DESTAQUE
ENTREVISTA
COM JUNE TABOR, QUE CANTA HOJE À NOITE NO CCB
COM
A TRANQUILIDADE NO OLHAR
SERÁ A TERCEIRA APRESENTAÇÃO AO VIVO EM PORTUGAL DE JUNE TABOR, UMA DAS
VOZES E FIGURAS MAIS MARCANTES DA MÚSICA POPULAR BRITÂNICA DAS ÚLTIMAS TRÊS
DÉCADAS. COMEÇOU PELA FOLK, ARRISCOU O PUNK, GOSTA DE FLIRTAR COM O JAZZ E É
DETENTORA DE UMA CARREIRA IMACULADA. “A QUIET EYE” É O SEU MAIS RECENTE DISCO.
UM DISCO “HAUNTING”, “FANTASMAGÓRICO”, COMO ELA DIZ.
JUNE TABOR nasceu em Warwick, Inglaterra, no último dia do
ano de 1947. Ao longo da década de 60 e da primeira metade dos 70, viveu, como
todas as cantoras inglesas da sua geração, um pouco apagada na sombra de Sandy
Denny. A nobreza e a absoluta ausência de concessões da sua música acabaram,
porém, por impô-la como uma das maiores cantoras das Ilhas Britânicas.
Embora o seu nome esteja ligado sobretudo à música
tradicional, são frequentes as incursões pelo jazz e pelos compositores
contemporâneos. Já gravou com os punk-folkers Oysterband e atuou ao lado dos Albion
Band e dos Fairport Convention. Colaborou com Nic Jones, Martin Carthy, Peter
Bellamy, Savourna Stevenson e Maddy Prior, formando com esta última o grupo
Silly Sisters. Nos últimos anos, a sua música ganhou um apuro formal e uma
elegância inultrapassáveis que nos álbuns se traduzem numa quase fantasmagoria.
June
Tabor, que já atuou duas vezes em Portugal, afirmou uma vez que “os nossos
problemas seriam resolvidos se o mundo fosse governado por jardineiros… os
verdadeiros, claro”. June é um desses jardineiros que semeia a terra com as
sementes de outro mundo.
Apresentar-se-á
em trio com Huw Warren, no piano, e Mark Emerson, no violino e viola de arco.
PÚBLICO –
Durante anos consecutivos foi a vencedora crónica na categoria de “melhor
cantora” nos prémios da revista “Folk Roots” que, finalmente, resolveu
instituir um prémio especial de carreira só para si. Sentiu-se arrumada numa
gaveta?
June Tabor
– Esse concurso… É sempre bom quando se ganha. Fica bem no currículo… Mas a
responsabilidade também aumenta. Acabou por ser do meu interesse e da revista
ter sido tomada essa decisão.
P. – Ao fim de quase 30 anos de
carreira, já não tem nada para provar?
R. – Ao
mundo, decerto que não. A mim, provavelmente, sim… Quando nos dirigimos aos
outros, são importantes as suas opiniões sobre a imagem de mim própria que
procuro transmitir. Mas quando tentamos provar alguma coisa a nós próprios, o
caso muda de figura. Neste caso sou o mais acérrimo dos críticos. Os níveis de
qualidade que imponho a mim própria são mais exigentes do que qualquer pressão
que possa vir do exterior.
P. – Ainda sente essa pressão de
cada vez que entra em estúdio para gravar um novo álbum?
R. – Sem
dúvida! Os nervos são uma coisa necessária. E a adrenalina… Às vezes os nervos
surgem sem razão aparente. É preciso acreditarmos em nós próprios para
conseguirmos ultrapassar estas fases. Eu consigo-o quase sempre.
P. – Os seus discos são todos bons.
Se calhar as pessoas têm curiosidade em saber quando dará um passo em falso…
R. – … E
espero nunca dar! Mas a verdade é que quando se termina um disco, está feito,
já não se pode mudar nada. Fica escrita a versão definitiva e é possível ser-se
julgado de uma maneira diferente daquela que se gostaria. É difícil dizer qual
é a versão definitiva de uma canção. Em princípio qualquer coisa que fica
gravada, em geral, nunca é tão boa como numa apresentação ao vivo. Gravar um
disco é uma atividade estranha, artificial. Depois, o dinheiro para o fazer é
limitado, a não ser que se seja famoso e se possa ficar fechado anos num
estúdio. No caso da folk, não costuma haver muito dinheiro e o tempo em estúdio
é limitado o que torna problemático captar a essência de uma canção. Às vezes,
por sorte, consegue-se… De resto, todo o processo de apresentação de um disco é
artificial, um exercício efémero num caminho que é a vida inteira. Não será a
fórmula mais sincera de todas…
“Cantora folk é um pouco redutor”
P. – Gostaria de ser considerada a
primeira dama da folk?
