18 JANEIRO 2003
JAZZ
DISCOS
Haja esperança para o ano que agora se inicia. Terje
Rypdal acendeu uma Lux Aeterna para o iluminar.
Estádio da luz
O primeiro grande disco para
adorar em 2003 tem data de edição de 2002, foi gravado em 2001 e... não é de
jazz, pese embora a conotação do seu autor com este género de música. Tem por
título "Lux Aeterna" (o mesmo que o de uma obra de Ligeti que lhe
serviu de inspiração) e como autor o guitarrista norueguês Terje Rypdal, com
larga e diversificada obra feita na ECM. "Lux Aeterna" não é, de
facto, um disco de jazz, da mesma forma que "Odyssey" ou "After
the Rain" eram antes de mais pinturas ambientais e "Waves" ou
"Chaser", ataques de "hard rock".
"Lux
Aeterna" conduz-nos a outro mundo. Composto por encomenda para o Festival
de Jazz de Molde, no âmbito das celebrações da instalação do novo órgão na
igreja desta cidade, tem a participação do Bergen Chamber Ensemble, dirigido
por Kjell Seim e, como intérpretes solistas, além do guitarrista, Palle Mikkelborg,
na trompete, Iver Kleive, no órgão de igreja, e Ashild Stube Gundersen, voz
soprano. Um outro mundo, dizíamos, capaz de provocar estados alterados de
paixão. Música religiosa contemporânea com a dimensão de "Tabula
Rasa", de Arvo Pärt. Um mundo elevado e afastado da confusão apocalíptica
dos últimos dias que se vivem cá por baixo. Cinco movimentos: "Luminous
galaxy", "Fjelldâpen", "Escalator",
"Toccata" e "Lux Aeterna". Cinco etapas de uma viagem com destino
à luz eterna.
"Luminous
galaxy" sobe até à primeira camada da estratosfera, em volutas melódicas
criadas pela trompete em surdina de Mikkelborg. "New age" no espírito
mas não na forma, a "galáxia luminosa" dilata-se depois numa
majestosa intervenção do órgão. "Fjelldâpen" ilustra uma experiência
de infância vivida por Rypdal na vila com este nome onde então habitava com os
seus pais. Ainda experiência de subida, ascensão solitária ao alto de uma
montanha proibida. Sem que ninguém soubesse, sem que ninguém acreditasse.
Segredo bem guardado que a guitarra agora narra com fervor, numa incandescência
apaixonada, o timbre característico expandido como nunca o ouvíramos antes, em
ânsia, grito, espaço de projecção anímica que tudo parece querer abarcar, num
diálogo com o órgão que é música de Deus a chamar das alturas. Arrepiante.
"Escalator":
A Terra ficou a perder de vista. Sentimos Mahler e Messiaen, também eles
proclamando o imenso drama cósmico. Um glockenspiel anuncia a emergência da
luz, a trompete reza, sonhadora. Silêncio. Duas faces de um mesmo rosto:
sofrimento e alegria. A "Toccata" é simplesmente arrasadora, no
arrebatamento provocado pelo órgão do templo. Bach e, de novo, Messiaen assomam
ao espírito, extático, num misto de respeito e adoração. Não se sai incólume da
exposição a este clarão excessivo, desta profundidade que faz tombar para o
alto, desta comoção que nos leva a acreditar na existência de um sentido último
para a vida. Finalmente, se é que a delimitação temporal faz ainda sentido, a
mesma "lux aeterna" que ilumina a obra de Ligeti brilha sem uma única
sombra a toldar a voz da soprano e o paraíso revela-se, em êxtase, na
pluralidade das suas criaturas. Obra-prima.
