12/05/2020

"É tão bonito ouvir o interior do piano" [Bernardo Sassetti]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 2 OUTUBRO 2004

Impressionista dos sons e dos silêncios, Bernardo Sassetti escolheu o Índigo para cor e título do seu novo álbum. Um segundo CD, Livre, apresenta uma sessão de improvisações em Belgais, à época de Nocturno.

“É tão bonito ouvir o interior do piano”


“Nocturno” foi a constelação que em 2002 proporcionou um dos grandes discos de jazz desse ano. A responsabilidade em encontrar um sucessor era grande mas Bernardo Sassetti saiu-se a contento da tarefa. “Índigo”, o novo álbum, é uma nova prova de maturidade e um grande disco onde as impressões e as descobertas se sucedem. A primeira edição, a preço especial, é dupla e inclui um segundo CD, “Livre”, constituído por uma sessão de improvisações na Quinta de Belgais efetuada logo a seguir à gravação de “Nocturno”. “Índigo” e “Livre” completam-se, harmonizam-se como dois líquidos de densidades compatíveis. Talvez ainda mais do que em “Nocturno”, Sassetti revela-se um perfeccionista da nota exata, da cintilação tímbrica perfeita que espelha a emoção. A sonoridade do seu piano é cristalina, fluida, por vezes obcecada por uma frase ou um matiz mais duro, o silêncio infiltra-se nesse espaço onde a inspiração e a respiração da música se fazem sentir. Sassetti é um pianista preocupado com a luz e com a sombra, como um pintor (a embalagem mostra uma das suas aguarelas). Há a preocupação de contar histórias, por mais abstratas que sejam as palavras. E há o prazer de fazer e refazer a textura, de montar e desmontar as harmonias, de utilizar o contraponto como uma manivela de sentimentos que se escapam para múltiplas dimensões. “Índigo” é mais direto, o termo “bonito”, nalguns casos, “belo”, aplica-se-lhe com maior propriedade. Os motivos melódicos atraentes impõem-se, mesmo que o desenvolvimento de cada tema não seja em caso algum redundante ou vulgar. Monk é uma referência, no humor, na exploração das situações intermédias e das soluções de risco, nos contrastes fortes. Monk que contribui com três composições, “Raise four”, “In walked Bud” e “Pannonica”. “Livre” desenvolve-se segundo lógicas mais secretas que resultam do puro momento da execução, da coincidência do movimento das mãos sobre o teclado com o sopro criativo. “Clusters” oceânicos, escalas árabes, pequenas danças, “Livre” é uma cornucópia de formas em contração e dilatação. Como um rio. Tem histórias de encantar, tons de sangue e a quietude de um arranjo original de “Música callada”, de “Nocturno”.
            “Os dois discos complementam-se, existe em ambos um lado muito forte que é o prazer de tocar e de contar histórias”, diz o seu autor, de “tentar, de alguma maneira, transmitir imagens que fazem parte da minha vida. O que está aqui é o que eu sou. Quis transmitir com cada história manchas de cores e as suas evoluções”. É o Sassetti impressionista a falar. “O índigo é uma cor que na altura me acompanhava muito, gosto muito de pintar, o ato de pintar e a forma como chego às formas, às cores, às sombras e às luzes é idêntico ao de pintar uma melodia e de fazer as suas variações. É um ato momentâneo, pegar numa música e perceber a que caminho é que vou chegar, o que é possível fazer a partir do desenvolvimento de células musicais. Gosto de criar motivos recorrentes e toadas obsessivas. Existem, sobretudo em ‘Livre’, muitos ostinatos.” Sassetti vai mais fundo e é na exploração desses ostinatos que tenta perceber de que maneira consegue “transpor” a sua experiência “como pessoa, como terrestre”, para uma música que se pretende “abstrata”. “Tentar ilustrar a minha realidade utilizando a abstração, sobretudo utilizando a imaginação, porque aquilo que eu toco é a imaginação das coisas, a impressão das coisas.” A intuição comanda as operações. “Se eu parar para pensar, a música acaba, tem de ser um ato de fruição, de fluência musical.” Bernardo Sassetti entregou-se com entusiasmo à criação deste disco e é esse entusiasmo, essa ardência espiritual, que se desprende de cada nota de “Índigo” e “Livre”. “Mesmo com baldas.” Baldas? Não foram apagadas em estúdio? “Não! Há notas esborrachadas mas que fazem parte daquilo que eu sou (risos) não há nada a fazer. Não pretendo uma música perfeita.” Eis Monk de novo a assomar. Uma coincidência de modos de atuar e de sentir? “Claro, o Monk sempre terá uma presença muito forte na minha música, por uma razão muito simples: eu gosto muito do humor, da ilustração do humor musical. De que maneira é que podemos desconstruir a realidade utilizando o humor? Desconstruir as melodias e tentar encontrar uma linguagem nova. Pela primeira vez neste disco tive a preocupação absoluta em transmitir no piano um leque de sonoridades que nunca tinha conseguido antes. Por exemplo, o ‘My funny Valentine’, nunca tinha feito nada com tanta respiração, com uma sensação de tempo e de espaço que não são deste mundo.” Que mundo e que espaço? “Do mundo de quando eu me sento ao piano e toco.” Em Belgais, Bernardo Sassetti entrou para esse mundo através de um piano protótipo, de marca Yamaha, construído de propósito para Maria João Pires. “Eu nunca falei disto, mas o trabalho de pedais, sobretudo no ‘Índigo’ é notório, os pedais de suspensão, o pedal abafador, também utilizei muito o pedal do meio, que é raro utilizar. Existe uma preocupação de exploração do piano.” Neste caso, “um piano absolutamente extraordinário”. Convidámos o pianista a comentar quadro a quadro esse espaço e esse tempo especiais que fazem de “Índigo” e “Livre” discos únicos.

