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04/08/2020

Em busca do tempo indefinido [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 30 OUTUBRO 2004

Numa semana de bons pianos, François Bourassa, agora em estúdio, confirma o seu estatuto de um dos melhores compositores e executantes do jazz actual. Michael Marcus vence nos saxofones.

Em busca do tempo indefinido

Depois da obra-prima “Live”, um dos melhores álbuns editados em 2001, o pianista canadiano François Bourassa regressa com um novo disco, agora com o saxofonista André Leroux já plenamente integrado como membro oficial do quarteto. Dificilmente poderia ser igualada a torrente de energia que brota do disco ao vivo e “Indefinite Time” avança numa direção diferente. O que permanece é a incrível capacidade destes quatro músicos para gerarem momentos de tensão/distensão em que a música evolui numa metamorfose contínua de tempos e dinâmicas que tanto balançam no hard-bop com swing a todo o vapor, como se extasiam em contemplações próximas do silêncio ou rebentam em convulsões “free”. O saxofonista Dave Liebman disse um dia que a evolução de um músico de jazz se processa em três etapas: Imitação, afirmação e inovação. Se nos primórdios da sua carreira o canadiano prestou o seu tributo a mestres como Bill Evans, McCoy Tyner e Wayne Shorter, 20 anos de carreira levaram-no finalmente à plena inovação no seio da formação em quarteto piano/sopros/contrabaixo/bateria. Bourassa consegue ter a delicadeza de um Bill Evans e a furiosa emancipação de um Cecil Taylor. Do cluster que ecoa como um trovão, à percussão cristalina, do “hard” pulsante à manipulação direta das cordas do piano, Bourassa é um pianista completo. Leroux é o parceiro à altura. Já comparado a Chris Potter, o seu fraseado por vezes lancinante (o seu soprano traz à lembrança Steve Lacy) e uma segurança de aço tornam cada uma das suas intervenções abrasiva, embora seja igualmente capaz de provar o poder expressivo nos registos mais calmos. A descoberta melódica, essa, é uma constante. “Indefinite time”, entre um tema de Ornette Coleman (“Check out time – loose take)”, uma homenagem a Boubacar Traoré (“Boubacar”) e outra a Wayne Shorter (“Ws”) e as intervenções tribais do convidado Aboulaye Kone, no djembé e tama, faz a quadratura perfeita, com percussão que vai da avalanche ao tricô e um contrabaixista cuja agilidade alguns já compararam ao virtuosismo de Scott LaFaro. Mais cerebral e trabalhado ao nível dos contrastes e da pesquisa harmónica do que “Live”, “Indefinite Time” é um daqueles discos que a cada momento permite novas revelações e invenções, abrangendo todo o espaço entre as estrelas e um vulcão.
            Outro pianista que gosta de se apresentar em quarteto é Cecil Taylor, o “inimigo” do piano. Em “Incarnation”, gravado em 1999 no “Total Music Meeting” de Berlim, tinha a seu lado Franky Douglas (guitarra, voz), Tristan Honsinger (violoncelo) e o convidado Andrew Cyrille (percussionista oficial de Taylor durante onze anos, bateria, timbalão). Se, como alguém já disse a propósito de Taylor, “cada nota percutida é uma nota vencida” não é menos verdade que, nos últimos tempos, o combate aplacou-se um pouco e Taylor descobriu a ternura. Em três longos rituais de construção nas alturas e sem rede – “Focus”, “Carnation”, “Cartouche” –, os quatro músicos vão colocando uma sucessão de andaimes em redor de uma imensa peça de teatro em que cada som busca incessantemente o seu lugar certo. A guitarra elétrica lança efeitos eletrónicos bizarros, o violoncelo faz a fuga para a frente recusando o “cliché” camarístico, mas não o “riff”, fazendo de cantor, “bulldozer” e serrote, enquanto Cyrille segura as pontas soltas ao mesmo tempo que consegue fazer ouvir a sua voz solística. Pode ser difícil penetrar neste bloco operatório onde o próprio silêncio está carregado de ameaças (“Carnation”, as pausas entre cada golpe no timbalão, em “Cartouche”, o mais interessante tema do álbum), uma vez lá dentro, porém, torna-se impossível recuar. No final, “Cartouche”, a experiência torna-se religiosa, com o piano extático a levar o espírito a encarnar finalmente na matéria.
