26/01/2022

Verlaine tocou só e mal acompanhado [Tom Verlaine]

 

SEGUNDA-FEIRA, 7 MAIO 1990 cultura

 

Verlaine tocou só e mal acompanhado

 

TOM VERLAINE tocou guitarra e cantou sozinho, sábado à noite, na sala, à cunha, do Alvalade, em mais uma iniciativa integrada na Semana Académica de Lisboa. Interpretou canções do recente álbum “The Wonder”. Os fanáticos gostaram. Os outros exasperaram-se afirmando ter pago gato por lebre.

            Alguns dias antes do concerto corria o boato de que John Cale, que recentemente tocou em Portugal, acompanhado apenas ao piano, ter-se-á encontrado com Verlaine e dito qualquer coisa como: “Os gajos (os portugueses) gostam de tudo. Levas só a guitarra, como eu fiz com o piano, que eles gostam na mesma”. Dito e feito. Tom trouxe a guitarra. A segunda asserção de Cale é que se mostrou menos correta. O público, na sua maioria, sentiu-se defraudado e protestou. A quase dois contos o bilhete deveria ter dado direito a mais. Pelo menos três ou quatro instrumentos a, vá lá, 600 paus cada...

           

Viola do Saco

 

            Mas nem tudo foi mau nesta primeira prestação ao vivo no nosso país do antigo líder dos Television. O palco, sóbria e eficazmente iluminado, em tons de vermelho e roxo, decorado com algumas folhas de palmeira dando um toque de exotismo ao quadro, criava um ambiente misterioso e intimista. O som esteve perfeito, permitindo distinguir cada nota da guitarra e inflexão da voz. Quem quis acompanhar as aventuras narradas nas letras das canções do romântico Verlaine, não teve razões de queixa. Até o que não foi dito se conseguia ouvir. O pior foi que, à medida que o “espetáculo” ia decorrendo, a voz (excelente) de Verlaine e o som cristalino da guitarra acústica, não se revelaram suficientes para o interesse da assistência. As pessoas não estavam preparadas para ouvir histórias, contadas por um tímido trovador de guitarra em punho e pose distante. Depois do festival de som e carne de Kid Creole & The Coconuts e do rock australiano dos The Church, o choque foi demasiado brutal.

 

Chachada

 

            Começaram os assobios e apupos e a debandada para o bar quando não o abandono puro e simples do recinto. A partir de certa altura, as canções passaram enfadonhamente a soar todas de modo semelhante, demonstrando que o formato de apresentação escolhido não é o mais aconselhável para este tipo de sala. A própria voz de Verlaine, por muito boa que seja, tornou-se irritante, por força das mesmas inflexões e do tom “soft” mantido durante todo o concerto, sendo óbvia a necessidade de um mais consistente apoio instrumental, à semelhança aliás do que acontece no disco. À guitarra apeteceu metê-la no saco.

            “Chachada”, “seca” ou mesmo “o tipo merece levar uma lição” foram algumas expressões escutadas durante deambulações pelo recinto, exprimindo os sentimentos mais profundos dos presentes, reveladores do desespero e, nalguns casos, ódio surdo, que lhes corroía a alma. Intimamente dei-lhes razão, Não se faz uma maldade destas a quem esperava uma segunda versão dos Television ou uma reprodução tão fiel quanto possível da exuberância de “The Wonder”. Quem ficou a ganhar foi a organização que deve ter feito uns bons contitos à custa da simplicidade de meios. Para um próximo concerto sugere-se o “playback”, sempre fica mais barato...

25/01/2022

O canto da sobrevivência [Egberto Gismonti]

 

cultura SEXTA-FEIRA, 4 MAIO 1990

 

“Dança dos Escravos” é o mais recente álbum gravado por Egberto Gismonti

 

O canto da sobrevivência

 

Egberto Gismonti dança e avança pelos sons como os exploradores desbravando os medos do sertão. Danças de academia, do interior das cabeças ou dos escravos presos só por fora são outros tantos movimentos, do corpo e do espírito, fundidos no caldeirão caótico da música e cultura brasileiras. Egberto demanda a quintessência primordial.