Bernardo Sassetti
Índigo
2xCD Clean Feed, distri. Trem Azul
9 | 10


A procura do desconhecido

“Livre”, o segundo CD, foi gravado durante dois dias. Puro prazer de desfrutar o momento. “Atirei-me ao piano. Foi um ato muito natural. Em Belgais sinto-me totalmente em casa. Estava ali naquela, vamos lá desabafar. Quando fiz o ‘Nocturno’ já não gravava há quase sete anos. Acabei de gravar o ‘Nocturno’ e resolvi ficar mais uns dias. Apetecia-me continuar a gravar. Gosto muito deste trabalho, mais que não seja pelo lado aventureiro, foi um desafio, sentar-me ao piano e falar com o instrumento.” De “Livre”, Bernardo Sassetti destaca os três movimentos de “Histórias de Sherazade”, “Alizarin” e “Jelly dream”. “Sherazade é uma história que eu andava a ler. Sherazade que foi condenada pelo sultão mas que, no encontro entre eles os dois, começou a contar-lhe histórias ao ponto de o sultão ficar encantado e esquecer a condenação. Quis transmitir este lado encantatório que tem a música do Médio Oriente, mais uma vez sentir que não existe nem tempo nem espaço, uma procura das notas sem ter na cabeça qualquer conceção temporal.” “Alizarin’ foi a aventura total, a procura de sonoridades diferentes, de caminhos que nunca tinha explorado antes. É uma tonalidade vermelha muito forte, muito sangrenta. Estamos como na corrente de um rio, nunca sabemos para onde nos leva a corrente. Mas eu, por muito espacial e introspetivo que seja, tenho sempre a noção do que estou a fazer. Muitas vezes o que penso é como é que vou sair desta. Estou a desconstruir isto, agora como é que vou sair daqui, como é que posso intercalar a construção e a desconstrução, de uma forma lógica.” “Índigo” e “Livre” fazem sentido, com a sua fluidez aquática e tudo termina num sonho que não é “jolly” mas “jelly”. “Jelly dream”, o culminar de uma relação apaixonada com o piano. “É o tema mais importante – a procura do desconhecido, de qualquer coisa que não conheço. É o princípio do que está para vir. E deixo a frase intencionalmente em aberto.”


Quadros de uma exposição

Índigo
É a cor do tema. Aquele lado escuro. O cultivar dos acordes numa base mais grave e construir o tema a partir daí, com aparições de luz nas melodias da mão direita. Tive sempre em mente esta cor.

Promessas
É um tema que foi escrito mas que teve na gravação a sua evolução máxima. Foi desenvolvido no momento. Gosto de ter um tema e não pensar que este tem uma versão definitiva.

