21/08/2014

À margem [Bernardo Devlin, Free Field, Carlos Zíngaro]



SONS

15 AGOSTO 1997

BERNARDO DEVLIN
Albedo (6)
Ed. e distri. Ananana

FREE FIELD
Tales From Chaos (7)
Ed. e distri. Ananana

CARLOS ZÍNGARO
Release From Tension (7)
Ed. e distri. Áudeo

À margem

Veneno para os ouvidos e almas dos jovens. Ou antídoto contra o veneno da serpente da indústria? Seja o seu efeito a doença ou a cura, os discos até à data editados pela Ananana têm-se pautado pelo obscurantismo e radicalidade das suas propostas. Músicas intransigentes, nutrem um desprezo intenso pelas regras do “mainstream”. Correm, ao mesmo tempo, o risco de não ultrapassarem o círculo, por vezes restritíssimo, de alguns eleitos. Torna-se difícil distinguir o hermetismo, enquanto estratégia de uma “marginalidade” estética assumida, da vontade de divulgar propostas musicais que, pela sua própria natureza e vocação, têm dificuldades em encontrar veículos de gravação e promoção adequados.
Telectu, Carlos Zíngaro, Manuel M. Mota, Rafael Toral, Vítor Rua, Nuno Rebelo, Osso Exótico e Bernardo Devlin, os nomes até hoje editados pela Ananana, apresentaram obras marcadas pela diferença, ou mesmo pelo isolacionismo, algumas delas polémicas, outras narcisistas, todas elas, em maior ou menor grau, refratárias à facilidade e mergulhadas na procura ou na pesquisa de discursos musicais orgulhosa e furiosamente individualizados, por vezes, no limite da comunicabilidade.

Bernardo Devlin, antigo elemento dos Osso Exótico, apresenta nesta editora o seu segundo trabalho a solo, num registo de oposição quase absoluto ao anterior “World Freehold”. Enfeitiçado pelas visões poéticas de estados de consciência alterados, émulo de Syd Barrett, enquanto equilibrista da vertigem, à beira dos abismos da linguagem, Bernardo Devlin cria em “Albedo” – gravado numa igreja da Ordem Cartuxa, em Caxias – uma teia poética de realismo mágico, entoada com a gravidade alucinada de um Scott Walker. Álbum de “canções”, nele se assiste a uma curiosa recorrência dos elementos (fogo, vagas, terra, luz, sol...) que em “World Freehold” se materializavam num abstracionismo sonoro minimalista e, precisamente, elementar, e aqui se transmutaram no domínio do conceptual e da psicologia. É a diferença entre o toque da varinha na pedra e a invocação, numa música armadilhada e acústica que se aproxima, até nas suas premissas ideológicas, da “folk luciferina” de grupos como os Death In June e Current 93.

“Tales From Chaos” do projeto Free Field, aliás Vítor Joaquim, discorre sobre outros motivos e com um acréscimo de meios. Gravado igualmente numa igreja, desta feita em Santiago de Palmela, divide-se em duas composições, indexadas em partes, “Nothing Is Pure (In Electric Sound”) e “Everlasting Echo”, esta última uma instalação sonora composta para uma exposição de Andreas Stocklein.
Joaquim, fundador, nos anos 80, do grupo Clã, envolveu-se, nos últimos anos, em música para teatro, dança, cinema, publicidade e vídeo, recebendo, em 1995, o Prémio da Primeira Audição Pública para obras de música erudita, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores à composição “O Autor”. Teclista, programador, manipulador de samplers e toda a espécie de tecnologia elecrónica, rodeou-se ainda, na primeira daquelas faixas, de colaboradores como Carlos Zíngaro, Nuno Rebelo e Marco Franco, entre outros.
Música de síntese, “Tales From Chaos” viaja, em “Nothing is pure”, pela manipulação e colagem de sons e ideias, num universo ambiental não linear com localização próxima de Peter Principle ou Benjamin Lew. Pelas suas próprias características de música para suporte de imagens, “Everlasting Echo” é mais discreto e menos povoado de acontecimentos distrativos de uma linha ambiental, aqui mais claramente definida. Ideal para divagações ou contemplações várias, “Tales From Chaos” parece contradizer o seu título, oscilando antes em vibrações oníricas, parafraseadas, aliás, numa citação de capa, por J. Ellis: “Os sonhos são reais enquanto duram. Que mais podemos dizer da vida?”

Que mais podemos dizer da morte? O que Rui Eduardo Pais escreve no texto de apresentação de “Release From Tension” e sobre um dos músicos portugueses mais conceituados no estrangeiro, naquela que é a primeira edição da Áudeo, como editora. Para Paes toda a obra de Carlos Zíngaro se resolve numa tensão tanática que ilustra, em forma de metáfora funerária, com o título de uma novela de Tennessee Williams: “A semelhança entre um estojo de violino e um caixão”. O violinista acalenta, de há muito, dois projetos, de aproximação e captação dos sons ocultos do corpo. Um deles é a gravação da decomposição de um cadáver, numa encenação do “rigor mortis” musical. O outro, segundo processo idêntico, de apropriação e ampliação dos ruídos internos da função digestiva. Pode descortinar-se em “Release From Tension” uma idêntica operação de necrofagia, de dar vida (música, e não som, já que a morte, pelos vistos, pode fazer-se ouvir) ao inanimado, de ordenamento de pulsões musicais contraditórias que Zíngaro sublima no atonalismo e no abstracionismo eletrónico (ou ritual, como na “raga” de metal de “Open Series”) em temas cujos títulos exprimem, por si sós, essa dialética de silêncio/ruído, caos/gramática, vida/morte, estruturação/decomposição: “Desespero ritual”, “Devil angel”, “Body parts”. “Death ambient” chama-lhes Paes. A capa é o desenho cru de um corpo. Vivo? Morto?

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