O seu trabalho é o de alquimista.

 


“Dança dos Escravos” é o mais recente álbum gravado para a editora alemã ECM. “A música dos escravos brasileiros expressa-se através de formas variadas. Para além de canto de sobrevivência, constitui também um modo de libertação, uma fora de comunicação com o sagrado”. A escolha da guitarra, único instrumento utilizado no disco, prende-se a uma atitude muito especial de “ver” e ouvir os sons. “Já gravei discos com toda a espécie de combinações instrumentais. A guitarra é, por oposição ao aristrocático piano, mais romântica, ‘cantadora’ e, no caso do Brasil, mais africana, daí a escolha. Procuro ainda desenvolver uma linguagem guitarrística introduzida há trinta anos atrás por Baden Powell, vulgarmente designada por ‘Afro Samba’”. Para o efeito, Egberto utiliza guitarras que vão até às de 14 cordas. “O número de cordas é diretamente proporcional ao número de vindas à Europa. Para a próxima o número de cordas aumentará ainda mais!...”

 

Trocas

 

            A discografia de Gismondi estende-se a 45 álbuns, bem contados, desde a música para crianças, “delírio de alguns editores, que a etiquetaram como tal”, teatro, antigas colaborações com nomes da MPB ou, mais recentemente, com Charlie Haden ou Jan Garbarek, até inúmeros projetos a solo, dos quais só uma pequena parte chega à Europa, aquela que Manfred Eicher, patrão da ECM, tem vindo cuidadosamente a registar. “A ECM proporcionou-me um tipo de música que eu antes nunca tinha experimentado. Até 77/78, altura em que comecei a gravar para a editora, como solista. Até então trabalhara sobretudo como arranjador e orquestrador. Em “Dança das Cabeças”, primeiro da série alemã, descobri em mim próprio uma nova maneira de traduzir a música do Brasil. Em “Sanfona” utilizei um grupo de músicos brasileiros e uma aproximação, digamos que mais clássica, das origens. Ao mesmo tempo comecei a gravar discos no Brasil, como “Alma”, próximos do conceito estético ECM. Houve uma inversão, uma troca. Toda a minha música é uma constante troca, de técnicas musicais que mutuamente se influenciam, de culturas, de diferentes maneiras de sentir.”

            Egberto Gismonti assimilou processos e ensinamentos que vão desde Villa-Lobos, ou a cultura dos índios Xingu, entre os quais viveu durante alguns anos, à literatura e música ocidentais contemporâneas.

            Acerca de Heitor Villa-Lobos, Egberto desenvolve um curioso raciocínio: “Villa-Lobos significa quantidade e não qualidade. Nós brasileiros só atingiremos a qualidade através da quatidade. À partida não temos nenhuma forma estabelecida. No Brasil coexistem tribos desconhecidas como a dos Xingu a par de problemas com centrais nucleares. É o caos apocalíptico das origens e do fim. Vale tudo. A minha música reflete isto mesmo, aproveito tudo, retendo o essencial e deitando fora o que não presta. Sempre procurei dar um caráter sintético a tudo o que penso e faço. Creio que o consegui nalguns casos, sempre a partir da quantidade, do maior número possível de misturas”.

            O método utilizado se em parte é intuitivo (“O que eu sei é deixar impregnar-me pelos sons. Não tenho a menor capacidade de organicidade”), não dispensa, todavia, o rigor da escrita direta no computador ou uma perspetivação intelectual e cultural de todo o trabalho.

