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20|JULHO|2001
música|fado
novas
fadas
Cinco
vozes fabulosas, cinco herdeiras de Amália que dela assimilaram a força
interior e para além dela apresentam originalidade, e nuances de um brilho que
é também mistério.
A
história começa há muitos anos atrás, perdendo-se na noite dos tempos. Mas veio
Amália e ficou a perceber-se melhor o que era o fado – um astro de duas faces,
noite e dia, que nela se confundiam num só rosto. Esfinge. O século XX foi o
século de Amália. Havia Amália, a sua voz, os seus discos, os seus espetáculos,
a sua presença ofuscante. Sobrava pouco para os restantes.
Com o desaparecimento físico de
Amália Rodrigues, por coincidência ou por ditame do destino (o que vai dar no
mesmo), outras vozes femininas despontaram. Vozes fabulosas. Tão orgulhosas de
si e da sua diferença como humildes no reconhecimento do que Amália representou
na escolha que também elas fizeram, de seguir essa “estranha forma de vida”,
bem como na sua afirmação como fadistas.
Escolhemos, para ilustrar o presente
radioso do fado cantado no feminino, cinco nomes: Mafalda Arnauth, Cristina
Branco, Kátia Guerreiro, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira. Outras há: Mariza,
Teresa Tapadas, Maria Ana Bobone. Mas aquelas cinco possuem um toque e um
brilho especiais. O toque na essência do fado e a versatilidade da alma que se
incendeia a este toque.
Dez anos separam a mais velha,
Cristina Branco (28 anos), da mais nova, Joana Amendoeira (18 anos). Mafalda
Arnauth tem 26, Kátia Guerreiro, 25, Ana Sofia Varela, 24. Encontram-se em
fases distintas. Cristina Branco, cuja carreira tem vindo a ser construída na
Holanda, já leva cinco álbuns gravados, o último dos quais, “Corpo Iluminado”,
é o primeiro com distribuição nacional, pela Universal. Custódio Castelo,
guitarrista de notáveis recursos, tem sido o seu tutor artístico. José Fontes
Rocha, Jorge Fernando, Joel Pina e Miguel Carvalhinho, guitarristas e violistas
históricos, participam como convidados.
Mafalda Arnauth, uma das novas vozes
apadrinhadas por João Braga, depois de um álbum de estreia, “Mafalda Arnauth”,
há dois anos, com produção de João Gil, projeta-se a grande altura no novo
“Esta Voz que me Atravessa”, ainda no selo EMI, com a produção da dupla Amélia
Muge e José Martins. Kátia Guerreiro, em quem chegámos a ver uma sósia de
Amália, no espetáculo de homenagem à diva que a deu a conhecer ao grande
público, publicou o seu disco de estreia, “Fado Maior”, na Ocarina. Com Paulo
Parreira, na guitarra portuguesa. Embora mais nova, Joana Amendoeira já tem
dois discos na Espacial, “Olhos Garotos”, de 1998, e “(Aquela) Rua”, do ano
passado. Custódio Castelo toca guitarra no último. A produção pertence a Jorge
Fernando. Ana Sofia Varela só lançará o seu álbum de estreia em Setembro, pela
Popular. Para já, o CD-single de apresentação conta com a participação de
músicos como Mário Pacheco, José Moz Carrapa e Zé Nabo.
Qualquer destes discos tem outra
particularidade – uma apresentação notável, evidenciando o cuidado na
apresentação de um modelo estético que enobreça o objeto musical. São rostos e
corpos “iluminados”, parafraseando o título do álbum de Cristina Branco. Tão
iluminados como as vozes a que pertencem.
Grandes vozes, belas imagens,
compositores, poetas e músicos de nomeada.
Vão lançadas. Mas Amália continua a
ser o lampião, na rua escura, que as ilumina.
Sem fantasmas. Depois de Mara
Abrantes (que cantou aos três anos), José Barata Moura, “as músicas dos
desenhos animados”, Rui Veloso, Trovante e músicas tradicionais, do Norte, do
Minho e da Beira, de onde os seus pais são naturais, Mafalda Arnauth cantou
fado pela primeira vez antes de entrar para a faculdade. Não pela voz de Amália
mas pela de Teresa Salgueiro, dos Madredeus, onde sentiu “aqueles requebros” do
fado. Depois o “Cheira bem, cheira a Lisboa”, que cantava nas “festinhas”.
