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24|Novembro|2000
música|sm58
as asas do deserto
Né Ladeiras, Anamar e Pilar. A primeira a loba, a
segunda Atena e a outra a princesa. Personagens imaginárias que elas irão
mostrar, hoje e 2ª feira, às 21h30, num voo a sobrevoar o Teatro Maria Matos, em
Lisboa. O espetáculo chama-se “SM58” - um velho microfone amplificador de
emoções.
“SM58”
é um modelo de microfone antigo, daqueles maciços em metal luzidio, design
futurista, a fazer lembrar um satélite artificial, que mais do que apanharem as
“nuances” da voz captavam as subtilezas do sentimento. Né Ladeiras, Anamar e
Pilar de Homem de Melo possuem subtilezas e mistério de sobra e o gosto pelo
voo, seja encavalitadas num velho Sputnik ou nas asas de uma viagem astral. Foi
nisso que Tiago Torres da Silva deve ter pensado ao decidir organizar um
espetáculo também chamado “SM58” que pela primeira vez reunirá no mesmo palco
estas três cantoras.
O espetáculo, a realizar hoje e na
segunda-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa, apresentará uma série de temas
originais compostos pelas três e do lote de canções cantadas em diversas
línguas, incluindo árabe, israelita, dialetos africanos e timorense, consta uma
surpresa que elas nos pediram para não divulgar – pelo que não seremos nós a
revelar que Né, Pilar e Anamar irão cantar logo à noite um tema dos Dead Can
Dance.
“SM58” terá ainda a particularidade
de ser bastante mais do que um espetáculo convencional, estilo Os Três Tenores
em versão feminina, socorrendo-se para tal de uma encenação que “obrigará” as
três cantoras a afivelarem a máscara de diversas personagens. Vão cantar uma de
cada vez, em duo e em trio mas seja qual for a combinação, as três estarão
sempre presentes no palco. As luzes, os figurinos, as vozes e personalidades
únicas e um acompanhamento instrumental discreto de percussões e guitarras,
farão o resto.
O PÚBLICO convidou-as para uma
conversa mais ou menos alucinada e para uma sessão de fotografia sobre a qual
muito haveria para contar e mostrar não fora o facto de apenas serem precisas
quatro imagens e de queremos poupar aos nossos leitores a visão despudorada do
escândalo. Sem malícia.
Né, Anamar e Pilar são
personalidades controversas e nem sempre a indústria soube aproveitar essa
diferença que a música de qualquer delas acentua. Os discos que para já nos
deixaram são elucidativos. Pilar, a mais recatada, gravou há uns bons anos um
“Pecado Original”, na boa tradição das cantautoras de guitarra a tiracolo.
Anamar, embrenhada no esoterismo e no labirinto interior de si própria (do qual
encontrou a saída há pouco tempo, segundo nos confessou), está agora mais forte
do que quando gravou o incompreendido “M” (com produção e letras de Tiago
Torres da Silva), álbum de seres e paisagens longínquos iluminados pela lua. Né
tem sido a mais mediática e viajada das três e se a fase correspondente ao
excelente e premiado “Traz os Montes” não se consolidou na posterior
apropriação de temas de Fausto em “Todo este Céu”, o tempo agora é de
expetativa, até se ficar a conhecer o que resultou do seu trabalho com os
Transglobal Underground, já que das horas passadas em estúdio com Hector Zazou
(e John Cale, Ryuichi Sakamoto, Brendan Perry…) não guarda boas recordações,
com a hipótese mais provável desse material não chegar a ver alguma vez a luz
do dia. Mas tem na manga um disco que gravou no Brasil com Chico César e outro
sobre a escritora Isabelle Eberhardt.
Né chegou ao PÚBLICO zangada (com
tudo mas principalmente com o trânsito em Lisboa ao fim da tarde) mas acabou a
dançar como a boa loba alada que acha que é. Também pedimos a Anamar e a Pilar
que vestissem a pele que melhor lhes serve. Pilar é a princesa. Anamar escolheu
Atena, deusa grega filha de Zeus. As três afirmam-se adeptas do voo. E voam.
Ou, como sintetiza Tiago Torres da Silva: “Não é por acaso que o primeiro tema
que vão cantar se chama ‘Mergulho’. É como se entrassem no mar, furassem a
terra e explodissem em fogo, sendo que o ar é a matéria comunicante entre elas
e entre elas e o público”. Só falta ligar o microfone SM58.
À MARGEM
Cultivam a originalidade e
a diferença. São três personalidades incompreendidas, mas aproveitadas, porque,
dizem, “o sistema é estúpido”
NÉ LADEIRAS
a loba
Entrou
a matar, a escorrer o “stress” que trazia agarrado à pele. Para Né Ladeiras,
“SM58” é uma questão de “energia”: “Somos três cabeças meio loucas e abertas,
embora o coração seja fundamental”. Quando se juntam, “criam, criam, criam…”.
Com as pilhas Duracell do espírito. “É uma adição, não uma subtração, nenhuma
faz sombra às outras”, garante: “Somos três palmeiras bonitas num oásis”.