            Essa auto-consciência e faculdade de distanciação deve-a, segundo afirma, ao que aprendeu entre os Xingus, “saber falar, executar e saber escutar. O momento fundamental desta aprendizagem consistiu precisamente em saber dizer e escutar o silêncio”, mas também aos ensinamentos recebidos na infância. “O meu pai é libanês e desde cedo habituei-me a escutar os sons orientais. A minha mãe é italiana e fez-me ouvir as árias de ópera. Ouvia as típicas ‘seresteiras” brasileiras, música de bandas, tudo”. Para Egberto Gismonti qualquer som pode ser musical (“outro dos meus mestres, Edgar, chefe de banda, disse-me coisas como ‘bata numa mesa, sopre numa garrafa, isso é música também’”), perspetiva compartilhada com Hermeto Pascoal, seu companheiro de aventuras em muitas ocasiões.

 

Música absoluta

 

            Como Hermeto, também o autor de “Corações Futuristas” utiliza a arte como uma forma de contestação não panfletária, mas partindo do pressuposto estético de que a originalidade, por ambos naturalmente cultivada, é, pela sua diferença, pelo criar de uma realidade oposta à estabelecida, uma forma de contestação e afirmação de liberdade. Liberdade que, em última instância se confunde já com uma experiência religiosa, de ligação a um nível superior, transcendente, de existência. “Em ‘Dança dos Escravos’ existe uma ligação íntima com formas de religiosidade tradicionais como o espiritismo, o ‘Candomblé’... Tenho como grande objetivo na minha vida a ligação a algo superior, que consigo sentir mas não compreender”.

            Quem já teve oportunidade de ver Gismonti atuar ao vivo, agarrado à guitarra, um pouco à maneira do nosso Carlos Paredes, perdido e totalmente imerso nessa superior forma de comunicação que é a música, decerto compreenderá o sentido de tal liberdade. “Tocar é o momento em que o intérprete, o instrumento e a música passam a ser um todo tocado por alguma coisa que não consigo definir. Gravo os meus discos num estúdio em casa, pra conseguir atingir esse estado de total recetividade”.

            Recetividade que também não tem faltado por parte do público português, às aventuras e viagens musicais deste peregrino do Absoluto. “O meu grande projeto futuro é um trabalho global baseado nas sistemáticas recolhas e estudo do folclore brasileiro levados a cabo nos anos 20 pelo musicólogo Mário de Andrade, em que utilizarei o atual grupo mais uma orquestra sinfónica com perto de cem elementos”. A obra, com futuro discográfico ainda incerto, será apresentada em Novembro próximo e já tem título: “Melodias Registadas Por Meios Não-Mecânicos”. Apoteose grandiosa de um percurso exemplar.

 

Tom Petty & The Heartbreakers - Live!

 Programas
 
TOM PETTY & THE HEARTBREAKERS
Live!
Virgin Music Video, Edisom – Venda Direta
 
O estatuto de arte desde há muito que foi concedido, por decreto-lei, à música. Quanto ao vídeo, é bastante mais novinho, mas nem por isso deixou de dar passos importantes no sentido da sua emancipação artística. Música e vídeo nasceram para se entenderem. Por vezes, a combinação não funciona, ou porque os sons não estão à altura das imagens (o que frequentemente acontece no caso dos clips, em que a imaginação do realizador e/ou as técnicas de ponta, no campo visual, excedem de longe a pobreza musical), ou o fenómeno inverso, em que a “videoart” perde as três últimas letras para se reduzir a um amontoado de imagens desconexas, desligados do seu complemento sonoro.
Mais doloroso e dramático é quando ambas as partes constitutivas da videocassete musical se ficam pela completa nulidade. Infelizmente é este o caso do objeto em análise. A música de Tom Petty & The Heartbreakers inclui-se na miseranda categoria do “Rock FM”, sopa artificial e insípida cuja finalidade única é vender. Quanto às imagens, consistem numa sequência, sempre idêntica, de planos, focando os músicos em plena função, sem qualquer espécie de imaginação ou arrojo formal. O visionamento e audição desde subproduto – que ofende por igual as duas linguagens estéticas que, por princípio, deveria servir – tornam-se deste modo uma autêntica tortura. Os apreciadores da “música” de Tom Petty ou os sócios de videoclubes que acham “O Maneta de Ferro e a Guilhotina Voadora” o máximo, não devem ter tantos pruridos.
 
VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 2 MAIO 1990

Suzanne Vega - Days Of Open Hand

Pop
 
FEITIÇO
 
SUZANNE VEGA
Days Of Open Hand
LP e CD A&M, Warner Bros, edição Polygram


 











            Vega é nome de estrela. “Fria” e cintilante como a voz de Suzanne, possuidora da estranha capacidade de nos prender nos confins do seu firmamento. Voz que lentamente se insinua e vai escorrendo pela alma adentro, aos poucos revelando recessos desconhecidos, inundando de luz o que antes era escuridão, como uma brisa fluindo por entre neblina e céus azuis. As canções de “Days of Open Hand” são leves como pólen, suaves e difusas como nuvens, transparentes, límpidas e com a cor de bolhas de sabão. Canções que não compreendemos mas sentimos, “Between the pen and the paperwork, I know there’s a passion in the language, between the muscle and the brain work, there must be feeling in the pipeline” (“Big Space”). Afastando-se de alguns terrenos mais concretos, como os da denúncia social, exemplificados no célebre “Luka” do anterior álbum, “Solitude Standing”, Suzanne Vega opta, neste seu novo trabalho, por uma abordagem mais difusa, entrecruzando sentimentos e pensamentos num “puzzle” de sons e palavras, apontando para múltiplas direções e tecendo uma complexa rede de formas e sentidos, como as de um caleidoscópio girando nas mãos de uma criança. O disco permanece, de ponta a ponta, fiel a um ambiente de mistério e serenidade, que nem as palavras mais fortes, de temas como “Men in a War” ou “Fifty-Fifty Chance”, conseguem quebrar. Suzanne esconde, ao mesmo tempo que revela, as suas preocupações e sonhos, em canções que se esvaem em vapores inebriantes, agarrando-nos por onde é mais difícil fazê-lo: por dentro, sem reservas e, por vezes, sem sequer nos darmos conta do feitiço. Para a construção de tal clima contribuíram, em grande parte, a produção da própria Vega, em conjunto com Anton Sanko, o homem das teclas e dos computadores, e a escolha criteriosa de um naipe de músicos, do qual sobressaem os nomes de Michael Blair, percussionista habitualmente ligado às experiências de fusão nova-iorquinas, Glen Velez e Richard Horowitz, respetivamente nos tambores e na flauta egípcia (no tema “Room Of The Street”) e John Linell, dos They Might Be Giants, que toca acordeão no tema de abertura “Tired Of Sleeping”. Philip Glass, que, a par de Michael Nyman, parece apostado em investir em força no negócio da música pop, mil vezes mais rentável que o das óperas, assina os arranjo das cordas em “Fifty-Fifty Chance”, ajudado de perto pelo inevitável Kurt Munkasci. Estes e mais uma mão-cheia de músicos, presentes na sessão, influíram decisivamente, de forma discreta mas incisiva, no resultado final de “Days Of Open Hand”, terceiro e, até agora, melhor disco da cantora. Uma palavra final para a capa, um belíssimo arranjo gráfico de uma fotografia de Suzanne, que talvez nunca tenha tocado no famoso clube CBGB, mas que, desde agora, se integra em definitivo como membro de pleno direito no não menos disputado BCBG, “Bom Chic Bom Genre”.
 
VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 2 MAIO 1990

24/01/2022

Lou Reed & John Cale - Songs For Drella

Pop
 
FICÇÕES
 
LOU REED E JOHN CALE
Songs For Drella – A Fiction
LP, Warner Bros, import. WEA
 


            Andy Warhol, a quem este disco é dedicado, é Drella, junção de Drácula e Cinderella, na mesma pessoa. Warhol, já se sabe, é um mito, referência obrigatória de uma certa cultura, outrora “underground”, americana, e, mais especificamente, nova-iorquina. Personagem vampírica de modas, estilos e escândalos de uma cidade fotografada em rápidos “polaroids”, no seu aspeto mais artificial e decadente. Isto, claro, se não quisermos considerar Nova Iorque como o símbolo máximo do artificialismo e da decadência, a realidade feita imagem.
            Warhol compreendeu isto mesmo, ao transformar uma lata de sopa ou a estrela Monroe em simples imagens, repetidas “ad infinitum”, em múltiplas variantes, a aparência sempre se sobrepondo ao sentido essencial – ou, dito de outro modo, reduzindo a essência à imagem exterior e fotográfica que adquire, por este processo, um sentido autónomo do ente que lhe deu origem. Simples objeto de consumo doméstico (a lata de sopa) ou gente de carne e osso (Marilyn), são, afinal, exemplos paradigmáticos de uma mesma atitude redutora do real a imagens de marca, réplicas que, paradoxalmente, se elevam, por força da repetição e ampliação sucessivas, à superior condição de mitos.
            Warhol executou a sua obra de arte suprema ao aplicar a si mesmo o método, à custa de uma constante e criteriosamente controlada sobrexposição, diante dos mecanismos transformadores dos “media”. Se foi “Cinderella”, como personagem emblemática da passividade, foi-o, decerto conscientemente e de forma calculista. Warhol vampirizou-se a si próprio, através dos outros, sabendo como se constrói o mito a partir do vazio. “My life is disappearing from View”? – tanto melhor, diria Drella.
            Sedimentada a ilusão, o processo inverteu-se. John Cale e Lou Reed, partindo da imagem mítica do artista, procuram, neste disco biográfico, atingir, através de uma simplicidade de meios idêntica à dos Velvet numa primeira fase, o âmago, a pessoa real “escondida” atrás da personagem. Para descobrirem, por fim, que, por baixo da máscara, existe sempre outra máscara, num infinito jogo de espelhos.
            Cale e Reed, desde o início de carreira, com os Velvet Underground, procuraram sempre as vias opostas às do sonho, tentando permanecer apegados a uma certa materialidade do real, avançando contra todos os pressupostos estéticos da época. Nos anos em que se cantava ainda as alucinações coloridas do LSD, Lou Reed esperava à esquina pelo seu “dealer” e erigia a heroína como verdadeira “esposa”, única capaz de facultar a visão autêntica, brutal e a negro e branco, da realidade concreta da rua e, por extensão, da América destituída da ilusão de todos os sonhos.
            Talvez não se tenha compreendido ainda a importância crucial, na obra de Lou Reed, do duplo “Metal Machine Music”, das poucas tentativas, na arte do nosso século, de ultrapassar a forma estética, para chegar à nudez absoluta da abolição de todos os sentidos. A realidade é, deste ponto de vista, o que está para além da arte. Se há uma lição a tirar de “Songs For Drella”, é o fracasso a que estão condenadas tais tentativas. Os dois expoentes dos Velvet são (ou têm sido) então, precisamente o oposto de Warhol, procurando, no cerne da ilusão, a impossível saída para o que julgam existir para além dela. Reconheceram finalmente, após largos anos apostados em permanecer “gente real” que – pelo simples facto de terem escolhido a música e a fábrica de sonhos que é a pop – todos os esforços nesse sentido resultaram afinal nos mitos em que também eles se transformaram.
            Visto desta maneira, “Songs For Drella” é uma homenagem, na aceção mais profunda do termo, rendição incondicional à visão warholiana, compreendendo-se agora melhor o verdadeiro significado do “A Fiction” (Warhol, a ficção em pessoa) aposto no título. Passados 24 anos, os Velvet Underground regressam, com a mesma força e invertendo o sentido inicial. Suprema ironia, desistência apoteótica ou manifesto definitivo da arte como suprema forma de ilusão, cabe a cada um decidir, consoante a perspetiva.
 
QUARTA-FEIRA, 2 MAIO 1990 VIDEODISCOS

Sérgio Godinho canta aos amores e desamores

 

TERÇA-FEIRA, 1 MAIO 1990 cultura

 

Sérgio Godinho canta aos amores e desamores

 

Sérgio Godinho, “escritor de canções”, iniciou na sexta-feira à noite, no Instituto Franco-Português, uma série de espetáculos que continuará até 19 de Maio. Excelente oportunidade para escutar, num ambiente diferente do habitual, as canções do trovador dos nossos desamores.

