Y 1|OUTUBRO|2004
neon
ana da silva
Tudo partiu de um sonho e do desejo de fazer algo sozinha depois do fim
das Raincoats. Ana da Silva sonhou que andava à deriva no mar, procurando tocar
a luz de um farol. Chamou ao seu disco de estreia “The Lighthouse”, que sairá
em Novembro pela editora das Chick on Speed.
Menina estás à janela
Um
farol brilha na escuridão da noite. Em volta o mar agitado por ondas alterosas
envolve-lhe o corpo, aproximando-a e afastando-a, num incessante movimento de
fluxo e refluxo, da luz que brilha no cimo da torre de pedra. Ana da Silva,
madeirense a viver em Londres e antigo elemento do grupo “indie” The Raincoats,
teve este sonho e aproveitou-o para título e mote central do seu álbum de
estreia a solo, “The Lighthouse”, a editar em Novembro na editora das Chicks on
Speed.
“The Lighthouse” é a torre de
orientação. Ana da Silva, ora com os olhos postos no mar ora fixos nos recantos
do seu quarto interior, parece uma criança perdida, a correr à chuva atrás de
um impossível brinquedo. A música, escrita, arranjada e executada pela própria,
é assumidamente simples e introspetiva. O autocolante da capa chama-lhe “electric
folk” mas é falso. O universo de faz de conta, a presença dos elementos
naturais e uma forte dimensão imagética recordam ocasionalmente os mundos
escondidos de Lisa Germano. Mas Ana da Silva não pretende mais do que retratar
(ela pinta e faz fotografia como passatempos) estados de espírito provocados
por coisas tão humanas como a amizade, o medo e a tentativa de encontrar um sentido
para a existência.
O disco foi sendo feito aos poucos.
As palavras foram-se juntando, depois vieram os sons, num beijo estreito.
Extinto o grupo que tão rasgados elogios recebeu de Kurt Cobain, dos Nirvana
(uma digressão conjunta chegou a estar marcada só que entretanto o poeta do
“grunge” morreu), Ana da Silva não ficou parada: “Resolvi que havia de fazer qualquer
coisa sozinha e comecei lentamente a pensar em como o fazer, a escolher umas
letras, a mexer um bocadinho na guitarra, até que encontrei uma aparelhagem eletrónica
que me permitiu fazer tudo eu própria, um pequeno sequenciador com teclado
acoplado, uma maquineta Yamaha.” As músicas foram surgindo para acompanhar as letras.
“Fui andando, trabalhando sempre, tive que aprender tudo o que tinha a ver com
tecnologia MIDI, arranjei um gravador… Antes não percebia nada, fui aprendendo
por mim própria…”
Por fim, chegou a um resultado definitivo,
pegou na gravação e mostrou-a a Paul Smith, patrão da editora Blast First que
já tinha editado um disco das Raincoats. “Para lhe pedir a opinião e conselhos,
é uma pessoa muito conhecedora que gosta de coisas diferentes.” Ele gostou e
mostrou-a por sua vez às Chicks on Speed, quando estas foram a Londres dar um
concerto. As Chicks também gostaram de “The Lighthouse” e ficou decidido que o
álbum sairia no selo delas. Pelo meio, um dos temas, “Modinha”, conta com a
participação de Stuart Moxham, ex-Young Marble Giants. Um tema de António
Carlos Jobim e o único cantado em português. “Esta canção foi feita antes do
meu disco e faz parte do projeto de uma editora francesa com versões de músicas
do Jobim. O Stuart telefonou-me a perguntar se eu queria cantar uma música do
Jobim, eu disse que sim e escolhi esta, que não conhecia.”
Depois há a luz e as sombras que
atravessam janelas, várias janelas. A janela de um hospital, diante da qual Ana
da Silva passou um dia inteiro, numa visita à mãe internada, agarrada ao seu
módulo eletrónico – “é uma coisa pequena, com uma ficha para ligar à eletricidade
e levei uns auscultadores”, que deu origem ao instrumental “Hospital window”.
Ou as janelas sobre as asas do avião em que viajava para a Madeira e onde
compôs “Two Windows over the wings”.