My ideal
(Newell Chase,Richard A.Whiting, Leo Robin)
Aconteceu-me uma coisa muito engraçada. Estava a tocar, a tocar, a tocar, durante três horas seguidas este tema e o engenheiro de som, o Nélson Carvalho, que estava na régie, diz-me: “Ó Bernardo, não achas que já chega de ‘My ideal’? Acho que estás a começar a dar em louco.” Mas eu estava a gozar tanto… A letra, que foi celebrizada pelo Chet Baker, é uma piada muito romântica, a procura de um ideal de mulher, por parte de quem canta. Tentei um pequeno golpe de humor. Gostei de dar ao tema só a melodia, com a mão direita, sem acordes, sem harmonia, sem nada. A partir daí entrei numa viagem humorística. O meu ideal de mulher seria uma mulher com muito sentido de humor.

Never let me go
(Jay Evans, Jay Livingston)
Gostei de fazer uma introdução que me levasse ao tema. Começar a descobrir lentamente que se adivinhava ali um tema. Mas achei necessário respeitá-lo, sobretudo respeitar a melodia, ter sempre em mente a letra da canção. E depois há uma espécie de conclusão que é a exploração máxima do motivo principal, mas que não passa pela estrutura original.

Raise four
(T. Monk)
É um “blues”. Com uma célula musical de um compasso repetido “on and on” dentro da estrutura do “blues”. Tem um lado muito abstrato. E tem outra coisa curiosa: É brincar com o “acorde do diabo”, a quarta aumentada, que era uma coisa de que o Monk gostava muito e que também ouço na música do Messiaen, outra influência muito forte. Foi pegar no “blues” e desconstruí-lo ritmicamente até chegar a um ponto em que não consegui desconstruir mais. A partir daí tem de ser só construção. Nos temas do Monk foi sentar-me e gozar à grande.

Caminho até aqui
Não é original e vem da música clássica. Musicalmente já tudo foi feito até aqui. No séc. XX houve uma avalanche de novas ideias. Procurei, não inovar, mas sentir-me bem a tocar um percurso que tem a ver com o meu conhecimento dos espanhóis, músicos de flamenco. Começa de forma abstrata e depois, lentamente, vai-se transformando numa canção de embalar flamenca, com a sonoridade de uma escala arábica.

Inquietude
O tema mais difícil que gravei até hoje. De longe. É um tema muito pausado. Gosto da ideia do homem, neste caso eu, estático, mas inquieto por dentro. O facto de se chamar “Inquietude” não implica um movimento frenético. É uma forma estática de contemplação, de olhar para o infinito enquanto cá dentro se passa muita coisa, um conjunto de pensamentos que se cruzam.

Prelúdio em sol menor
Foi um tema que escrevi para um filme. Adoro o “ostinato”. Curiosamente é um tema bonitinho, mas que não me interessa tanto como a reviravolta que opero dentro dele. Há um lado muito poético, muito lírico. Gravei-o à procura dessa reviravolta. Poder passar para o outro lado. Pegar no tema, essencialmente um “leit-motiv”, e esquecê-lo.

In walked Bud
(T. Monk)
A procura, como em “Never let me go”, do espaço. Ritmicamente é mais frenético do que qualquer outro, tem uma toada que quase não para. Além disso, não sabia que estava a ser gravado. Gravei o tema todo, só que cheguei ao fim, logo a seguir ao almoço, e parei. No fim, recorri ao “edit” e gravei o tema final, a sua reexposição. É para isso que serve a tecnologia. O resto do disco foi todo de enfiada. Mas neste tema, não sabendo que estava a ser gravado, parei no fim do solo.

My funny Valentine
(Richard Rodgers, Lorenz Hart)
É uma referência para muitas pessoas. Interessava-me pôr este tema de uma forma que expressasse uma das minhas atuais preocupações: quanto tempo é que posso usar um silêncio? Poder lentamente digerir cada nota. Cheguei a um ponto, na minha carreira, em que o que pretendo é tirar a palha. É tão bonito ouvir o interior do piano. A exploração do silêncio na música vai ser o meu próximo passo. O silêncio simbólico.

