Pop
Rock
7 Maio
1997
Jaki
Liebezeit recorda os Can a propósito do álbum de remisturas
Canibalismos
Os
Can foram um dos grupos mais importantes da cena musical alemã dos anos 70. A sua música, marcada
pela espontaneidade e pela inovação, tinha a força de um ritual. Muito por
culpa da batida hipnótica do baterista Jaki Liebezeit, um dos poucos
“homens-máquina” de carne e osso. Entre histórias de vómitos, vodu e futebol,
uma certeza: “Os Can nunca foram um grupo de ‘krautrock’!”
Admirador
dos Kraftwerk e dos Einstuerzende Neubauten, sem nunca ter ouvido os Faust,
Jaki Liebezeit compara a música dos Can a um jogo de futebol. As regras são
conhecidas mas, iniciado o jogo, nunca se sabe o que vai acontecer. É esse
sortilégio da incerteza e a precisão com que dominaram o acaso que fizeram a
mística do grupo. Liebezeit desfez, diante do PÚBLICO, alguma dessa magia: “A
música dos Can tornou-se inofensiva.”
PÚBLICO
– Nos Can, ficou célebre a batida metronómica da sua bateria. Tratou-se de uma
reação contra as suas raízes no free jazz?
JAKI LIEBEZEIT – Em parte,
sim. Toquei free jazz durante um ano, mas não me sentia satisfeito, sentia
necessidade de um ritmo que permanecesse constante. Foi nessa altura que tomei
a decisão de tocar de uma maneira mais “monótona”.
P.
– Desenvolveu alguma técnica especial?
R. – De início, tocava ao
mesmo tempo que uma caixa-de-ritmos. Ao fim de 20 anos, posso dizer que consigo
tocar como uma máquina.
P.
– O efeito que a sua bateria provocava era equivalente ao das batidas
eletrónicas da atual música tecno?
R. – É a mesma coisa. Estou
atualmente a tocar bateria convencional numa espécie de tecno, ao lado de dois
jovens músicos, em computadores de ritmo e sintetizadores. Vai sair em breve um
disco.
P.
– Nos anos 60 e 70 um concerto dos Can podia estender-se por sete ou oito
horas...
R. – Acontecia, de facto,
quando o público e o ambiente eram propícios. era um divertimento! Em todos os
concertos tocávamos sempre de uma forma espontânea, não havia qualquer
alinhamento prévio de canções, como acontece hoje. Às vezes tocávamos um único
tema durante meia hora ou mais. Era tudo bastante improvisado, talvez
“improvisado” não seja o termo indicado, mas essa tal espontaneidade. Como se
conversássemos ou discutíssemos em palco. Podemos comparar com um jogo de futebol.
As regras do jogo são conhecidas, mas, antes do jogo começar, nunca se sabe o
que irá acontecer. Era esse o nosso sistema. O fundamental era o modo como
fazíamos música no próprio instante. Ainda aqui há semelhanças com a cena
tecno. Apesar de o som não ser o mesmo, existe uma idêntica abordagem na forma
de criação, com a dispensa da escrita. Os Can nunca escreveram uma única
canção. a música desenvolvia-se toda no estúdio, a partir de uma ideia
qualquer.
P.
- As pessoas costumavam falar de uma comunicação telepática entre os cinco
membros do grupo. Era assim tão profundo?
R. - Não era telepatia,
mas, na realidade, a partir de certa altura, a comunicação entre nós era tão
boa que podia dar de facto essa impressão...
P.
- Corria também uma estranha história acerca de certos ritmos vodu que lhe
teriam sido ensinados por um certo personagem, mas que não podiam ser tocados
ao vivo sem autorização, sob pena do infrator ser executado...
R. - Essa é outra história,
mas que nunca aconteceu com os Can. A personagem de que fala era um tocador
cubano de congas que veio para a América nos anos 50, chamado Chano Pozo. A mim
nunca me ensinou nada...
P.
- Mas há quem jure que você era capaz, num concerto, de voluntariamente fazer
vomitar qualquer elemento da assistência...
R. - Mas isso pode
acontecer com qualquer músico, se tocar muito mal! [Risos.] Bem, fiz de facto
algumas experiências, quando tocava free jazz, mas as pessoas vomitavam por
causa do som péssimo, penso eu...
P.
- O LSD ajudou a criar a música dos Can?
R. - Não. A música é que
devia parecer de tal modo estranha a certas pessoas que as levava a pensar que
andávamos a tomar LSD a toda a hora. Admito ter tentado algumas vezes, mas
sempre sem qualquer relação com a música. Música e drogas não combinam. A droga
não faz tocar melhor, a única coisa em que pode melhorar aexecução é o que vem
de entro do músico. A droga excita e revela apenas o lado cerebral.
P.
- Tantas histórias em redor do grupo apenas comprovam que este se tornou uma
lenda, não é verdade?
R. - Sim, mas apenas na
maneira como fazíamos música. É isso que interessa aos jovens, saberem que não
é preciso escrever primeiro, como aconteceu oa longo dos últimos séculos.