“As janelas separam o aqui do
resto”, diz. O “aqui” é “The Lighthouse”, o lado de dentro, dos sonhos e das
histórias, o “resto” pode ser a passagem do tempo e a observação das coisas. Ou
as músicas que ao longo dos últimos anos foi ouvindo, “blues”, Chemical
Brothers, Jim White, Miss Kittin. O farol, “uma janela de luzes”, o tal sonho.
“Eu estava na água e queria chegar ao farol mas ficava ali, para a frente e
para trás, sem o alcançar.” A capa, uma foto tirada por Ana numa praia em
Sunderland, ao pé de Newcastle, mostra uma onda. “Estava no cais, quando vinha
uma onda havia outra que a empurrava para trás, nunca chegavam a bater, senão tinha
morrido” (risos) – “gosto do mar”. E gosta que a sua música crie imagens nas
pessoas que a ouvem. “Sou uma pessoa bastante visual, sou capaz de estar a ver
um filme e estar interessada mais no que estou a ver do que na história. Gosto
de olhar para as coisas, de tirar fotografias, de pintar.”
“The Lighthouse” é um disco
melancólico mas Ana da Silva recusou a autobiografia explícita. “Senti-me um
pouco como uma criança perdida”. “Calhou”, explica, “escrever nos momentos de
maior melancolia, quando se está sozinho com os próprios pensamentos”. Mas
esclarece de seguida: “Mas não sou depressiva! O que eu sempre quis fazer com
as minhas músicas é que, apesar de terem melancolia e mostrarem a solidão,
apresentam sempre uma nota positiva. Muitas das canções acabam no fim por
mostrar uma certa esperança.”
Escrever cuidadosamente palavras
Cada
canção de “The Lighthouse” traz consigo um pequeno filme, um fragmento de
viagem ou de memórias. “Friend” fala da “amizade e da separação, geográfica, ou
quando uma das pessoas morre”. “Running in the rain” é um bocado mais complicada,
escrita na terceira pessoa. “Às vezes escrevo na primeira pessoa mas nestes
casos prefiro que não se saiba, não sou eu que estou a pensar isso, são canções
não é uma autobiografia. Esta tem mais pedacinhos, é sobre uma mulher que continua
a correr, apesar da chuva, à procura de alguma coisa…” E Ana da Silva, anda à
procura de quê? “Não sei, ando sempre a tentar descobrir coisas novas.” E como
a inspiração vem quando menos se espera, Ana nunca se separa de uma caneta
mesmo que esta, na maior parte das vezes, sirva para concretizar gestos tão
comezinhos como “o preenchimento de um cheque” ou “apontar um número de
telefone”. Em casa escreve e apaga e escreve outra vez cuidadosamente cada
palavra, com um lápis e uma borracha.
O fascínio da imagem torna-se ainda
mais evidente em “In awe of a painting”. “Vi um filme sobre o pintor
Jean-Michel Basquiat, de quem gosto imenso, passa-se em Nova Iorque e senti-me como
se estivesse dentro de um filme. Há uma cena que me marcou, onde alguém sente as
lágrimas virem aos olhos apenas pela visão de quadro. Essa capacidade de se ser
tocado por uma pintura achei extremamente interessante. ‘In awe’ significa esse
estado de espírito entre o espanto e o êxtase.”
“Disco ball” é o aproveitamento de
um equívoco. “Há um disco da Madonna em que ela canta ‘I feel like I just been
born’. Mas a primeira vez em que ouvi essa canção percebi ‘I feel like a disco
ball’, percebi mal. Gostei imenso deste novo verso e como ela não o tinha
escrito achei que o podia utilizar. O problema estava em escrever o quê sobre
alguém que se sente como uma bola de discoteca. A resposta é que ela reflete o
que está em volta. Há coisas que nos fazem brilhar e coisas que nos quebram.” A
terminar “Climbing walls” fala do amadurecimento, do que sentimos à medida que
a vida vai passando. “Amadurecemos, mas há sempre em nós uma parte, a tal criança
perdida. Quando somos novos achamos que as pessoas são o aspeto que têm. Se têm
cabelos brancos são velhos, se não têm são novos, as pessoas de meia-idade são
outra coisa. Não é assim. Há pouca coisa que muda dentro de nós, aprendemos
algumas coisas, ficamos mais ou menos tolerantes. Eu fiquei mais tolerante, entendo
que as pessoas são todas diferentes. Somos aquilo que somos por dentro e é
difícil fugir a isso. Temos que procurar limar as nossas arestas mais agudas.”
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