            A religião de Abdullah Ibrhaim, Dollar Brand, é, em “The Journey” – gravação em estúdio de 1977 agora restaurada digitalmente e com a mesma capa do original na editora Chiaroscuro, entretanto desaparecida –, a alegria (“Jabulani”, título de um dos três temas). Apoiado numa formação larga de saxofones, oboé, clarinete e o trompete de Don Cherry, esta é uma viagem, como muitas outras do pianista (e aqui também saxofonista soprano), com raízes na música da África do Sul mas as cores são tão fortes e diversificadas como as do arco-íris da contracapa. Há momentos a raiar o brilhantismo como as intervenções no barítono, de Hamiet Bluett, de Cherry, com a sua estranha mistura de “free” com étnico e o percussivo solo de contrabaixo de Johnny Akhir Dyani. “Hajj” tem um “riff” de piano absolutamente irresistível e uma majestosa secção de sopros muito “jazz inglês”, de senhores como Gibbs e Westbrook. Juntamente com “Voice of Africa”, “Water from an Ancient Well” e “African River”, é um dos melhores álbuns de Ibrahim que já ouvimos.
            Outro salto sobre o abismo para cair na Ayler Records e escutar um grande momento de música improvisada oferecido por Michael Marcus (sax alto e clarinete baixo), William Parker (contrabaixo) e Dennis Charles (bateria). Gravado em 1993, metade ao vivo na Knitting Factory, metade em estúdio, “Ithem”, o título-tema, e “Here at!”, com um “drone” em brasa de Parker e Marcus em elevação Coltraniana, farão as delícias dos apreciadores do “power trio”. Além de Coltrane, também os nomes de Dolphy e Ornette vêm à baila neste exercício com a solidez de um rochedo.
            A semana dá finalmente a conhecer um jazz mais calmo e (mais ou menos) próximo do “mainstream”. Mais calmo e baladeiro do que no seu anterior trabalho, o octogenário tenorista de Chicago Von Freeman pauta a música do seu quarteto, em “The Great Divide”, com Jimmy Cobb (bateria), Richard Wyands (piano) e John Webber (contrabaixo) pelo “blues (e o “hard” apontado ao R&B), traçando a linha divisória entre Coleman Hawkins, Lester Young (há mesmo um “Blue Pres”) e Charlie Parker (“Never fear, jazz is here”).
            No selo Camjazz, o cinema parece por fim deixar de ser objeto único de predileção. Apagado o ecrã de Fellini, em “Fellini Jazz”, ficou a presença de um dos bons pianistas italianos (e europeus) de hoje, Enrico Pieranunzi, que em “Doorways” se faz acompanhar por Paul Motian (bateria) e o convidado especial Chris Potter (saxofones). Pieranunzi é um pianista-camaleão, capaz de mudar de registo facilmente de disco para disco. “Doorways” mostra acentos de Bill Evans (claramente detetáveis em “Double Excursion”) com mais carne em cima e um virtuosismo que transcende o conservatório. De Chris Potter, saxofonista muito em cena na cena atual, presente apenas em alguns temas, mas de maneira cortante, apetece dizer que as suas intervenções pecam por escassas, valendo como exemplo de criatividade o que faz em “Anecdote”. Passatempo interessante: compare-se este tema com a música de François Bourassa/André Leroux. Universos irmãos? Para os que quiserem explorar ainda mais fundo a personalidade deste italiano, recomenda-se ainda o mais focado, em trio clássico piano/contrabaixo/bateria, “Infant Eyes”, onde Pieranunzi “plays the music of Wayne Shorter”.
            Fora dos parâmetros do jazz “made in USA” está também “Where do we go from here?”, por um duo formado pelo trompetista canadiano Kenny Wheeler e o pianista inglês John Taylor, colaboradores de longa data, no excelente “Pause, and think again” ou na discografia dos Azimuth. Possuidor de uma técnica muito própria, aqui com o som bastante bem temperado pelas técnicas de estúdio, Wheeler revela-se um romântico, tanto no trompete como no fliscórnio, o mesmo se podendo dizer de John Taylor, pianista da escola de Paul Bley. Um e outro dialogam em perfeita sintonia lírica, não tocando uma nota a mais ou a menos do que o necessário para nos tocar profundamente. A melancolia pode rimar com a certeza.

