23/08/2014

Um oásis no deserto [Eletrónica portuguesa]



Sons
3 Novembro 2000

A música eletrónica tem sido uma paisagem desolada, onde a vida escasseia. Mas no meio do deserto surgem, de quando em quando, oásis. É sobre eles que o PÚBLICO fala esta semana, em conversa com Vítor Joaquim, no balanço do festival Eme 2000, e através da recensão de alguns álbuns representativos do género, por ilustres desconhecidos.

Nova música eletrónica portuguesa

Um oásis no deserto

            Nos últimos tempos algo mudou na música eletrónica produzida em Portugal. Provam-no a edição, nalguns casos de autor, de diversos e interessantes CD apostados em dignificar a eletrónica feita em Portugal e até, pasme-se, a organização de concertos protagonizados por músicos nacionais. É o caso do festival, ou dos encontros, Eme 2000 que recentemente teve lugar em Setúbal onde, entre outros, estiveram presentes Nuno Rebelo, Vítor Joaquim, Emídio Buchinho e Rodrigo Amado. Vítor Joaquim, de nome artístico Free Field, autor do projeto com este nome ao se deve a edição de “Tales from Chaos”, um dos marcos da música eletrónica feita em Portugal, foi aliás um dos responsáveis pela organização do evento.
            “Tales from Chaos” faz parte de um grupo seleto de discos que também inclui clássicos como “Mr. Wollogallu”, de Nuno Canavarro e Carlos Maria Trindade, “Plux Quba”, de Nuno Canavarro, “Música de Baixa Fidelidade”, de Tozé Ferreira, “Musiques de Scène”, de Carlos Zíngaro, “Celsianices”, de Celso de Carvalho, “Part Human, Part Simpson” de Discmen, “Evil Metal”, dos Telectu, “M2” e “Azul Esmeralda” de Nuno Rebelo, “A Nova Portugalidade”, dos U-Nu, e “Zzzzzzzzzzzzzzzzzzp!” do grupo com este nome, do qual será editado em breve um novo álbum. A estes nomes pode acrescentar-se os dos No Noise Reduction, Vítor Rua, Rafael Toral e Bernardo Devlin entre outros.
            Mas sob o solo lavrado pelos clássicos agitam-se novos miasmas e organismos vivos em fase de crescimento, ávidos de saírem para a luz do dia. É sobre alguns destes novos discos e projetos que falaremos neste artigo, ao mesmo tempo que convidámos Vítor Joaquim a fazer um balanço do Eme 2000. A eletrónica já dá choque, em Portugal.

Eme 2000

            O Eme 2000 dividiu-se em três sessões ao longo das quais a eletrónica andou lado a lado com a música improvisada. Vítor Joaquim (VJ) explica como foi possível: “Após três meses de produção solitária, maioritariamente de telefone em punho e e-mails intermináveis (enquanto os amigos iam de férias e para a praia!), acabou por surgir um conjunto de apoios bastante interessante que viria a tornar viável a montagem dos encontros, enquanto se delineava simultaneamente uma equipa de pessoas entusiasmadas, que do primeiro ao último momento contribuiu com o seu melhor nas tarefas mais diversas que se possa imaginar: vender bilhetes, servir cafés, esticar alcatifas, carregar aparelhagens, esticar cabos, controlar entradas, etc.”
            Quanto ao critério de escolha dos artistas, a “ideia fundamental foi encontrar um grupo de músicos que pudesse proporcionar um conjunto suficientemente diversificado de abordagens em termos da génese do som – desde a eletrónica acentuada até à exclusividade acústica –, assim como do próprio discurso interpretativo sem perder de vista, obviamente, o lado performativo de cada indivíduo na sua relação com o(s) instrumento(s)”. Não foi esquecida, “num plano paralelo de opções, uma perspetiva de ‘sedução’ na apresentação e progressão dos concertos, com toda a subjetividade que o termo pode implicar”.
            O Eme 2000 pôde contar com o apoio de “13 entidades que se mostraram disponíveis para prestar apoio à sua realização, sendo que, de entre elas, cinco fizeram apoio financeiro direto, enquanto as restantes colaboraram em termos de permuta publicitária”. Uma crítica à autarquia do concelho que VJ culpa pelo “trabalho nulo ao longo dos anos” e acusa de não ter contribuído “com um único centavo” para a realização destes encontros.
            Sobre o saldo final em termos de adesão ao público e dos músicos, ou do ambiente, e dada a escala modesta destes encontros, Vítor Joaquim é perentório: “Em termos de adesão de público foi verdadeiramente surpreendente. Não só pelo número global de espetadores como também pelo aumento da afluência, passando de aproximadamente 85 pessoas no primeiro dia para cerca de 100 no segundo, culminando em cerca de 120 no terceiro.”
            VJ refere mesmo a existência de “sérios indicadores de um interesse progressivo pela área da improvisação e da experimentação, provando-se desta forma que, quando há trabalho e empenhamento por parte dos músicos e produtores, as coisas acontecem de facto”. “Ao que as pessoas reagem”, acresenta.