Descarga!
(Bernardo Sassetti, Ed Simon)
É um compasso todo marado. Um baixo “ostinato” do Ed Simon, um amigo meu e um pianista de eleição que durante muito tempo fez parte do grupo do Terence Blanchard, um génio. Funciona como uma descarga de energia. Vamos lá tocar! Toca a andar! Tem também muito humor.

Menina estás à janela [Ana da Silva]


Y 1|OUTUBRO|2004
neon
ana da silva



Tudo partiu de um sonho e do desejo de fazer algo sozinha depois do fim das Raincoats. Ana da Silva sonhou que andava à deriva no mar, procurando tocar a luz de um farol. Chamou ao seu disco de estreia “The Lighthouse”, que sairá em Novembro pela editora das Chick on Speed.

Menina estás à janela

Um farol brilha na escuridão da noite. Em volta o mar agitado por ondas alterosas envolve-lhe o corpo, aproximando-a e afastando-a, num incessante movimento de fluxo e refluxo, da luz que brilha no cimo da torre de pedra. Ana da Silva, madeirense a viver em Londres e antigo elemento do grupo “indie” The Raincoats, teve este sonho e aproveitou-o para título e mote central do seu álbum de estreia a solo, “The Lighthouse”, a editar em Novembro na editora das Chicks on Speed.
            “The Lighthouse” é a torre de orientação. Ana da Silva, ora com os olhos postos no mar ora fixos nos recantos do seu quarto interior, parece uma criança perdida, a correr à chuva atrás de um impossível brinquedo. A música, escrita, arranjada e executada pela própria, é assumidamente simples e introspetiva. O autocolante da capa chama-lhe “electric folk” mas é falso. O universo de faz de conta, a presença dos elementos naturais e uma forte dimensão imagética recordam ocasionalmente os mundos escondidos de Lisa Germano. Mas Ana da Silva não pretende mais do que retratar (ela pinta e faz fotografia como passatempos) estados de espírito provocados por coisas tão humanas como a amizade, o medo e a tentativa de encontrar um sentido para a existência.
            O disco foi sendo feito aos poucos. As palavras foram-se juntando, depois vieram os sons, num beijo estreito. Extinto o grupo que tão rasgados elogios recebeu de Kurt Cobain, dos Nirvana (uma digressão conjunta chegou a estar marcada só que entretanto o poeta do “grunge” morreu), Ana da Silva não ficou parada: “Resolvi que havia de fazer qualquer coisa sozinha e comecei lentamente a pensar em como o fazer, a escolher umas letras, a mexer um bocadinho na guitarra, até que encontrei uma aparelhagem eletrónica que me permitiu fazer tudo eu própria, um pequeno sequenciador com teclado acoplado, uma maquineta Yamaha.” As músicas foram surgindo para acompanhar as letras. “Fui andando, trabalhando sempre, tive que aprender tudo o que tinha a ver com tecnologia MIDI, arranjei um gravador… Antes não percebia nada, fui aprendendo por mim própria…”
            Por fim, chegou a um resultado definitivo, pegou na gravação e mostrou-a a Paul Smith, patrão da editora Blast First que já tinha editado um disco das Raincoats. “Para lhe pedir a opinião e conselhos, é uma pessoa muito conhecedora que gosta de coisas diferentes.” Ele gostou e mostrou-a por sua vez às Chicks on Speed, quando estas foram a Londres dar um concerto. As Chicks também gostaram de “The Lighthouse” e ficou decidido que o álbum sairia no selo delas. Pelo meio, um dos temas, “Modinha”, conta com a participação de Stuart Moxham, ex-Young Marble Giants. Um tema de António Carlos Jobim e o único cantado em português. “Esta canção foi feita antes do meu disco e faz parte do projeto de uma editora francesa com versões de músicas do Jobim. O Stuart telefonou-me a perguntar se eu queria cantar uma música do Jobim, eu disse que sim e escolhi esta, que não conhecia.”
            Depois há a luz e as sombras que atravessam janelas, várias janelas. A janela de um hospital, diante da qual Ana da Silva passou um dia inteiro, numa visita à mãe internada, agarrada ao seu módulo eletrónico – “é uma coisa pequena, com uma ficha para ligar à eletricidade e levei uns auscultadores”, que deu origem ao instrumental “Hospital window”. Ou as janelas sobre as asas do avião em que viajava para a Madeira e onde compôs “Two Windows over the wings”.
            “As janelas separam o aqui do resto”, diz. O “aqui” é “The Lighthouse”, o lado de dentro, dos sonhos e das histórias, o “resto” pode ser a passagem do tempo e a observação das coisas. Ou as músicas que ao longo dos últimos anos foi ouvindo, “blues”, Chemical Brothers, Jim White, Miss Kittin. O farol, “uma janela de luzes”, o tal sonho. “Eu estava na água e queria chegar ao farol mas ficava ali, para a frente e para trás, sem o alcançar.” A capa, uma foto tirada por Ana numa praia em Sunderland, ao pé de Newcastle, mostra uma onda. “Estava no cais, quando vinha uma onda havia outra que a empurrava para trás, nunca chegavam a bater, senão tinha morrido” (risos) – “gosto do mar”. E gosta que a sua música crie imagens nas pessoas que a ouvem. “Sou uma pessoa bastante visual, sou capaz de estar a ver um filme e estar interessada mais no que estou a ver do que na história. Gosto de olhar para as coisas, de tirar fotografias, de pintar.”
            “The Lighthouse” é um disco melancólico mas Ana da Silva recusou a autobiografia explícita. “Senti-me um pouco como uma criança perdida”. “Calhou”, explica, “escrever nos momentos de maior melancolia, quando se está sozinho com os próprios pensamentos”. Mas esclarece de seguida: “Mas não sou depressiva! O que eu sempre quis fazer com as minhas músicas é que, apesar de terem melancolia e mostrarem a solidão, apresentam sempre uma nota positiva. Muitas das canções acabam no fim por mostrar uma certa esperança.”