François Bourassa Quartet
Indefinite Time
Effendi
9 | 10

Cecil Taylor Quartet
Incarnation
FMP
7 | 10

Abdullah Ibrahim
The Journey
Downtown Sound
8 | 10

Michael Marcus Trio
Ithem
Ayler
8 | 10

Von Freeman
The Great Divide
Premonition
7 | 10

Enrico Pieranunzi & Paul Motian
Doorways
Camjazz
8 | 10

Kenny Wheeler & John Taylor
Where do we go from here?
Camjazz
7 | 10

Todos distri. Multidisc

09/11/2018

Estádio da luz [Jazz]


18 JANEIRO 2003
JAZZ
DISCOS

Haja esperança para o ano que agora se inicia. Terje Rypdal acendeu uma Lux Aeterna para o iluminar.

Estádio da luz

O primeiro grande disco para adorar em 2003 tem data de edição de 2002, foi gravado em 2001 e... não é de jazz, pese embora a conotação do seu autor com este género de música. Tem por título "Lux Aeterna" (o mesmo que o de uma obra de Ligeti que lhe serviu de inspiração) e como autor o guitarrista norueguês Terje Rypdal, com larga e diversificada obra feita na ECM. "Lux Aeterna" não é, de facto, um disco de jazz, da mesma forma que "Odyssey" ou "After the Rain" eram antes de mais pinturas ambientais e "Waves" ou "Chaser", ataques de "hard rock".
            "Lux Aeterna" conduz-nos a outro mundo. Composto por encomenda para o Festival de Jazz de Molde, no âmbito das celebrações da instalação do novo órgão na igreja desta cidade, tem a participação do Bergen Chamber Ensemble, dirigido por Kjell Seim e, como intérpretes solistas, além do guitarrista, Palle Mikkelborg, na trompete, Iver Kleive, no órgão de igreja, e Ashild Stube Gundersen, voz soprano. Um outro mundo, dizíamos, capaz de provocar estados alterados de paixão. Música religiosa contemporânea com a dimensão de "Tabula Rasa", de Arvo Pärt. Um mundo elevado e afastado da confusão apocalíptica dos últimos dias que se vivem cá por baixo. Cinco movimentos: "Luminous galaxy", "Fjelldâpen", "Escalator", "Toccata" e "Lux Aeterna". Cinco etapas de uma viagem com destino à luz eterna.
            "Luminous galaxy" sobe até à primeira camada da estratosfera, em volutas melódicas criadas pela trompete em surdina de Mikkelborg. "New age" no espírito mas não na forma, a "galáxia luminosa" dilata-se depois numa majestosa intervenção do órgão. "Fjelldâpen" ilustra uma experiência de infância vivida por Rypdal na vila com este nome onde então habitava com os seus pais. Ainda experiência de subida, ascensão solitária ao alto de uma montanha proibida. Sem que ninguém soubesse, sem que ninguém acreditasse. Segredo bem guardado que a guitarra agora narra com fervor, numa incandescência apaixonada, o timbre característico expandido como nunca o ouvíramos antes, em ânsia, grito, espaço de projecção anímica que tudo parece querer abarcar, num diálogo com o órgão que é música de Deus a chamar das alturas. Arrepiante.
            "Escalator": A Terra ficou a perder de vista. Sentimos Mahler e Messiaen, também eles proclamando o imenso drama cósmico. Um glockenspiel anuncia a emergência da luz, a trompete reza, sonhadora. Silêncio. Duas faces de um mesmo rosto: sofrimento e alegria. A "Toccata" é simplesmente arrasadora, no arrebatamento provocado pelo órgão do templo. Bach e, de novo, Messiaen assomam ao espírito, extático, num misto de respeito e adoração. Não se sai incólume da exposição a este clarão excessivo, desta profundidade que faz tombar para o alto, desta comoção que nos leva a acreditar na existência de um sentido último para a vida. Finalmente, se é que a delimitação temporal faz ainda sentido, a mesma "lux aeterna" que ilumina a obra de Ligeti brilha sem uma única sombra a toldar a voz da soprano e o paraíso revela-se, em êxtase, na pluralidade das suas criaturas. Obra-prima.

