JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
2 OUTUBRO 2004
Impressionista dos sons e dos silêncios, Bernardo Sassetti escolheu o Índigo
para cor e título do seu novo álbum. Um segundo CD, Livre, apresenta uma sessão de improvisações em Belgais, à época de
Nocturno.
“É
tão bonito ouvir o interior do piano”
“Nocturno” foi
a constelação que em 2002 proporcionou um dos grandes discos de jazz desse ano.
A responsabilidade em encontrar um sucessor era grande mas Bernardo Sassetti
saiu-se a contento da tarefa. “Índigo”, o novo álbum, é uma nova prova de
maturidade e um grande disco onde as impressões e as descobertas se sucedem. A
primeira edição, a preço especial, é dupla e inclui um segundo CD, “Livre”,
constituído por uma sessão de improvisações na Quinta de Belgais efetuada logo
a seguir à gravação de “Nocturno”. “Índigo” e “Livre” completam-se, harmonizam-se
como dois líquidos de densidades compatíveis. Talvez ainda mais do que em
“Nocturno”, Sassetti revela-se um perfeccionista da nota exata, da cintilação
tímbrica perfeita que espelha a emoção. A sonoridade do seu piano é cristalina,
fluida, por vezes obcecada por uma frase ou um matiz mais duro, o silêncio infiltra-se
nesse espaço onde a inspiração e a respiração da música se fazem sentir.
Sassetti é um pianista preocupado com a luz e com a sombra, como um pintor (a embalagem
mostra uma das suas aguarelas). Há a preocupação de contar histórias, por mais
abstratas que sejam as palavras. E há o prazer de fazer e refazer a textura, de
montar e desmontar as harmonias, de utilizar o contraponto como uma manivela de
sentimentos que se escapam para múltiplas dimensões. “Índigo” é mais direto, o termo
“bonito”, nalguns casos, “belo”, aplica-se-lhe com maior propriedade. Os motivos
melódicos atraentes impõem-se, mesmo que o desenvolvimento de cada tema não
seja em caso algum redundante ou vulgar. Monk é uma referência, no humor, na
exploração das situações intermédias e das soluções de risco, nos contrastes
fortes. Monk que contribui com três composições, “Raise four”, “In walked Bud” e
“Pannonica”. “Livre” desenvolve-se segundo lógicas mais secretas que resultam do
puro momento da execução, da coincidência do movimento das mãos sobre o teclado
com o sopro criativo. “Clusters” oceânicos, escalas árabes, pequenas danças, “Livre”
é uma cornucópia de formas em contração e dilatação. Como um rio. Tem histórias
de encantar, tons de sangue e a quietude de um arranjo original de “Música callada”,
de “Nocturno”.
“Os dois discos complementam-se,
existe em ambos um lado muito forte que é o prazer de tocar e de contar histórias”,
diz o seu autor, de “tentar, de alguma maneira, transmitir imagens que fazem parte
da minha vida. O que está aqui é o que eu sou. Quis transmitir com cada história
manchas de cores e as suas evoluções”. É o Sassetti impressionista a falar. “O
índigo é uma cor que na altura me acompanhava muito, gosto muito de pintar, o ato
de pintar e a forma como chego às formas, às cores, às sombras e às luzes é
idêntico ao de pintar uma melodia e de fazer as suas variações. É um ato momentâneo,
pegar numa música e perceber a que caminho é que vou chegar, o que é possível
fazer a partir do desenvolvimento de células musicais. Gosto de criar motivos
recorrentes e toadas obsessivas. Existem, sobretudo em ‘Livre’, muitos ostinatos.”
Sassetti vai mais fundo e é na exploração desses ostinatos que tenta perceber de
que maneira consegue “transpor” a sua experiência “como pessoa, como
terrestre”, para uma música que se pretende “abstrata”. “Tentar ilustrar a
minha realidade utilizando a abstração, sobretudo utilizando a imaginação, porque
aquilo que eu toco é a imaginação das coisas, a impressão das coisas.” A
intuição comanda as operações. “Se eu parar para pensar, a música acaba, tem de
ser um ato de fruição, de fluência musical.” Bernardo Sassetti entregou-se com
entusiasmo à criação deste disco e é esse entusiasmo, essa ardência espiritual,
que se desprende de cada nota de “Índigo” e “Livre”. “Mesmo com baldas.”
