Sons
12
de Setembro de 1997
Folk
A
noite
June Tabor
Aleyn (8)
Topic, distri.
Megamúsica
Philémon, herói
de banda desenhada, penetra nas várias letras que compõem a palavra Oceano
Atlântico, aí se desenrolando as suas aventuras. June Tabor há muitos anos que
faz o título dos seus álbuns começarem pela letra “A”. “Airs & Graces”, “Ashes & Diamnonds”,
“Abyssians”, “A Cut Above”, “Aqaba”, “Angel Tiger”, “Against the Streams” e
agora “Aleyn”. “Aleyn” significa “só” ou “solitária”, em língua
“Yiddish”. E solitário e cada vez mais despojado (na foto da capa, enverga
trajes monásticos...) é como se apresenta o mundo desta cantora que soube
reservar para si um nicho particular na música inglesa de raiz folk das últimas
duas décadas.
Em “Aleyn” estão
expostos alguns aspetos que já se adivinhavam nos anteriores trabalhos, os
magníficos “Angel Tiger” e “Against The Streams”. A saber, que, cada vez mais,
a pureza de um estilo único e inconfundível em toda a música inglesa, converge
numa depuração formal que aqui chega a confundir-se com algum academismo. Um
estilo caracterizado pelas típicas ornamentações vocais que eram timbre dos
primeiros álbuns, marcadamente “folk”, e agora cristalizaram numa teatralização
emocional encenada sílaba a sílaba, nota a nota. Por outro lado, a produção, da
responsabilidade de John Ravenhall, usou e abusou da reverberação,
omnipresente, de modo a dilatar a espacialidade do som até criar a ilusão (?)
de uma voz, a voz “solitária”, reinando num lugar de absoluta interiorização e
sem vizinhança à vista.
Mas isso que em “Aqaba”, “Angel Tiger” e “Against The Streams” representava ainda a fronteira de uma solidão, sem dúvida, mas partilhada num registo de intimismo que exigia a participação afetiva do ouvinte, em “Aleyn”, pelo contrário, convida à distanciação e a uma contemplação iminentemente estética.
Mas isso que em “Aqaba”, “Angel Tiger” e “Against The Streams” representava ainda a fronteira de uma solidão, sem dúvida, mas partilhada num registo de intimismo que exigia a participação afetiva do ouvinte, em “Aleyn”, pelo contrário, convida à distanciação e a uma contemplação iminentemente estética.
Claro que é
impossível ficar indiferente a esta beleza gelada, com a perfeição de uma alma
esculpida com o detalhe de uma estátua clássica. O tom, de grandeza e distância
quase sobrenaturais, é dado logo de início, numa versão arrepiante de “The great
Valerio”, de Richard Thompson, uma das canções da obra-prima “I Want To See The
Bright Lights Tonight” que o ex- Fairport Convention gravou com a então sua
mulher, Linda. “I wonder what´s keeping my true love tonight” é o primeiro dos
oito tradicionais de “Aleyn”, aos quais se podem acrescentar outras duas
composições, uma de Ralph McTell (“Bentley and Craig”), outra de Maggie Holland
(“A proper sort of gardener”), qualquer destes compositores ligado umbilicalmente
À música tradicional inglesa. “No good at love” insere-se no mesmo universo da
canção de cabaré passadista, de Mathilde Santing, no qual a própria June Tabor
já se aventurara no álbum “Some Other Time”. “Bantley and Craig” narra uma
história verídica de crime e tragédia, onde um inocente é condenado à forca e
um assassino menor posto em
liberdade. A belíssima prestação vocal de Tabor dispensava a
redundância patética do saxofone de Mark Lockart. Presença mais indispensável
do que nunca na fase mais recente da cantora é o piano de Huw Warren, parceiro
privilegiado nesta viagem rumo aos glaciares. Sem a humanidade da sua melodia
um tema como “The fiddler”, sobre um episódio do afundamento do paquete “HMS”,
em Maio de 1941, no qual pereceram 1300 vidas, a sensação de terror e abandono
seriam insuportáveis. Não é, por certo, coincidência, que “Aleyn” não inclua
qualquer vocalização “a capella”, facto obrigatório ao longo de toda a produção
prévia de June Tabor. Aqueçamo-nos então ao som, este sim caloroso, do acordeão
de Andy Cutting (ex-Blowzabella), no tradicional “April morning”, antes da
noite tombar com violência em “Di nakht” (“A Noite”), o tal tema cantado em
“Yiddish”, escrito em Nova-Iorque em 1929 por dois emigrantes dos países do
Leste – sobre o isolamento da comunidade europeia judaica radicada naquela
cidade – e transmitida a June Tabor por um sobrevivente de Auschwitz. “Não há
ninguém a meu lado na noite/Só a noite está comigo”. Ninguém parece estar ao
lado de June Tabor nesta sua passagem pelo escuro. Uma grande composição,
exponenciada por uma vocalização sublime. Inevitavelmente, por uma questão de
sobrevivência, segue-se outro tradicional, “The fair of Islington/Under the
Greenwood tree”, como “Glory of the west”, recolhido do incontornável
cancioneiro publicado pela primeira vez em 1679, “English dancing master” (olá
Ashley Hutchings...) onde prevalece a naturalidade da June Tabor do circuito
“folk” (julgamos mesmo que este tema figura, com um título diferente, num dos
seus primeiros trabalhos) a mostrar que nem tudo é tão negro como aparenta ser
em “Aleyn”.
“Go from my window”
soa igualmente familiar, respirando aquele tipo de tristíssima melodia embalada
pelo piano, com que Tabor nos familiarizou a partir de “Aqaba” e a que é difícil
resistir. Até ao final predomina a June Tabor “folky”, com a reverberação a
ceder à convicção de uma voz que sabe pisar orgulhosamente este terreno. É esta
suspensão que permite a “Aleyn” explodir num momento de gloriosa ascensão, em
“Johnny o’Bredislee/Glory of the West”, cujos arranjo e interpretação são
dignos de figurar em qualquer antologia da “folk” britânica. Apetece pedir a
June Tabor que saia do templo de amargura em que a sua solidão criativa a
encerrou, e volte a provar a luz do dia.
1 comentário:
Gosto tanto deste disco, mas, bem vistas as coisas, adoro todos os discos dela.
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