Sons
10
de Julho 1998
PORTUGUESES
As cabeças
alimentam-se de azul
Nuno
Rebelo
Azul Esmeralda (10)
Ed. e distri. Ananana
Imperturbável no caminho que
traçou, alheio às pressões de uma indústria que não se compadece com a
afirmação de uma autonomia teimosamente cultivada, Nuno Rebelo prossegue o seu
percurso de músico posicionado nas margens do “mainstream”. É que, ainda por
cima, a música deste antigo elemento dos Street Kids e dos Mler Ife Dada,
está-se positivamente marimbando para o facto de ser ou não ser portuguesa.
“Azul Esmeralda”, composto para
uma coreografia de Paulo Ribeiro, prolonga alguns dos métodos seguidos no álbum
anterior, “M2”, nomeadamente um trabalho de colagem e manipulação sonora que
aqui tomou como matéria-prima, o contrabaixo de Carlos Bica e o trombone e tuba
de Greg Moore, executados ao vivo em improvisações em tempo real. Com este
material procedeu Nuno Rebelo a um notável trabalho de composição, usando ainda
uma série de gravações de campo (que vão dos grunhidos de um porco à voz de uma
criança de Cabo-Verde) e os restantes instrumentos, gravados normalmente no
estúdio.
O resultado é uma música sem
classificação possível, que poderia figurar orgulhosamente num catálogo como o
da Recommended, ombreando com alguns dos trabalhos de Fred Frith (um dos heróis
de Rebelo), como “The Technology of Tears”, ou dos Nimal. Fragmentária para
logo de seguida se organizar numa valsa de danados, perturbante, humorística,
gutural, celestial, “Azul Esmeralda” cultiva a improbabilidade e a surpresa,
formatando um magma de referências numa cornucópia de onde jorram
abundantemente ideias e achados sonoros. “Hipercitizens” ostenta os sinais de
uma “downtown” já filtrada por uma acumulação de memórias e sinais
referenciais. O que não obsta a que swingue sem uma falha, como se os sopros de
Greg Moore e o contrabaixo de Bica estivessem na realidade presentes numa
acalorada “jam”, dirigida por Rebelo que neste tema ainda se dá ao luxo de
solar quase com desdém na guitarra elétrica, numa inspiradíssima dedicatória a
Fred Frith, para logo a seguir vir ao de cima todo o Inconsciente do
rock’n’roll. E John Zorn, o “jazzman” que transbordava de ideias, ficou a ver
navios, no cais de onde partem as loucuras (e se os Residents fossem músicos de
jazz?...) de “Building for us all”, imediatamente seguido de um solo
milimétrico de trombone que, poucos segundos depois, se desagrega numa miríade
de estilhaços pontilhísticos. Há em “Azul” construções vocais sem filiação
visível, rituais de culturas inexistentes, tangos e valsas, celebrações de
ritos obtusos a deuses suspeitos, monstros mansos e anjos perversos, animais de
som que invadem instantes de serenidade, seres mutantes, poços que se abrem
cavando abismos, infeções e curas, luzes com muitas cores, construções e desabamentos,
explosões e orações, enumerações e incongruências, religiosidade e paródia.
Cabe tudo e tudo faz sentido neste manifesto portentoso saído de uma das
cabeças mais inteligentes da música portuguesa dos últimos anos. Absolutamente
imprescindível para pessoas com cabeça.
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