Baldas? Não foram apagadas em estúdio? “Não! Há notas esborrachadas mas que
fazem parte daquilo que eu sou (risos) não há nada a fazer. Não pretendo uma música
perfeita.” Eis Monk de novo a assomar. Uma coincidência de modos de atuar e de
sentir? “Claro, o Monk sempre terá uma presença muito forte na minha música,
por uma razão muito simples: eu gosto muito do humor, da ilustração do humor musical.
De que maneira é que podemos desconstruir a realidade utilizando o humor?
Desconstruir as melodias e tentar encontrar uma linguagem nova. Pela primeira
vez neste disco tive a preocupação absoluta em transmitir no piano um leque de
sonoridades que nunca tinha conseguido antes. Por exemplo, o ‘My funny Valentine’,
nunca tinha feito nada com tanta respiração, com uma sensação de tempo e de
espaço que não são deste mundo.” Que mundo e que espaço? “Do mundo de quando eu
me sento ao piano e toco.” Em Belgais, Bernardo Sassetti entrou para esse mundo
através de um piano protótipo, de marca Yamaha, construído de propósito para
Maria João Pires. “Eu nunca falei disto, mas o trabalho de pedais, sobretudo no
‘Índigo’ é notório, os pedais de suspensão, o pedal abafador, também utilizei muito
o pedal do meio, que é raro utilizar. Existe uma preocupação de exploração do
piano.” Neste caso, “um piano absolutamente extraordinário”. Convidámos o pianista
a comentar quadro a quadro esse espaço e esse tempo especiais que fazem de
“Índigo” e “Livre” discos únicos.
Bernardo
Sassetti
Índigo
2xCD Clean Feed, distri. Trem Azul
9 | 10
A procura do desconhecido
“Livre”, o
segundo CD, foi gravado durante dois dias. Puro prazer de desfrutar o momento.
“Atirei-me ao piano. Foi um ato muito natural. Em Belgais sinto-me totalmente
em casa. Estava ali naquela, vamos lá desabafar. Quando fiz o ‘Nocturno’ já não
gravava há quase sete anos. Acabei de gravar o ‘Nocturno’ e resolvi ficar mais
uns dias. Apetecia-me continuar a gravar. Gosto muito deste trabalho, mais que não
seja pelo lado aventureiro, foi um desafio, sentar-me ao piano e falar com o
instrumento.” De “Livre”, Bernardo Sassetti destaca os três movimentos de “Histórias
de Sherazade”, “Alizarin” e “Jelly dream”. “Sherazade é uma história que eu
andava a ler. Sherazade que foi condenada pelo sultão mas que, no encontro
entre eles os dois, começou a contar-lhe histórias ao ponto de o sultão ficar
encantado e esquecer a condenação. Quis transmitir este lado encantatório que
tem a música do Médio Oriente, mais uma vez sentir que não existe nem tempo nem
espaço, uma procura das notas sem ter na cabeça qualquer conceção temporal.” “Alizarin’
foi a aventura total, a procura de sonoridades diferentes, de caminhos que
nunca tinha explorado antes. É uma tonalidade vermelha muito forte, muito
sangrenta. Estamos como na corrente de um rio, nunca sabemos para onde nos leva
a corrente. Mas eu, por muito espacial e introspetivo que seja, tenho sempre a
noção do que estou a fazer. Muitas vezes o que penso é como é que vou sair
desta. Estou a desconstruir isto, agora como é que vou sair daqui, como é que
posso intercalar a construção e a desconstrução, de uma forma lógica.” “Índigo”
e “Livre” fazem sentido, com a sua fluidez aquática e tudo termina num sonho
que não é “jolly” mas “jelly”. “Jelly dream”, o culminar de uma relação
apaixonada com o piano. “É o tema mais importante – a procura do desconhecido,
de qualquer coisa que não conheço. É o princípio do que está para vir. E deixo
a frase intencionalmente em aberto.”
Quadros de uma
exposição
Índigo
É a cor do tema. Aquele lado
escuro. O cultivar dos acordes numa base mais grave e construir o tema a partir
daí, com aparições de luz nas melodias da mão direita. Tive sempre em mente
esta cor.
Promessas
É um tema que foi escrito mas
que teve na gravação a sua evolução máxima. Foi desenvolvido no momento. Gosto
de ter um tema e não pensar que este tem uma versão definitiva.
