SONS
15 AGOSTO
1997
BERNARDO
DEVLIN
Albedo (6)
Ed. e
distri. Ananana
FREE FIELD
Tales From Chaos (7)
Ed. e
distri. Ananana
CARLOS ZÍNGARO
Release From Tension (7)
Ed. e
distri. Áudeo
À margem
Veneno para os
ouvidos e almas dos jovens. Ou antídoto contra o veneno da serpente da
indústria? Seja o seu efeito a doença ou a cura, os discos até à data editados
pela Ananana têm-se pautado pelo obscurantismo e radicalidade das suas
propostas. Músicas intransigentes, nutrem um desprezo intenso pelas regras do “mainstream”.
Correm, ao mesmo tempo, o risco de não ultrapassarem o círculo, por vezes
restritíssimo, de alguns eleitos. Torna-se difícil distinguir o hermetismo,
enquanto estratégia de uma “marginalidade” estética assumida, da vontade de
divulgar propostas musicais que, pela sua própria natureza e vocação, têm
dificuldades em encontrar veículos de gravação e promoção adequados.
Telectu, Carlos
Zíngaro, Manuel M. Mota, Rafael Toral, Vítor Rua, Nuno Rebelo, Osso Exótico e
Bernardo Devlin, os nomes até hoje editados pela Ananana, apresentaram obras
marcadas pela diferença, ou mesmo pelo isolacionismo, algumas delas polémicas,
outras narcisistas, todas elas, em maior ou menor grau, refratárias à
facilidade e mergulhadas na procura ou na pesquisa de discursos musicais
orgulhosa e furiosamente individualizados, por vezes, no limite da
comunicabilidade.
Bernardo Devlin, antigo elemento dos
Osso Exótico, apresenta nesta editora o seu segundo trabalho a solo, num
registo de oposição quase absoluto ao anterior “World Freehold”. Enfeitiçado
pelas visões poéticas de estados de consciência alterados, émulo de Syd
Barrett, enquanto equilibrista da vertigem, à beira dos abismos da linguagem,
Bernardo Devlin cria em “Albedo” –
gravado numa igreja da Ordem Cartuxa, em Caxias – uma teia poética de realismo
mágico, entoada com a gravidade alucinada de um Scott Walker. Álbum de
“canções”, nele se assiste a uma curiosa recorrência dos elementos (fogo,
vagas, terra, luz, sol...) que em “World Freehold” se materializavam num abstracionismo
sonoro minimalista e, precisamente, elementar, e aqui se transmutaram no
domínio do conceptual e da psicologia. É a diferença entre o toque da varinha
na pedra e a invocação, numa música armadilhada e acústica que se aproxima, até
nas suas premissas ideológicas, da “folk luciferina” de grupos como os Death In
June e Current 93.
“Tales From Chaos” do projeto Free Field, aliás Vítor Joaquim,
discorre sobre outros motivos e com um acréscimo de meios. Gravado igualmente
numa igreja, desta feita em Santiago de Palmela, divide-se em duas composições,
indexadas em partes, “Nothing Is Pure (In Electric Sound”) e “Everlasting
Echo”, esta última uma instalação sonora composta para uma exposição de Andreas
Stocklein.
Joaquim,
fundador, nos anos 80, do grupo Clã, envolveu-se, nos últimos anos, em música
para teatro, dança, cinema, publicidade e vídeo, recebendo, em 1995, o Prémio
da Primeira Audição Pública para obras de música erudita, atribuído pela
Sociedade Portuguesa de Autores à composição “O Autor”. Teclista, programador,
manipulador de samplers e toda a espécie de tecnologia elecrónica, rodeou-se
ainda, na primeira daquelas faixas, de colaboradores como Carlos Zíngaro, Nuno
Rebelo e Marco Franco, entre outros.
Música de
síntese, “Tales From Chaos” viaja, em “Nothing is pure”, pela manipulação e
colagem de sons e ideias, num universo ambiental não linear com localização
próxima de Peter Principle ou Benjamin Lew. Pelas suas próprias características
de música para suporte de imagens, “Everlasting Echo” é mais discreto e menos povoado
de acontecimentos distrativos de uma linha ambiental, aqui mais claramente
definida. Ideal para divagações ou contemplações várias, “Tales From Chaos”
parece contradizer o seu título, oscilando antes em vibrações oníricas, parafraseadas,
aliás, numa citação de capa, por J. Ellis: “Os sonhos são reais enquanto duram.
Que mais podemos dizer da vida?”
Que mais podemos dizer da morte? O que Rui Eduardo Pais escreve no texto de apresentação de “Release From Tension” e sobre um dos músicos portugueses mais conceituados no estrangeiro, naquela que é a primeira edição da Áudeo, como editora. Para Paes toda a obra de Carlos Zíngaro se resolve numa tensão tanática que ilustra, em forma de metáfora funerária, com o título de uma novela de Tennessee Williams: “A semelhança entre um estojo de violino e um caixão”. O violinista acalenta, de há muito, dois projetos, de aproximação e captação dos sons ocultos do corpo. Um deles é a gravação da decomposição de um cadáver, numa encenação do “rigor mortis” musical. O outro, segundo processo idêntico, de apropriação e ampliação dos ruídos internos da função digestiva. Pode descortinar-se em “Release From Tension” uma idêntica operação de necrofagia, de dar vida (música, e não som, já que a morte, pelos vistos, pode fazer-se ouvir) ao inanimado, de ordenamento de pulsões musicais contraditórias que Zíngaro sublima no atonalismo e no abstracionismo eletrónico (ou ritual, como na “raga” de metal de “Open Series”) em temas cujos títulos exprimem, por si sós, essa dialética de silêncio/ruído, caos/gramática, vida/morte, estruturação/decomposição: “Desespero ritual”, “Devil angel”, “Body parts”. “Death ambient” chama-lhes Paes. A capa é o desenho cru de um corpo. Vivo? Morto?
Sem comentários:
Enviar um comentário