Macacos e apóstolos

            Ainda em relação à Câmara Municipal de Setúbal, VJ não resiste a comentar que “está na fase de aprender a soletrar” e que “demorará ainda algum tempo até que, para além das palavras, as pessoas em causa saibam compreender os conceitos que elas abrigam ou invocam”. E cita Lichtenberg: “Tais obras são como espelhos; se um macaco olhar para dentro delas, nunca poderá ver um apóstolo.”
            O Eme 2001 está na calha, com a hipótese de participação de músicos estrangeiros, embora a “primazia continue a pertencer aos portugueses”. Entretanto, “como forma de preencher o vazio existente entre duas edições, está em fase de implementação um programa de espetáculos que carece ainda de um suporte financeiro regular por forma a poderem ser produzidos espetáculos não só na área da experimentação musical como da dança, performance, instalações, etc.”, diz VJ.
            Vítor Joaquim prepara entretanto a edição de um novo álbum, que dará pelo nome de “La Strada is on fire” com o subtítulo “And we are all naked”, onde contará com participações de Vítor Coimbra, no baixo, Rodrigo Amado, no saxofone, e o inglês Martin Archer, em saxofone, assim como colaborações de Chris Bywater e Charlie Collins, na eletrónica.


Novos rumos

Code-N
Per:Form
Ed. de autor
            Nuno Correia é o cérebro dos Code-N. Entre temas compostos para um recital de poesia multimédia e para uma peça de teatro, “Per:Form” atravessa os territórios da eletrónica ambiental, do drum’n’bass, do breakbeat, do neo-industrialismo e da techno de corridas (“March One”), entrando em regiões menos exploradas do universo electro em temas como “Southwest”, “O som dos Instrumentos” ou “Luzazul”. A manipulação digital assumida a cem por cento, com resultados por vezes surpreendentes.

Mola Dudle
Mobília
Ed. de autor
            Nasceram em Tavira e arrumaram a mobília da casa segundo o design e a lógica alucinada de um louco. Nanu e Miguel Cabral, os “loucos”, asseguram a totalidade da produção sonora, usando para tal “tudo o que produz som que se pode encontrar em casa”. Colagens, eletrónica desconstrutivista e dissecação de canções que não chegam a sê-lo, confluem num compartimento onde a desarrumação sonora é apenas aparente. A estética Recommended espreita, os desarranjos psicológicos de uns Biota, idem, mas quando o swing eletrónico de um tema como “Allo…” funciona em pleno, são os melhores Negativland ou os atuais brincalhões da a-musik que deitam a cabeça de fora, enquanto em “Partypooper” nem Frank Zappa faria melhor. Mas os Mola Dudle devoraram todas as influências e, queira alguém “pegar” neles, poderão tornar-se num dos casos mais sérios e originais da nova música portuguesa.

Ras.Al.ghul
Subharmonic Density Structures
Aquatica, distri. Symbiose
            Terceiro trabalho desta banda formado por ex-elementos dos “industriais” Cranioclast, “Subharmonic Density Structures” limpou o som das antigas impurezas para se concentrar numa eletrónica de cariz hipnótica e forte carga onírica em forma de mantras que comandam os movimentos do cérebro. Do transe psicadélico ao chill out, passando pelo techno ambiental, os Ras.Al.Ghul visitam as divisões vazias deixadas pelos Biosphere para tentarem chegar ao lado obscuro revolvido pelos Coil

Vários
Ar da Guarda
Ed. Câmara Municipal da Guarda
            A julgar pelos 13 exemplos apresentados nesta coletânea, a Guarda encontra-se na vanguarda das novas música nacionais. Entre os exercícios das guitarras “new age” de Rogério Pires e parasitária de Albrecht Loops, o neoclassicismo pianístico do Maria João Magno e de Hélia Fernandes, destacam-se as colaborações de Leonel Valbom e José Tavares, ambos discípulos do “sequenciador analógico” dos Heldon, Victor Afonso, do projeto Kubik, com uma sequência acutilante de percussão e vozes de “contemporânea erudita”, sax zorniano e eletrónica fracionada (David Garland meets Holger Hiller meets Laibach) e Miguel Prata Gomes, com um excelente pedaço de mistério em fita magnética na linha Steve Moore/Jocelyn Robert. Anote-se ainda a proposta consistente de Gilberto Costa na área do jazz fusionista tendência “electrodowntown”, a portugalidade bizarra de um fado astral eletrocutado por Carlos Barreto Xavier e o “jazz mesmo” que Maria João e Mário Laginha poderiam assinar se estivessem pedrados, de António Cavaleiro, com a voz de Joana Correia. Saudáveis e inovadores estes ares que sopram da Guarda.

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