 

Sala cheia e uma enorma expetativa rodeavam a apresentação ao vivo de Sérgio Godinho no novo desafio e desempenho que este se propôs encetar, devolvendo aos nossos sentidos, memória e coração as canções que fizeram parte integrante da vida de toda uma geração e que parecem querer seguir connosco pela vida fora. A música de Sérgio Godinho tem essa capacidade única de conseguir transpôr vivências pessoais para um contexto mais lato, em que cada um faz suas as experiências do poeta. É também o espelho com que se confronta uma Lisboa marcada pela nostalgia do tempo perdido, afogada em Fado e nevoeiros, copos e vielas de má fama, sonhos de grandeza eternamente adiados na miséria do quotidiano. Circulando por entre o labirinto de bairros e emoções da cidade, cada um procurando nos encontros com a imagem (ou miragem) do Amor também perdido, a pausa de descanso, a ilusão compartilhada, que por vezes “sabendo a tanto”, quase sempre “sabe a pouco”.


 

Guardar silêncio

 

            Por isso e porque Sérgio, além de saber construir palavras com música, sabe, como ninguém, cantá-las, com a voz, o olhar, os gestos e, o que é mais difícil, o próprio silêncio, aqueles que ainda conservam em si uma criança, sabem também, “com um brilhozinho nos olhos”, comover-se e guardar silêncio.

            A assistência desta noite, composta por gente de todas as idades, reconheceu, compreendeu, vibrou, calou, riu, se calhar chorou, ou simplesmente acompanhou, consoante o estatuto estário e diferente grau de envolvimento, os pedaços de vida que Sérgio, como ator de um passado presente, foi desfiando, ao longo de uma arrebatadora atuação, sabiamente encenada até ao mais ínfimo pormenor.

            Os vários aspetos que constituíram a atuação do cantor foram estudados e postos em prática de molde a cumprir um objetivo previamente definido: despojar as canções de todo e qualquer excesso formal, despindo-as do artificialismo de arranjos e produções envernizadas, e revelá-las na sua força e beleza originais. Como refere o compositor: “Quando há coisas a mais, a linha do horizonte fica menos nítida”. Para o efeito, foram escolhidos, como únicos acompanhantes, Nani Teixeira, no baixo elétrico, e Manuel Faria, nas teclas. Toda a movimentação de palco e encenação dos temas foi organizada e comandada, com mão de mestre, por Ricardo Pais. O cenário, simultaneamente negro e ofuscante, jogando no par de opostos, escuridão/luz, inseparável e indissociável da arte e da vida, foi imaginado por Paulo Graça. A produção é de Paulo Pulido Valente.

           

Um espetáculo diferente

 

            Ao longo de mais de hora e meia de atuação, o autor de discos brilhantes como “Sobreviventes”, “Pré-Histórias” ou “Pano Cru”, marcos da moderna música portuguesa, declamou, conversou e sobretudo cantou (por vezes acompanhando-se simplesmente à guitarra acústica) antigas e recentes canções (estas do último álbum, “Aos Amores”), apresentando pela primeira vez dois temas inéditos, “Circunvalação” e “Notícias Locais”, este já num dos dois “encores” finais exigidos pelo público.

            Sérgio Godinho arriscou um espetáculo diferente e ganhou. Alternou momentos intimistas, desvelando mágoas e alegrias, fugas e avanços na difícil arte de estar vivo, com explosões de extroversão, dando espaço instrumental aos restantes músicos e aliviando tensões e, quem sabe, culpas, entretanto acumuladas. Viagem por paisagens exteriores e interiores que passou e culminou, nos últmos versos e acordes do concerto, no tom de abandono e despojamento, angústia e acordar de todos os sonhos, de “Alice no País dos Matraquilhos”. Depois o silêncio e o exorcismo final expresso numa imensa e reconhecida salva de aplausos.