Jóia de África
John Abercrombie, outro associado
de longa data da "escuderia" ECM, confirma em "Cat 'n'
Mouse" por que é considerado um dos nomes incontornáveis da guitarra
actual. Com Mark Feldman (notável no violino), Joey Baron (bateria, está em
todas...) e Marc Johnson (contrabaixo) a ladeá-lo, o autor de
"Timeless" assina uma música organizada em "nuances" e
sinuosos desenvolvimentos harmónicos/melódicos. Não se impõe, insinua-se,
convidando à descoberta "por dentro". Subtilmente fascinada pelo
Oriente (os cambiantes do 'ud e a música árabe, em "String thing", a
música chinesa, em "Show of hands"), marcada pelo jogo de contrastes
de ritmos e timbres ("Soundtrack", um desconcertante "Third
stream samba") ou em balanço jazzrock ("On the loose"),
"Cat 'n' Mouse" desdobra-se em renovados e estimulantes sentidos a
cada audição.
"African
Magic" e "African Symphony", ambos do pianista sul-africano
Abdullah Ibrahim, transportam-nos, como acontece na generalidade de toda a sua
obra, para África. Um e outro logram, contudo, resultados e visões díspares.
"African Symphony" abusa dos meios sem, contudo, obter a desejada correspondência
na amplitude dos resultados. Eis-no perante outro caso, idêntico a
"American Dreams", de Charlie Haden, em que a utilização de uma
orquestra - neste caso a Munich Radio Symphony, com direcção de Barbara Yahr -
obedece unicamente a intuitos decorativos ao invés de uma integração estrutural
na economia da peça. Música bonita, sem dúvida, sabendo-se como o bonito
costuma ser inimigo do belo.
"African
Magic" traz de volta o pianista inspirado de "African Sun",
"Echoes from Africa", "African River", "Africa-Tears
and Laughter" e "Ekaya". Em trio com Belden Bullock, no baixo, e
Sipho Kunene, na bateria. Vinte e quatro miniaturas nas quais o pianista faz
jus ao seu sentido melódico, diríamos mesmo descritivo, seja nas notas
"gospel" e "bluesy" de "Blues for a hip king" ou
"Pule", seja na força hipnótica, apoiada no baixo
"ostinato", de "District six", ou nesse portento de
"swing" e criatividade a partir de um motivo de "blues"
simples que é "Black lightning".
Quem
por diversas ocasiões privou de perto com o jazzrock foi o veterano saxofonista
alto Charlie Mariano, recordando-se aqui as suas colaborações com o grupo
alemão Embryo, a criação de projectos de fusão, como os Osmosis e os United
Jazz and Rock Ensemble, ou rodeado pelas percussões indianas dos Karnataka
College of Percussion, no álbum "Jyothi". Em "Deep in a
Dream" é possível escutá-lo no registo oposto, a recriar
"standards" como "Spring is here" ou em composições em nome
próprio ou de parceria com o pianista Bob Degen que relevam os tempos lentos e
a balada. Nunca é tarde para um homem se reencontrar com o seu coração.
Encontramos
o apelido Mariano (Cesar) na assinatura de um dos temas de "Fast Foot
Shuffle", de Dave O'Higgins, mas não passa de pura coincidência. Higgins é
um saxofonista soprano e tenor pleno de "verve" e swing interior para
quem o jazz permanece, por enquanto, sinónimo de alegria e divertimento. Surge
acompanhado de um sexteto de rapaziada nova, apostada em valorizar as
composições do seu líder mas sem receio de mostrar que não veio do nada, ao
abrir com um suado "Bebop", de Dizzy Gillespie. É jazz modernaço
(basta, como é o caso, usar um velho teclado Wurlitzer e beber no R&B e no
funk, mais um cheirinho cubano, para se soar modernaço...) bem tocado, com
entusiasmo e "savoir faire", que ainda não teve tempo para a
descoberta de um território próprio. Arrume-se ao lado de Ben Allison ou de
Medeski, Martin & Wood. E goze-se, como quem vai à Feira Popular.
Terje Rypdal
Lux Aeterna
ECM
10|10
John Abercrombie
Cat ‘n’ Mouse
ECM
8|10
Abdullah Ibrahim
African Symphony
6|10
African Magic
8|10
Enja
Charlie Mariano
Deep in a Dream
Enja
7|10
Dave O’Higgins
Fast Foot Shuffle
Candid Productions
6|10
Todos
distri. Dargil
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