            Escrever cuidadosamente palavras
Cada canção de “The Lighthouse” traz consigo um pequeno filme, um fragmento de viagem ou de memórias. “Friend” fala da “amizade e da separação, geográfica, ou quando uma das pessoas morre”. “Running in the rain” é um bocado mais complicada, escrita na terceira pessoa. “Às vezes escrevo na primeira pessoa mas nestes casos prefiro que não se saiba, não sou eu que estou a pensar isso, são canções não é uma autobiografia. Esta tem mais pedacinhos, é sobre uma mulher que continua a correr, apesar da chuva, à procura de alguma coisa…” E Ana da Silva, anda à procura de quê? “Não sei, ando sempre a tentar descobrir coisas novas.” E como a inspiração vem quando menos se espera, Ana nunca se separa de uma caneta mesmo que esta, na maior parte das vezes, sirva para concretizar gestos tão comezinhos como “o preenchimento de um cheque” ou “apontar um número de telefone”. Em casa escreve e apaga e escreve outra vez cuidadosamente cada palavra, com um lápis e uma borracha.
            O fascínio da imagem torna-se ainda mais evidente em “In awe of a painting”. “Vi um filme sobre o pintor Jean-Michel Basquiat, de quem gosto imenso, passa-se em Nova Iorque e senti-me como se estivesse dentro de um filme. Há uma cena que me marcou, onde alguém sente as lágrimas virem aos olhos apenas pela visão de quadro. Essa capacidade de se ser tocado por uma pintura achei extremamente interessante. ‘In awe’ significa esse estado de espírito entre o espanto e o êxtase.”
            “Disco ball” é o aproveitamento de um equívoco. “Há um disco da Madonna em que ela canta ‘I feel like I just been born’. Mas a primeira vez em que ouvi essa canção percebi ‘I feel like a disco ball’, percebi mal. Gostei imenso deste novo verso e como ela não o tinha escrito achei que o podia utilizar. O problema estava em escrever o quê sobre alguém que se sente como uma bola de discoteca. A resposta é que ela reflete o que está em volta. Há coisas que nos fazem brilhar e coisas que nos quebram.” A terminar “Climbing walls” fala do amadurecimento, do que sentimos à medida que a vida vai passando. “Amadurecemos, mas há sempre em nós uma parte, a tal criança perdida. Quando somos novos achamos que as pessoas são o aspeto que têm. Se têm cabelos brancos são velhos, se não têm são novos, as pessoas de meia-idade são outra coisa. Não é assim. Há pouca coisa que muda dentro de nós, aprendemos algumas coisas, ficamos mais ou menos tolerantes. Eu fiquei mais tolerante, entendo que as pessoas são todas diferentes. Somos aquilo que somos por dentro e é difícil fugir a isso. Temos que procurar limar as nossas arestas mais agudas.”