Sobre a sua colaboração com o
compositor e produtor francês Hector Zazou, com quem preparava uma antologia de
cantares religiosos e pagãos “do triângulo mágico de Trás-os-Montes, Beira-Alta
e Beira-Baixa”, é cáustica: “Foi dispensado, com a concordância da editora.
Quis dar de mim a imagem de bruxa. E eu não sou bruxa, quando muito feiticeira.
Começámos a explodir um com o outro. Eu sou firme nas minhas ideias e ele é um
‘génio’, ok, só que começou a entrar na andropausa musical. [com pronúncia
brasileira] Eu queria tesão e ele não tinha não!” (risos).
A etapa seguinte levou-a a Montreux
para se encontrar com os Transglobal Underground. “Gostaram da maqueta com
vozes e adufes e fizeram os arranjos”. Mas em definitivo, nada. O mesmo com os
“três meses fabulosos” no Brasil a gravar com Chico César um disco sobre as
mulheres no Renascimento.
“Hoje, apesar de ser muito
espiritual, há dias em que o meu lado de loba vem ao de cima. E hoje não me
apetece uivar mas rosnar. É claro que existem por cá músicos que complicam… É
claro que há produtores sem sensibilidade… É claro que há agências que são uma
grande máfia…”
Como Anamar, acha que “o sistema é
estúpido” ao não saber explorar a imagem das três. “Imaginem a Björk, uma
excêntrica, neste país… já andava a varrer ruas”.
Além das obras iniciadas prepara um
disco sobre Isabelle Eberhardt, a escritora de “Escritos no Deserto” que morreu
aos 27 anos e “atravessou o deserto para encontrar o mar. Um outro tipo de
mar…”.
PILAR
a princesa
Pilar
define “SM58” como uma “extravagância” que, para já, está a criar “relações
fortes” entre ela e as outras duas participantes. Com dois álbuns na bagagem,
uma estreia com a chancela na produção de Wayne Shorter, seguida de “Pecado
Original”, editado em 1993, Pilar Homem de Melo, por isto ou por aquilo,
afastou-se a partir daí do mundo do espetáculo. Através de “SM58” descobriu,
“pasmada”, a “naturalidade com que as coisas estão a correr”. Assinou um
contrato discográfico com a editora NorteSul da qual sairá em breve um novo
trabalho. Um disco “totalmente diferente” dos anteriores: “Já estou grandinha e
não sofro tanto com as interferências de fora que impedem a criação”.
“Antes sentia revolta”, continua,
“mas acho que esta revolta tinha a ver com o meu estado de espírito, de
superioridade, por isso é que as coisas não aconteciam. Eu era uma estrela e
não tinha dinheiro para pagara a renda, alguma coisa estava errada. Mas não é
possível trabalhar numa fábrica e depois chegar a casa e cantar. Hoje é
diferente, não sei que transformação aconteceu dentro de mim, mas a verdade é
que aconteceu. De repente consegui”. Pilar conseguiu. Tem pronto um novo disco
prestes a sair. Em relação ao “SM58” está eufórica: “nós as três somos
diferentes mas temos talento!”.
ANAMAR
atena
Anamar
é uma criatura da noite que gosta de luz. Garante que esta colaboração, com o
número de série “SM58”, que considera uma espécie de “o mundo em música”,
permite “o crescimento musical” das três. Fala de “coisas belas”, de “ideias” e
de “motivação humana” para ilustrar algo que se difunde na cor branca, no mesmo
branco lunar que banha as canções do seu último álbum, já distante no tempo,
“M”, dito de muitas maneiras, como “mar”, “mim”, “mental”, mudança” e “morte”.
Para Anamar esse foi um disco “feito com os pés para cima e a cabeça para
baixo, um álbum desenraizado”. Seria então em vez de “M” um “W”…
Confessa-se: “Já fui suficientemente
‘pateta’ para pensar que o ideal faz a vida, que uma coisa é saber e outra
ser”. O que a une a Né e a Pilar é a transparência. “No fundo estamos aqui
porque somos transparentes e queremos contribuir para um maior prazer em viver,
para uma abertura de visão”.
Consumada a edição de “M”, Anamar
passou a encarar as coisas de forma diferente: “Depois de umas pancadas nas
costas e de uns chutos no rabo, inverti a posição. Pus os pés na terra
novamente”. Simples. “Na primeira fase da minha carreira desiludi-me com o
exterior. Na segunda desiludi-me com o interior”. De desilusão em desilusão,
acabou por ser despedida “sem justa causa” da editora para onde gravava, a BMG,
e com quem está atualmente em litígio.
Durante os últimos anos a música
funcionou como qualquer coisa que a “assombrava”. Com “SM58” reencontrou o
prazer de estar em palco, afastou angústias e encara o futuro com outro
otimismo. Embora ainda olhe para a frente e diga: “Não sei de nada e nem quero
saber já!”.
Como as suas duas companheiras,
aceita o facto de ser diferente e só lamenta que a indústria não saiba tirar
partido disso. Porque “o sistema é estúpido!”, diz.
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