R. – Não
seria verdade. Tanto canto canções folk como outras que não o são. Gostaria que
me encarassem como uma cantora de canções fortes que conta histórias fortes,
venham elas de onde vierem. “Cantora folk” é um pouco redutor…
P. – Mas a verdade é que metade dos
temas que fazem parte do seu novo álbum, “A Quiet Eye”, são tradicionais…
R. – Sim,
serão 50 por cento, mas mesmo essas não são interpretadas de uma maneira
tradicional.
P. – Ainda a propósito de “primeiras
damas”, o som de álbuns como “Angel Tiger”, “Against the Streams”, “Aleyn” ou
“A Quiet Eye” tem a mesma qualidade espectral de um disco como “Once in a Blue
Moon”, de Lal Waterson com Oliver Knight ou dos mais recentes trabalhos de
Norma Waterson…
R. –
Espectral? Bem, eu ainda aqui estou deste lado do telefone! (risos). Mas sei o
que quer dizer, a minha música tem, de facto, essa qualidade fantasmagórica
(“haunting”). No trabalho de produção é muito importante descobrir o som
específico de cada voz. O som das vozes de Norma e Lal tem essa qualidade.
Letras que contem uma boa história
P. – Qual o papel de Huw Warren, que
há anos faz os arranjos para as suas canções, nesse processo?
R. –
Funcionamos cada vez melhor um com outro, é uma aprendizagem mútua. Primeiro
escolho as canções com base nas letras e faço um primeiro esboço do modo como
acho que devem ser interpretadas e do tipo de instrumentação que deve ser
usada. Digamos que aprendo a cantar a canção, só depois, já em conjunto, é que
decidimos qual vai ser o acompanhamento. Em princípio cada canção é
interpretada ao vivo duas ou três vezes até chegar à forma certa. No caso de “A
Quiet Eye” tudo isto demorou bastante tempo antes de Huw escrever as partituras
para a orquestra.
P. – Essa é outra das questões
levantadas pelo disco. Li uma crítica negativa ao modo como a secção de metais (não)
ligava com a sua voz, chamando aos arranjos “música de casino”. Não partilho
desta opinião, mas gostaria de ouvir o seu comentário.
R. – Toda
a gente tem direito a fazer as críticas que quiser mas é óbvio que não
concordo. Música de casino? Há sempre alguém à procura de poder dizer mal de
qualquer coisa. Essa é a forma mais reles de deitar abaixo, de denegrir o que
considero ser um trabalho esplendoroso a todos os níveis, instrumentação,
interpretação, arranjos, escolha de reportório. Estou-me absolutamente nas
tintas para as pessoas que fazem esse tipo de afirmações, são opiniões que
valem pouco mais que zero! Fiz-me entender?
P. – Completamente! Pessoalmente os
arranjos para metais fizeram-me lembrar – e, utilizando o seu termo – os
arranjos “esplendorosos” de “Anthems in Eden”, de Shirley e Dolly Collins, um
clássico. Muito mais que o trabalho exaustivo com instrumentos de sopro dos
Brass Monkey…
R. – Adoro
esse álbum mas nem sequer me lembrei dele na altura das gravações. Mas gosto da
comparação! Os Brass Monkey são outra coisa, os nossos arranjos usam sobretudo
as surdinas, segundo técnicas muito próximas do jazz. Pouca gente reparou
nisso…
P. – O longo tema “The writing of
Tipperary/It’s a long way to Tipperary” é um dos destaques de “A Quiet Eye”.
R. – É
épico. Sempre gostei deste tema mas não sabia qual a melhor maneira de o
cantar. Decidi-me finalmente como resultado desta minha primeira colaboração
com elementos da Creative Jazz Orchestra.
P. – Richard Thompson, Maggie
Holland e Nic Jones, todos ligados à folk, estão presentes com composições em
“A Quiet Eye” e são escolhas óbvias, mas é a primeira vez que canta Ewan
MacColl, em “The first time I ever saw your face”…
R. – Uma
personalidade tremenda e um grande compositor. Mas apesar de admirar quase
todas as suas canções não há muitas que se adaptem a mim. É algo de subjetivo.
P. – Afirmou há pouco que escolhia
sempre as canções a partir das letras.
R. – Sim,
tudo o resto é secundário. Procuro letras que contem uma boa história ou que contenham
uma sugestão visual forte, com economia de palavras. O máximo de coisas ditas
num mínimo de espaço. Canções que façam sentir e pensar.
JUNE TABOR
Grande
Auditório do Centro Cultural de Belém, hoje, às 21h30
Bilhetes
entre 1500$ e 4000$
AS QUATRO
FASES DA LUA
ASHES AND DIAMONDS, 1977
Primeira obra-prima. O álbum do “escândalo”, onde June
Tabor, purista das puristas, utiliza um sintetizador. Canções “a capella”
alternam com arranjos instrumentais belíssimos, como “Now I’m easy”, “The earl
of Aboyne” e “Cold and raw”. E “Lisbon”, balada que narra o encontro amoroso,
no Renascimento, de uma portuguesa com um marinheiro inglês, no porto de
Lisboa. Quarto crescente.