Nunca pensou em abraçar o fado como carreira. Mesmo quando a sua interpretação
de “Foi Deus”, no seu primeiro espetáculo “oficial”, no Teatro São Luiz, em
Lisboa, juntamente com outras novas vozes que então despontavam sob o
patrocínio de João Braga, se destacou como um dos momentos mais arrebatadores
da noite. Mudou entretanto de atitude. Hoje interiorizou essa tal estranha
forma de vida, “sem fantasmas”, mas também “sem ter tempo para férias, nem para
jantares, nem para encontros com amigos”, porque o fado é uma prioridade.
Cantou, de Amália, “Fadista louco”,
“Triste sina”, tudo fados “que não eram muito comuns e que Amália tivesse
privilegiado”. Mas também “Maria Lisboa” e, claro, “Foi Deus”. Nos espetáculos
continua a cantar “Sabe-se lá”. Reconhece: “Nenhuma de nós, aos vinte e poucos
anos, pode pensar competir com um percurso de vida como o de Amália”. Amália já
cá não está. “As pessoas já não dizem: lá vem mais uma pessoa para a
substituir”. “É preciso ter humildade e a noção das coisas”, diz Mafalda, para
quem não há “testemunhos a passar”.
Além de Amália, Mafalda gosta de
João Ferreira Rosa, Beatriz da Conceição, Maria da Nazaré, Mariana Alcoentro.
Dos novos destaca Camané – “preenche o tal arrepio que é fundamental no fado”.
Poetas: Manuel Alegre, David Mourão-Ferreira, Sophia de Mello Breyner…
E ela, Mafalda, que fadista sente
ser? “Sanguínea”.
“Quero transmitir às pessoas
primeiro aquilo que sinto, depois aquilo que componho, e já aqui se perde algo,
e a seguir aquilo que chega ao público, o que ele está a ouvir. Neste processo
o que me dá mais agonia é tentar saber como vou fazer a minha alma chegar às
pessoas”. Mais agonia ou menos agonia, Mafalda Arnauth pode estar tranquila – a
sua alma chega às pessoas.
Iluminações. Cristina Branco tem o
“Corpo Iluminado”, título do seu mais recente álbum, depois de “Cristina Branco
in Holland” (1997), “Murmúrios” (1998), “Post-Scriptum” (1999) e “Cristina
Branco Canta Slauerhoff”. Natural de Almeirim, foi na Holanda que a sua música
começou por encontrar maior aceitação. Situação que o novo disco parece querer
alterar.
Cantou fado pela primeira vez aos 22
anos, em Benfica do Ribatejo, numa festa de amigos. O “Ai Mouraria”, de Amália,
que conhecera quatro anos antes, através do álbum “Rara e Inédita”. Estreou-se
como profissional um ano depois, na Holanda, numa sala de Amesterdão “onde já
tinham estado José Afonso, a Amélia Muge…”. Não canta em nenhuma casa de fados.
“Nunca cantei”. De Amália, que “inventou tudo”, canta “quase todos os do Alain
Oulman, sobretudo aqueles que são menos fado”. Existe uma explicação para este
“menos fado”. É que Cristina Branco define-se como uma cantora de fado,
“revolucionária”, e não como uma fadista, na aceção mais tipificada do termo. Resposta
irónica a alguns Velhos do Restelo. “Há alguns anos, por altura do ‘Murmúrios’,
acharam um crime dizer-se que eu era fadista. Se fadista é a pessoa que está na
casa de fados, as toalhas aos quadradinhos, não tenho esse percurso… Houve quem
dissesse que para se ser fadista era necessário ter-se nascido em Lisboa e
cantar-se numa casa de fados…”
Dos novos aprecia Mariza, Amélia
Muge, Kátia Guerreiro e Camané. Poetas: Pedro Homem de Melo e David
Mourão-Ferreira. E as vozes de Sarah Vaughan e Billie Holiday.
Ainda Amália: “Já na fase da sua
decadência, quando corria o boato de que ela não gostava de ouvir cantar
mulheres, a sensação que isso me deixou foi de que se eu estivesse a começar
nessa altura nem sei se conseguiria prosseguir. Quando se venera um ídolo, e
ouvindo essas coisas, pensava que deveria haver alguma restrição…”. Mas
considera-se parte de um legado da grande fadista, com quem aprendeu “a contar
histórias, que é o mais importante”. O traço fundamental do seu caráter como
cantora é o romantismo.
Nada foi encenado. No hospital de
Évora, onde exerce medicina, cura os males do corpo. Com a voz cura os males do
espírito. Kátia Guerreiro, médica de profissão, canta o fado. Antes cantou num
rancho folclórico dos Açores, onde interpretou pela primeira vez “Amar, amar”,
com poema de Florbela Espanca, “que a Teresa Silva Carvalho cantava”, e no
grupo “Os Charruas”, passando ainda pela Tuna Médica de Lisboa. Em Outubro do
ano passado esteve no Coliseu dos Recreios, no espetáculo “Uma Vela por Amália”.
