternos, polos apenas aparentemente contrários de uma única vivência no fio da
navalha, não fazem esquece ro “vaudeville” ressacado de “Goodnight ladies”, o
martelo-pilão dos Velvets, “Hangin’ round”, ou o “flash” que daria capa de
revista, “New York telephone conversation”. “Transformer” poderia ter sido um
disco de Bowie. Elegância e teatro. Reed imprimiu-lhe algo mais: a crueldade.
BERLIN (1973)
Não
é um disco para se ouvir muitas vezes. Faz-nos sentir como neve. Quando o
gravou, Lou Reed nunca tinha estado nesta cidade. Que importa, se o resultado é
fiel? Álbum da solidão e decadência, começa com a recordação impossível de uma
última valsa do pós-guerra dançada num cabaré de espectros, mas logo um eco
isola a voz numa cápsula de vazio e ausência. Eis a Berlim onde cada um desce
quando nada resta, pátria dos isolados, seringa de sonhos sem cor. Desprende-se
de “Berlin” uma atmosfera de desolação grandiosa, de perda da inocência. “Man
of good fortune” é um estalo desferido por quem diz “I don’t care at all”. E
quando o corpo se deixa cair em “The bed”, sentimo-nos deslizar para o interior
de um caixão. Escutando-se ainda a voz de uma mulher que já lá não está. “This is
the place where we used to live…”. Adeus. “What
a feeling”. O que sobra desta obra-prima intemporal é dito como se não pudese
ser de outra forma: “Sad song”. Com orquestra, bandeiras e foguetes a disfarçar
a dor.
THE
RAVEN (2002)
Em Poe viu Lou Reed uma alma gémea. Às mesmas perguntas: “Quem sou eu?”,
“Porque é que amamos aquilo que não podemos ter?”, “Porque nos apaixonamos
pelas coisas erradas?” responderam ambos com o excesso. “The Raven” reúne
material composto por Reed para um projeto mais vasto, “POE-Try”, com encenação
de Robert Wilson. Duas edições distintas divergem no conteúdo. Versão simples
composta maioritariamente por canções. Versão dupla com texto declamado,
passagens instrumentais e uma visão mais lata do universo de Poe onde cabem o
sexo e as drogas. Duas canções antigas, “Perfect day” e “The bed”, foram objeto
de novos arranjos e a lista de músicos inclui Laurie Anderson, David Bowie,
Kate & Anna McGarrigle e a lenda do “free jazz”, Ornette Coleman.
O corvo ou a pop nas asas do horror
Reed não foi o único, na pop, a perder-se nos
horrores de Poe. Também Peter Hammill e Diamanda Galas traduziram a decadência
e a morte que ensombram os seus contos.
“The
Raven”, o corvo que Lou Reed arrancou do túmulo de Edgar Allan Poe para sobre
ele construir uma sinfonia lúgrube que é como um manto de sombras tombado sobre
uma Nova Iorque crepuscular, de símbolos e entes decaídos, inscreve-se numa
linha de “rock fantástico”, que deve a sua inspiração sobretudo, aos escritores
simbolistas do séc. XIX. Entre estes, o novelista e poeta norte-americano Edgar
Allan Poe (1809-1849) exerce um poderoso fascínio sobre a cultura pop, enquanto
transdutor de mitologias em que o medo, o mistério e o sobrenatural assumem
papel de relevo.
Poe (como H. P. Lovecraft, outro construtor
de horrores, no limite da racionalidade mais alucinada, que poucos se atreveram
a assumir como brasão da pop, ainda que um grupo psicadélico americano, dos
anos 60 se tenha apropriado do seu nome), fornece, através da sua obra,
maioritariamente composta por narrativas curtas, todo um imaginário em que o
sobrenatural surge não tanto como uma emanação da transcendência, mas como uma
deformação do real – o monstro da irracionalidade que se infiltra por uma
brecha no cérebro e provoca a alteração das perceções. O corvo que traz as más
novas do Inferno e amaldiçoa a normalidade. A apropriação deste imaginário por
Lou Reed seria então mais do que uma fuga para mundos idealizados ou a queda
nos abismos infernais, a fixação/sublimação do hiper-realismo que desde sempre
pautou a sua produção discográfica. As alucinações de ópio do autor de “O anjo
do bizarro”, “Berenice”, “O poço e o pêndulo” e “O barril de amontillado” vivem
em paralelo com as mutações e aberrações da Nova Iorque das mil e uma taras, da
heroína e da paranóia, das criaturas marginais, “freaks” perdidos nessa outra
alucinação que advém da alienação, da separação e, em última instância, da
esquizofrenia que corta em absoluto as amarras que ligam o indivíduo ao tecido
social.
Outros exemplos se podem apontar da relação
entre o universo literário fantástico de Poe e a pop. O músico e poeta Peter
Hammill, ex-líder dos Van Der Graaf Generator, preparou durante mais de 20 anos
aquele que poderia ter sido – mas não foi – o seu “opus” máximo, uma ópera
inteiramente baseada em “A Queda da Casa de Usher”, escrita pelo escritor
natural de Baltimore em 1839. Duas versões diferentes deste trabalho comprovam
a inadequação entre duas personalidades demasiado próximas ou mesmo irmãs. Hammill,
considerado por alguns um dos grandes poetas ingleses vivos, quebrou a sua
imagem contra a reflexão que o espelho de Poe lhe devolveu. O seu “In Camera”,
álbum de 1974, é uma obra tão aterradora como os piores pesadelos do escritor
simbolista e, de igual forma, uma prova de génio. Deste álbum, a passagem dos
demónios “Gog” e “Magog” pelo espírito deixa marcas difíceis de apagar. Hammill
é o Poe dos tempos atuais. Igualmente capaz de gelar não o espírito, mas o
sangue é a maneira como a cantora e compositora Diamanda Galas ajustou uma das
metáforas de Poe sobre a peste, a morte e a punição divina, “A Máscara da Morte
Vermelha”, à sua própria trilogia sobre a maldição e a sida, “Mask of the Red
Death”, obra sanguinolenta, no sentido infetado, tanto literal como metafísico
do termo.
Considere-se ainda, como “fait-divers”, o
álbum “Tales of Mystery and Imagination”, de Alan Parsons Project, inspirado em
contos sortidos de Poe, que, apesar de provocar tantos arrepios como uma viagem
de comboio-fantasma na feira popular, consegue, mesmo assim, ser o melhor álbum
entre a fraca discografia do engenheiro de som de “Dark Side of the Moon”, dos
Pink Floyd.
E se, no campo do minimalismo, Philip Galss
baseou uma das suas óperas-a-vapor também em “A Queda da Casa de Usher”,
registe-se, como final tenebroso, que os Dark Runner aspiraram os miasmas da
obra de Poe para regurgitar a sua electro-tecno-industrial nos álbuns “Master
Save Us” e “Gentle Sin…”. O corvo exulta com a putrefação.