My ideal
(Newell Chase,Richard A.Whiting,
Leo Robin)
Aconteceu-me uma coisa muito
engraçada. Estava a tocar, a tocar, a tocar, durante três horas seguidas este
tema e o engenheiro de som, o Nélson Carvalho, que estava na régie, diz-me: “Ó
Bernardo, não achas que já chega de ‘My ideal’? Acho que estás a começar a dar
em louco.” Mas eu estava a gozar tanto… A letra, que foi celebrizada pelo Chet
Baker, é uma piada muito romântica, a procura de um ideal de mulher, por parte
de quem canta. Tentei um pequeno golpe de humor. Gostei de dar ao tema só a
melodia, com a mão direita, sem acordes, sem harmonia, sem nada. A partir daí
entrei numa viagem humorística. O meu ideal de mulher seria uma mulher com
muito sentido de humor.
Never let me go
(Jay Evans, Jay Livingston)
Gostei de fazer uma introdução
que me levasse ao tema. Começar a descobrir lentamente que se adivinhava ali um
tema. Mas achei necessário respeitá-lo, sobretudo respeitar a melodia, ter
sempre em mente a letra da canção. E depois há uma espécie de conclusão que é a
exploração máxima do motivo principal, mas que não passa pela estrutura
original.
Raise four
(T. Monk)
É um “blues”. Com uma célula
musical de um compasso repetido “on and on” dentro da estrutura do “blues”. Tem
um lado muito abstrato. E tem outra coisa curiosa: É brincar com o “acorde do
diabo”, a quarta aumentada, que era uma coisa de que o Monk gostava muito e que
também ouço na música do Messiaen, outra influência muito forte. Foi pegar no
“blues” e desconstruí-lo ritmicamente até chegar a um ponto em que não consegui
desconstruir mais. A partir daí tem de ser só construção. Nos temas do Monk foi
sentar-me e gozar à grande.
Caminho até aqui
Não é original e vem da música
clássica. Musicalmente já tudo foi feito até aqui. No séc. XX houve uma avalanche
de novas ideias. Procurei, não inovar, mas sentir-me bem a tocar um percurso
que tem a ver com o meu conhecimento dos espanhóis, músicos de flamenco. Começa
de forma abstrata e depois, lentamente, vai-se transformando numa canção de
embalar flamenca, com a sonoridade de uma escala arábica.
Inquietude
O tema mais difícil que gravei
até hoje. De longe. É um tema muito pausado. Gosto da ideia do homem, neste
caso eu, estático, mas inquieto por dentro. O facto de se chamar “Inquietude”
não implica um movimento frenético. É uma forma estática de contemplação, de olhar
para o infinito enquanto cá dentro se passa muita coisa, um conjunto de pensamentos
que se cruzam.
Prelúdio em sol menor
Foi um tema que escrevi para um
filme. Adoro o “ostinato”. Curiosamente é um tema bonitinho, mas que não me
interessa tanto como a reviravolta que opero dentro dele. Há um lado muito
poético, muito lírico. Gravei-o à procura dessa reviravolta. Poder passar para
o outro lado. Pegar no tema, essencialmente um “leit-motiv”, e esquecê-lo.
In walked Bud
(T. Monk)
A procura, como em “Never let me
go”, do espaço. Ritmicamente é mais frenético do que qualquer outro, tem uma
toada que quase não para. Além disso, não sabia que estava a ser gravado.
Gravei o tema todo, só que cheguei ao fim, logo a seguir ao almoço, e parei. No
fim, recorri ao “edit” e gravei o tema final, a sua reexposição. É para isso
que serve a tecnologia. O resto do disco foi todo de enfiada. Mas neste tema,
não sabendo que estava a ser gravado, parei no fim do solo.
My funny Valentine
(Richard Rodgers, Lorenz Hart)
É uma referência para muitas
pessoas. Interessava-me pôr este tema de uma forma que expressasse uma das
minhas atuais preocupações: quanto tempo é que posso usar um silêncio? Poder lentamente
digerir cada nota. Cheguei a um ponto, na minha carreira, em que o que pretendo
é tirar a palha. É tão bonito ouvir o interior do piano. A exploração do
silêncio na música vai ser o meu próximo passo. O silêncio simbólico.
Descarga!
(Bernardo Sassetti, Ed Simon)
É um compasso todo marado. Um
baixo “ostinato” do Ed Simon, um amigo meu e um pianista de eleição que durante
muito tempo fez parte do grupo do Terence Blanchard, um génio. Funciona como uma
descarga de energia. Vamos lá tocar! Toca a andar! Tem também muito humor.