AQABA, 1988
Deslumbrante. Nesta altura já June Tabor passeava a voz e o
talento por músicas de outras paragens. É o disco de apresentação de Huw
Warren, em quem a cantora descobre o parceiro ideal. A voz parece pairar no
éter, criando um ambiente de religiosidade. June cobre-se com o manto da noite.
Lua cheia.
AGAINST THE
STREAMS, 1994
Juntamente com o anterior “Angel Tiger”, é um álbum de
depuração que descobre o ponto de equilíbrio: com um mínimo de meios, o máximo
de emoção. Ainda a continuação de um ciclo, eternamente reaberto, de regresso à
música tradicional. Uma noite de luar banhada pelo espírito da paz. Quarto
minguante.
A QUIET EYE,
2000
Um manto de negrume adensa-se sobre esta voz, cada vez mais
grave, de uma das maiores cantoras inglesas vivas. É um disco essencialmente
“folk” onde cada balada é transformada num “standard” para a eternidade. Do
exotismo “world” de “Pharaoh” ao “tour de force” folky “The writing of
Tipperary/It’s a long way to Tipperary”, que recupera os ambientes do fabuloso
“Ashes and Diamonds”. Lua nova.
UMA
GERAÇÃO NA SOMBRA
SANDY DENNY dominou o panorama das vozes femininas folk em
Inglaterra durante uma década, desde a sua estreia discográfica com os Strawbs,
em 1967, até ao seu álbum a solo de despedida, “Rendez-Vous”, de 1977. No ano
seguinte, uma hemorragia cerebral provocada pela queda de umas escadas na casa
de um amigo privou o mundo de uma voz que sempre viveu ensombrada pela
tragédia.
Nestas
condições era difícil a qualquer outra cantora folk inglesa, por maiores que
fossem as suas capacidades, sobressair na sombra que era todo o espaço que Denny
deixava às suas “rivais”. June Tabor faz parte desse grupo de cantoras
originárias do circuito folk inglês dos anos 60 que lutava por um lugar ao sol.
Curiosamente, o seu primeiro registo discográfico, “Silly Sisters”, surge em
1976, ou seja, numa altura em que a carreira de Denny se aproximava do ocaso e
numa união de esforços com Maddy Prior, então nos Steeleye Span, outra das
cantoras que também sempre lutara por se destacar do brilho ofuscante da antiga
vocalista dos Fairport Convention.
June Tabor e Maddy Prior,
ambas consideradas expoentes da folk britânica (não esqueçamos que a competição
também foi sempre feroz com a vizinha Irlanda que, em matéria de “marketing”,
tem sabido apresentar as suas melhores vozes embaladas com o irrecusável rótulo
de “celtic”… não estavam, porém, sozinhas, nesta luta pela emancipação.
Nomes como Jacqui MsShee,
dos Pentangle, Shirley Collins, Anne Briggs (uma das mestres de June) ou, mais
ligadas ao folkrock, Bridget St. John, Gay Woods (da primeira formação dos
Steeleye Span aos quais regressou recentemente), Linda Thompson (ex-mulher de
Richard Thompson), Beverley Martyn (ex-mulher de John Martyn) ou Polly Bolton,
dos Trees, surgiam com alguma regularidade na página de folk do jornal “Melody
Maker”, pela pena de Colin Irwin, mas apenas as duas primeiras, Jacqui e
Shirley, conseguiram atravessar de forma ativa e marcante as duas décadas
consequentes.
Além destas, havia uma
papisa: Norma Waterson, que debutara no seio de uma estranha família de
cantores amantes da tradição rural inglesa e das danças “morris”, os The
Watersons, hoje reavaliados como a raiz comum. A sai irmã Lal, já falecida, e o
seu atual marido, Martin Carthy, o “Dylan inglês”, como lhe chamam, faziam
igualmente parte desse coletivo cuja importância nunca é demais destacar.
Mas Norma nunca se preocupou
em sair do anonimato. Foi preciso esperar até ao final do milénio para o seu
nome ser dignificado, através de dois álbuns a solo que são outras tantas
obras-primas da folk, junção perfeita dos veios mais antigos com uma atitude
que não poderia ser mais contemporânea: “Norma Waterson” e “The Very Thought of
You”, qualquer deles considerado pelo PÚBLICO como dos melhores dos respetivos
anos.
Sem Norma, sem June, sem
Maddy, sem Shirley e, indubitavelmente, sem Sandy, não haveria futuro. Mas elas
existiram. E uma herança inestimável é transportada hoje por jovens como Eliza
Carthy (na foto), menina-prodígio, cantora e violinista, filha de Martin Carthy
e Norma Waterson, Kate Rusby ou Jo Freya (ex-Blowzabella).
ARTES | sexta-feira, 15 setembro 2000