Depois, nós e os Kraftwerk fomos os primeiros grupos a ter os nossos próprios
estúdios, no nosso caso, um pequeno castelo nos arredores de Colónia. Mais
tarde, mudámo-nos para uma sala de cinema.
P.
- Até que ponto a música étnica influenciou a sua forma de tocar?
R. - Tirei, evidentemente,
imensas ideias da música indiana, da árabe ou da espanhola. Vivi durante algum
tempo em Barcelona, onde ouvia flamenco. Impressionou-me, pelos dançarinos, não
pela dança em si, pelo modo como conseguem tocar o ritmo com os pés no chão,
como se fosse uma bateria.
P.
- O que eram exatamente as “Ethnological Forgery Series” (“séries de
falsificação etnológica”) que apareceram nos álbuns “Limited” e “Unlimited
Edition”?
R. - Foi mais uma piada.
Sentávamo-nos a tocar umas músicas estranhas, em instrumentos acústicos, e
acontecia que, por vezes, acabavam por soar a música étnica...
P.
- Sentiu que a entrada de Rosko Gee e Reebop Kwaku Bah para os Can, em 1977,
significavam o fim do grupo?
R. - Sim, mas não por causa
desses músicos. Acabar, era apenas uma questão de tempo. Um grupo tem um tempo
aproximado de vida, em termos criativos, de cerca de sete anos. Depois e sete,
oito, na melhor das hipóteses, dez anos, a criatividade e a tensão entre os
músicos desaparecem. Toda a gente conhece toda a gente. É como estar casado.
Nos sete primeiros anos é bom, depois as pessoas divorciam-se. Os Can deixaram
de tocar juntos, mas continuam a ser amigos, talvez até agora mais do que
antes.
P.
- Com qual dos dois vocalistas gostou mais de tocar, com Malcolm Mooney ou Damo
Suzuki?
R. - Eram ambos excelentes
músicos. Mooney trouxe para o grupo uma influência americana. Suzuki era mais
caótico, mas também mais espontâneo, inventava as palavras enquanto cantava.
Por exemplo, num tema como “Blue bag”, ele simplesmente viu, no chão do
estúdio, uns sacos de lixo azuis e isso foi suficiente para fazer deles uma
letra...
P.
- Depois dos Can, envolveu-se noutros projetos e com outros músicos. Peço-lhe
um comentário breve sobre cada um. Michael Rother...
R. - Fez parte de uma
espécie de comunidade que existia em Düsseldorf, em torno dos Kraftwerk. Toquei
com ele, como com muita outra gente, em estúdio, desde os Eurythmics, no início
da sua carreira, aos Depeche Mode...
P.
- Phantom Band...
R. - Um projeto breve que
durou apenas dois anos. O conceito que esteve na sua origem nunca ficou bem
claro.
P.
- Phew...
R. - Gravei dois discos com
ela. O primeiro, intitulado “Phew”, com Holger Czukay e Conny Plank, que,
entretanto, já morreu. O segundo, “Our Likeness”, com membros dos Einstuerzende
Neubauten, um dos grupos mais loucos da Alemanha.
P.
- Jah Wobble...
R. - Um dos melhores
baixistas que encontrei, sem dúvida um dos meus favoritos. Por norma, não gosto
muito de tocar com baixistas, mas Jah é dos poucos com verdadeiro sentido
rímico. Fizemos alguns concertos juntos, no ano passado. Há uns meses tocámos
juntos em Inglaterra, com a Orquestra Filarmónica de Liverpool.
P.
- O novo álbum de remisturas de temas dos Can, “Sacrilege”, o que lhe parece?
Concorda com Irmin Schmidt quando ele diz que, no fundo, é apenas o mais
recente desenvolvimento do “work in progress”, que foi, desde sempre, toda a
música do grupo?
R. - Concordo. Se
tivéssemos continuado a tocar juntos, talvez chegássemos a fazer algo parecido
com a música deste disco, provavelmente até mais cedo... O espírito dos Can
está completamente presente no álbum: uma espécie de liberdade.
P.
- Os Can estão mais próximos, hoje, do seu tempo, do que estavam há 30 anos?
R. - Evidentemente. Nos
anos 70, era mais difícil às pessoas assimilarem e aceitarem um som que era
capaz de lhes soar um bocado alucinado. Quando ouvimos, hoje, a música dos Can,
não soa, de modo algum, louca, mas como perfeitamente normal. Nos primeiros
tempos do grupo, foi difícil arranjar um contrato para gravar. Achavam que era
uma música demasiado excessiva. Hoje, pode-se considerá-la bastante
inofensiva...
P.
- O que pensa da atual onda de interesse em torno do chamado “krautrock”?
R. - Grande parte deve-se
oa interesse suscitado plo livro de Julian Cope [“Krautrocksampler”, citado na
bibliografia deste dossier”]. “Krautrock” que é, de resto, uma expressão
bastante infeliz, inventada por um inglês maluco. “Krauts” era como chamavam
aos alemães durante a II Guerra Mundial. O mais estranho é que os próprios
alemães acabaram por aceitar o termo. A verdade é que os Can nunca foram uma
banda de krautrock, pela simples razão de que nunca foram uma banda de rock!
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