20/08/2014

Traficantes de sonhos [Reedições]



20 Outubro 2000
REEDIÇÕES

Traficantes de sonhos

            Como Van Morrison, Steve Winwood é um daqueles cantores brancos que nasceu com a alma dos cantores negros de “soul”. Tendo-se notabilizado nos Spencer Davis Group, seria, contudo, nos Traffic que a sua voz ganharia maior projeção. Os Traffic foram uma das bandas ilustres dos anos 70 e a sua mistura de “rhythm ‘n’ blues”, “soul”, jazz e progressivo rivalizava na época – início dos anos 70 – com a invasão proveniente do outro lado do Atlântico protagonizada pelos Chicago Transit Authority e Blood, Sweat & Tears. Sem o poderio das secções de sopros destas duas bandas, os Traffic primavam antes pela subtileza, pondo em destaque as capacidades vocais e os teclados de Winwood e com Chris Wood, nos saxofones e flautas, a assumir-se como o principal solista do grupo, cuja formação clássica era completada pelo percussionista Jim Capaldi e o multinstrumentista Dave Mason (guitarra, mellotron, sitar, baixo, tamboura). “Mr. Fantasy”, de 1967, quanto a nós o melhor álbum de toda a discografia dos Traffic, surge agora remasterizada de maneira a proporcionar uma imagem fidedigna daquela que foi uma das bandas precursoras da estética de fusão. Baladas psicadélicas, como “Heaven is in your mind” e “Dear Mr. Fantasy” e explorações sónicas onde cada instrumento era pensado como uma extensão não só do músico como do estúdio – em forma de fanfarras surrealistas, canções-labirinto, excentricidade teatral, becos melódicos que encontram inesperadas maneiras de fazer sentido, secções instrumentais bizarras a fazer lembrar os Van Der Graaf Generator (que, na altura, nem sequer tinham ainda gravado…) – juntam-se numa obra única que permanece como um clássico da época. Também disponível em versão remasterizada está outro álbum importante dos Traffic, “John Barleycorn must Die”. (Island, distri. Universal, import. Lojas Valentim de Carvalho, 9/10)

            Rory Gallagher, nome inesquecível para os amantes da guitarra rock, faleceu há cinco anos, na sequência de uma transplantação do fígado mal sucedida, deixando uma vasta obra que, se não primava pela originalidade, mostrava um executante de extraordinárias capacidades. A par de toda a sua discografia a solo, entretanto disponível em versões remasterizada, pode igualmente apreciar-se a sua música através do grupo a que pertenceu antes de enveredar por uma carreira solitária, os Taste. Em “On the Boards”, de 1970, os riffs de guitarra evidenciam todo o respeito que Gallagher tinha pelos “blues”. Mas Rory Gallagher, além de tocar guitarra como ninguém, fazia questão de mostrar que também sabia compor uma canção e, até, tocar saxofone… Para quem ainda regressa com prazer à música dos Cream, por exemplo, a descoberta dos Taste poderá ser gratificante. (Polydor, distri. Universal, 7/10)

            Para se compreender até que ponto a pop inglesa dos anos 60 legou um manancial fantástico de canções pop estado de perfeição, não chega referir o nome dos Beatles e dos Kinks, apesar de estas duas bandas serem as que tinham nas suas fileiras dois dos génios da música popular, respetivamente Paul McCartney e Ray Davies. Mas se bandas houve que apenas deixaram a sua marca na Historia através de uma única canção, impressa nos “charts” com o brilho de um cometa, outras houve detentoras de uma obra sólida que com regularidade foram capazes de sobreviver ao monopólio dos “fab four”. Bandas como os Hollies ou os Manfred Mann, estes últimos agora disponíveis com a coletânea “The Very Best of the Fontana Years”. Eram os anos dourados da pop para a qual os Manfred Mann contribuíram como canções inesquecíveis como “Mighty quinn”, “Ha! Ha! Said the clown”, “Semi-detached suburban Mr. James”, “My name is Jack”, “Fox on the run”, “Ragamuffin man” ou “Up the junction”, todas elas incluídas na presente compilação e dignas da remasterização que não chegou a ser feita. Manfred Mann (nome do líder e teclista de origem sul-africana) formaria a seguir os jazz-progressivos Manfred Mann Chapter Three (dois álbuns raros na Vertigo a descobrir) para finalmente se estabelecer com o progressivo mais prosaico da Manfred Mann Earthband. (Spectrum, import. Lojas Valentim de Carvalho, 7/10)

            Na Alemanha, para quem não cavalgava na crista da onda do que de mais original e alucinado dava pelo nome de “krautrock”, era difícil escapar à influência anglo-saxónica. Pertenciam a esta categoria os Jane, uma honesta banda de hard-rock sinfónico apesar de tudo com uma costela cósmica, cuja discografia (13 albuns, entre 1972 e 1989) não suscita grandes elogios. “Between Heaven and Hell” (1977), porém, distingue-se dos restantes, sobretudo graças à longa suite conceptual que dá titulo ao álbum, nitidamente influenciada por “Ummagumma” e “Atom Heart Mother”, dos Pink Floyd, mas suficientemente carregada de ideias interessantes para não passar despercebida. “Space rock”, secções clássicas, efeitos vocais a cargo de um empertigado émulo de Roger Water dão a ouvir a banda sonora, entre o kitsch e a majestosidade, do paraíso e da danação. No tema final, talvez chamuscados pelas labaredas, os Jane enlouqueceram e entregaram-se nas mãos dos Velvet Underground. (Repertoire, import. FNAC, 7/10)

            Feios, porcos e maus. Mas um “must” no circuito de espetáculos rock dos anos 70. Eram assim os Edgar Broughton Band, um gang de hard rock composto por músicos hirsutos, adeptos dos “blues” e do “speed”. As duas coisas juntas resultaram em “hits” da estudantada como “Out demons out” e em riffs de blues psicadélico primário. Com boa vontade, os EDB podiam passar por uma versão camionista de Captain Beefheart, embora também haja quem (decerto com a cabeça já não em muito bom estado) os compare aos Grateful Dead. “Oora”, de 1973, é o seu álbum mais sofisticado, se sofisticação representa a concessão a harmonias pop, guitarras acústicas e uma simbologia imagética que remete para os Hawkwind e os Motorhead. A verdade é que a inclusão de um naipe de metais, violino, efeitos eletrónicos (também do tipo osciladores apontados ao infinito dos Hawkwind, de “X In Search of Space”) e – pasme-se – harmonias vocais from “outer space”, tornam “Oora” num disco suficientemente freak e variado (além de Beefheart, lembra, a espaços, Eric Burdon & the Animals) para justificar uma chamada de atenção. Era uma das características mais interessantes dos anos 70: poder gravar-se todos os tipos de loucura. Como esta. (BGO, distri. Megamúsica, 7/10)

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