BRIAN WILSON - Brian Wilson Presents Smile


Y 1|OUTUBRO|2004
roteiro|discos

BRIAN WILSON
Brian Wilson Presents Smile
Elektra Nonesuch, distri. Warner Music
9|10

brian wilson volta a sorrir

Custou mas foi. 38 anos decorridos sobre a sua conceção original, em 1966, “Smile”, a obra-prima-que-nunca-chegou-a-sê-lo, foi agora editada com pompa e circunstância, não como um álbum dos Beach Boys, mas como um disco a solo de Brian Wilson, ideólogo e líder do grupo, com o título “Brian Wilson Presents Smile”. A história desta obra maldita conta-se em poucas palavras. Após a edição do aclamado “Pet Sounds”, Brian Wilson subiu ainda mais a fasquia pretendendo a criação de uma verdadeira obra de arte que suplantasse tudo o que fora feito antes em ambos os lados do Atlântico. Chegaram a ser feitas gravações de estúdio mas reza a lenda que a edição de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, terá desferido sobre o ego de Wilson um golpe fatal. O músico terá ficado desmoralizado e achado que “Smile” não estaria à altura deste álbum dos “fabulous four” de Liverpool. Deixado na prateleira, “Smile” foi preterido pelo seu substituto, “Smiley Smile”, onde temas de “Smile” foram refeitas em moldes mais modestos.
            “Smile” tornara-se, entretanto, numa obra de culto e numa causa jamais abandonada pelos fãs. Uma versão não oficial do disco chegou a ver a luz do dia mas a obra sumptuosa que Wilson e o seu companheiro letrista Van Dyke Parks, prometeram, nunca chegou aos escaparates. O novo “Smile” pode ser, como diz o seu autor, um “sonho tornado realidade”, mas é difícil tomá-lo como a conclusão do disco perdido original. É verdade que a sua apresentação ao vivo, no Royal Festival Hall, a 20 de Fevereiro deste ano, teve uma receção estrondosa, o que terá contribuído para Wilson levar avante a gravação, efetuada nos estúdios Sunset Sound, em Hollywood, de 13 a 17 de Abril (no mesmo Studio One, com a sua câmara de eco mantida intacta, onde foram efetuadas sessões nos anos 60 de “Heroes and villains” e “Good vibrations”). O trabalho de composição, levado a cabo por Wilson e Parks, já fora concluído na Primavera de 2003 mas este “Smile” é algo entre a ideia original e uma obra nova.
            Wilson procurou respeitar alguns dos procedimentos dos anos 60, recriando-se a mesma estrutura “modular” das composições, gravadas separadamente de maneira a conservarem um som e textura específicos. Também idêntica foi a execução e gravação, ao vivo, no estúdio, das “masters”, com as cordas e os metais. A consola tubular usada para registar as harmonias vocais é igualmente semelhante à utilizada pelos Beach Boys no Western Studio 3, nos anos 60. As semelhanças fi cariam por aqui, se fosse verdadeiramente possível comparar este objeto real com o seu duplo não realizado dos “Sixties”. Podemos, de qualquer forma, comparar os temas com as versões de “Smiley Smile” ou com as que acabaram por ir parar aos alinhamentos de outros álbuns, como “20/20” e “Surf’s up”.
            O novo “Smile” apresenta as orquestrações barrocas idealizadas para o antigo, as vozes dos elementos do novo grupo não são, obviamente, as dos Beach Boys (Wilson, esse não perdeu pitada do seu inconfundível falsetto) embora permaneça o intrincado das harmonias vocais. Pegue-se, para fazer o teste definitivo, em “Good vibrations”, considerada por muitos a melhor canção pop de todos os tempos. As diferenças são subliminares (lá está, igual, a linha floreada do theremin) e mal dão para se perceber que este “Smile” pertence a uma época diferente. A voz aparece talvez mais compactada do que na versão original a que estávamos habituados. Seja como for, o melhor mesmo é apreciar “Brian Wilson Presents Smile” como um híbrido dos tempos modernos e deixar uma vez por todas de tentar responder à questão reformulada nas notas de capa: “Does ‘Smile’ really exist?”. Mais do que isto importa realçar que 38 anos não conseguiram apagar o génio de Brian Wilson. E que “Smile” deixou enfim de ser o sorriso enigmático como o da Gioconda para passar a ser uma realidade intemporal.