Jóia de África
John Abercrombie, outro associado de longa data da "escuderia" ECM, confirma em "Cat 'n' Mouse" por que é considerado um dos nomes incontornáveis da guitarra actual. Com Mark Feldman (notável no violino), Joey Baron (bateria, está em todas...) e Marc Johnson (contrabaixo) a ladeá-lo, o autor de "Timeless" assina uma música organizada em "nuances" e sinuosos desenvolvimentos harmónicos/melódicos. Não se impõe, insinua-se, convidando à descoberta "por dentro". Subtilmente fascinada pelo Oriente (os cambiantes do 'ud e a música árabe, em "String thing", a música chinesa, em "Show of hands"), marcada pelo jogo de contrastes de ritmos e timbres ("Soundtrack", um desconcertante "Third stream samba") ou em balanço jazzrock ("On the loose"), "Cat 'n' Mouse" desdobra-se em renovados e estimulantes sentidos a cada audição.
            "African Magic" e "African Symphony", ambos do pianista sul-africano Abdullah Ibrahim, transportam-nos, como acontece na generalidade de toda a sua obra, para África. Um e outro logram, contudo, resultados e visões díspares. "African Symphony" abusa dos meios sem, contudo, obter a desejada correspondência na amplitude dos resultados. Eis-no perante outro caso, idêntico a "American Dreams", de Charlie Haden, em que a utilização de uma orquestra - neste caso a Munich Radio Symphony, com direcção de Barbara Yahr - obedece unicamente a intuitos decorativos ao invés de uma integração estrutural na economia da peça. Música bonita, sem dúvida, sabendo-se como o bonito costuma ser inimigo do belo.
            "African Magic" traz de volta o pianista inspirado de "African Sun", "Echoes from Africa", "African River", "Africa-Tears and Laughter" e "Ekaya". Em trio com Belden Bullock, no baixo, e Sipho Kunene, na bateria. Vinte e quatro miniaturas nas quais o pianista faz jus ao seu sentido melódico, diríamos mesmo descritivo, seja nas notas "gospel" e "bluesy" de "Blues for a hip king" ou "Pule", seja na força hipnótica, apoiada no baixo "ostinato", de "District six", ou nesse portento de "swing" e criatividade a partir de um motivo de "blues" simples que é "Black lightning".
            Quem por diversas ocasiões privou de perto com o jazzrock foi o veterano saxofonista alto Charlie Mariano, recordando-se aqui as suas colaborações com o grupo alemão Embryo, a criação de projectos de fusão, como os Osmosis e os United Jazz and Rock Ensemble, ou rodeado pelas percussões indianas dos Karnataka College of Percussion, no álbum "Jyothi". Em "Deep in a Dream" é possível escutá-lo no registo oposto, a recriar "standards" como "Spring is here" ou em composições em nome próprio ou de parceria com o pianista Bob Degen que relevam os tempos lentos e a balada. Nunca é tarde para um homem se reencontrar com o seu coração.
            Encontramos o apelido Mariano (Cesar) na assinatura de um dos temas de "Fast Foot Shuffle", de Dave O'Higgins, mas não passa de pura coincidência. Higgins é um saxofonista soprano e tenor pleno de "verve" e swing interior para quem o jazz permanece, por enquanto, sinónimo de alegria e divertimento. Surge acompanhado de um sexteto de rapaziada nova, apostada em valorizar as composições do seu líder mas sem receio de mostrar que não veio do nada, ao abrir com um suado "Bebop", de Dizzy Gillespie. É jazz modernaço (basta, como é o caso, usar um velho teclado Wurlitzer e beber no R&B e no funk, mais um cheirinho cubano, para se soar modernaço...) bem tocado, com entusiasmo e "savoir faire", que ainda não teve tempo para a descoberta de um território próprio. Arrume-se ao lado de Ben Allison ou de Medeski, Martin & Wood. E goze-se, como quem vai à Feira Popular.

Terje Rypdal
Lux Aeterna
ECM
10|10

John Abercrombie
Cat ‘n’ Mouse
ECM
8|10

Abdullah Ibrahim
African Symphony
6|10
African Magic
8|10
Enja

Charlie Mariano
Deep in a Dream
Enja
7|10

Dave O’Higgins
Fast Foot Shuffle
Candid Productions
6|10
Todos distri. Dargil