Deu voz a dois fados, de Amália: “Amor de mel, amor de fel” e “Barco negro”.
Teresa Silva Carvalho, Maria Teresa de Noronha e Camané, e os poetas Camões,
Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e “uma grande amiga”, Maria Luísa
Baptista incluem-se na lista das suas preferências.
Nessa ocasião, no Coliseu,
estarreceu pela voz e pela extraordinária semelhança física com a diva. Aceita
as comparações, mas esclarece que “nada foi encenado”: “Em relação às minhas
expressões, a minha forma de franzir as sobrancelhas, é a minha maneira de
estar no palco, de cantar, quando sinto não estou a pensar no que estou a
fazer, naquilo que as pessoas poderão estar a ver. Canto com o corpo inteiro,
se há coincidências ou não… nunca andei a observar a Amália… sempre cantei
assim… a única coisa que posso dizer é que sinto muito em mim a Amália quando
estou a cantar…”.
Define-se como “tradicionalista”:
“No fado, não se pode mudar nada. O que é, é. Depois há variações…”. “Fado
Maior”, o seu disco de estreia, mostra uma cantora “apaixonada” que canta “os
amores ardentes e os desamores, as paixões e das desavenças, o desânimo, a
luta, a solidão, a alegria”.
Um mistério. Das cinco, apenas Ana
Sofia Varela, natural de Santarém, ainda não lançou nenhum álbum. Mas não vai
ser necessário esperar muito. “Ana Sofia Varela” sairá em Setembro. Para já a
sua voz magnífica pode ser apreciada num single com dois temas, um deles, “Quem
canta na minha voz”, com letra de João Monge e música de Rui Veloso. Presença
regular no Clube do Fado, participou no espetáculo “Uma Vela por Amália”. Canta
desde criança. Começou por Amália e Nuno da Câmara Pereira, aprendendo cedo a
“dobrar a voz”. A participação, há três anos, no espetáculo “De Sol a Lua”
abriu-lhe as portas da profissionalização, depois de uma série de presenças no
concurso Grandes Noites do Fado. É uma das vozes convidadas do álbum “A
Guitarra e Outras Mulheres”, de António Chainho. Participou ainda numa das
edições do Festival das Músicas e dos Portos. Gosta de Lucília do Carmo, Maria Teresa
de Noronha, Teresa Silva Carvalho e, da nova geração, Kátia Guerreiro, Camané,
Joana Amendoeira. E de Amália, “demasiado grande” e aquela que lhe “abriu as
portas”. “Gaivota”, “Barco negro”, “Amor de mel…” são alguns dos fados que
continua a cantar, apesar de, recentemente, ter arriscado a escrita das suas
próprias composições. O disco é a realização de “um dos seus sonhos mais
fortes”. Embora considere que o fado não possa mudar muito – “o que muda são as
interpretações” – na disputa teórica que se vai travando entre tradicionalistas
e revolucionários, Ana Sofia Varela refugia-se, declarando-se “centrista!”.
“Tristeza”, “melancolia” e “alegria” são os principais estados de alma que a
levam a cantar. Não arrisca procurar mais fundo uma explicação para a música
que a arrebata: “O fado é um mistério”.
Joana Amendoeira é a mais nova. Mas
aos 18 anos já gravou dois álbuns, “Olhos Garotos” e “(Aquela Rua)”. Começou a
cantar aos 8, fados do Nuno da Câmara Pereira. Em casa ouvia Amália, João
Braga, Carlos do Carmo… Cantou na Grande Noite do Fado e em “Uma Vela por
Amália”. A partir daí nunca mais parou. Amália alimenta-a de “emoções”. Dela
canta de preferência “fados pouco conhecidos”. Lucília do Carmo, Maria Teresa
de Noronha, Carlos do Carmo, Hermínia Silva e Camané “alimentam-na” igualmente.
David Mourão-Ferreira e Pedro Homem de Mello voltam a ser citados como poetas
prediletos. Nos seus discos Joana Amendoeira esperam que as pessoas vejam que
“não está a imitar ninguém” e “uma fadista que canta vários sentimentos, além
da tristeza”. Aos 18 anos pode ser-se triste? Joana abre um sorriso largo,
luminoso. Estava dada a resposta.
Mafalda Arnauth,
Cristina Branco, Kátia Guerreiro,
Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira
Com
elas o fado reata o seu período de ouro.
Novos
fados. Novas fadas.