Jethro Tull - Stormwatch


Y 24|SETEMBRO|2004
roteiro|discos

JETHRO TULL
Stormwatch
Chrysalis, distri. EMI-VC
5|10

“Sormwatch” faz parte do novo pacote de reedições remasterizadas da discografia antiga dos Jethro Tull e inclui quatro temas extra. Ainda há quem se interesse por eles. Bem entendido, a data de edição é 1979 e nessa altura os Tull tentavam salvar a pele e sair ilesos da investida “punk”. Fizeram-no facilitando, arredondando as arestas e restringindo os ritmos, amiúde, a ensossas batidas de rock FM, quando não descendo à total sensaboria, como acontece com a orquestração pirosa de “Home”. Atenção, porém, Ian Anderson nunca foi homem para descer até aos limites da vulgaridade – embora chegue lá perto em “Warm sporran”, ”Something’s on the move”, tímida incursão no “hard rock” e uns “Old ghosts” por demais primários – mantendo intocáveis o seu virtuosismo na flauta e as suas vocalizações de menestrel vagabundo. Temas como “Dark ages”, “Dun ringill” e “Flying dutchman” estão ao nível do período, bem mais interessante, de “Songs from the Wood” e “Heavy Horses”. E a fechar, “Elegy”, um puro exercício de rock sinfónico neo-clássico, lá está para provocar os ódios ou amores mais extremados.

Nova Huta - Here Comes My Seltsam Voice


10|SETEMBRO|2004 Y
discos|música

NOVA HUTA
Here Comes my Seltsam Voice
Variz, distri. Sabotage
6|10

A voz de um bebé rompe um véu de eletrónica, a seguir eleva-se do nevoeiro um coro étnico religioso. São os melhores dois minutos de “Here Comes my Seltsam Voice”. Mas o que vem a seguir é igual ao que hoje se faz um pouco por todo o lado na pop eletrónica. Recuamos aos anos 80, os robôs de “Bambu robot” querem chegar ao volante de “Baby you can drive my car” dos Beatles, e aquilo que antes eram “funny electronics” não passa agora de algo que os Telex já fizeram há muito. Música de variedades para o novo século, para se ouvir enquanto se limpa a cozinha ou se faz o jantar. Sorrisos sintéticos, gestos mecanizados, Ken e Barbie aos beijinhos. As melodias até são, nalguns casos, apetecíveis, com a sua veia adolescente, mas a colagem aos anos 80 é demasiado óbvia para não causar algum enjoo. Os sintetizadores e as caixas-de-ritmo nunca se levam a sério e é assim que “Here Comes my Seltsam Voice” deve ser escutado. A produção é portuguesa, o disco termina com um tema vocalizado por Nina de Faria, “Guarde suas lágrimas para outra pessoa”. E as gargalhadas também.

Luar Na Lubre - Hai Un Paraiso


10|SETEMBRO|2004 Y
discos|música

LUAR NA LUBRE
Hai un Paraiso
Warner Music Spain, distri. Warner
5|10

Faz pena assistir à decadência dos Luar na Lubre. A queda processou-se pela via do costume, da simplificação rítmica através da utilização exaustiva dos sequenciadores e caixas-de-ritmo, o que transformou a banda galega numa espécie de emulação de Hevia. Não que as gaitas não estejam onde lhes compete e que as melodias não sejam, nalguns casos, de uma beleza estonteante. Mas por que raio é que uma pandeireta ou uma bateria não chegam os ritmos? A utilização da eletrónica na folk céltica sempre foi polémica mas parece ser evidente que nos Luar na Lubre tem a ver com a internacionalização e as cedências que esta transição implica. O resultado é o empobrecimento da música e a desvalorização de temas como “Hai un paraiso” e “Uah lúa”, transformados em exercícios de má música de dança. Pontos positivos são “Rivadavia”, com uma bela intervenção na gaita de Bieito Romero, “Corme”, que prima pela simplicidade, e “Achega-te a mim, maruxa”, boa versão do tema popularizado por José Afonso. Há duas Galizas distintas que se digladiam na música dos Luar na Lubre.