22
de Setembro 2000
Coldfinger
acenam com “Lefthand”
Quem
é a favor, levante a mão esquerda
Mãos ao ar! A esquerda! “Lefthand”. O álbum de estreia dos Colfinger
eletrifica filmes negros, comete crimes na noite, faz scratch de sentimentos
obscuros e corta à faca versos de Álvaro de Campos. E se entrar para um
autocarro a uma hora de ponta e olhar para dentro da cabeça de uma pessoa –
isso é drum’n’bass. O PÚBLICO armou-se em detetive e foi investigar.
Ele,
Miguel Cardona, faz filmes sonoros, sente o poder de tocar nas teclas de um
piano Fender Rhodes ou de um Mini-Moog, arreganha os dentes a quem ousa
proclamar a morte do drum’n’bass e não consegue aguentar até ao fim a beleza
excessiva de um filme como “Magnolia”. Ela, Margarida Pinto, veste-se das
grandes cantoras clássicas e assume-se como a “face escura” da banda. Em
“Lefthand” cada um é o braço do outro.
PÚBLICO – Como é que Álvaro de Campos
aparece metido nesta história, no tema de abertura, “Para um poema”?
MARGARIDA PINTO
– Foi um poema que me veio parar às mãos. Normalmente trago sempre comigo a
“Tabacaria” mas neste caso li os versos na casa de um amigo meu e achei-os
extremamente musicais. Fiquei com o poema na cabeça. Acabámos por utilizá-lo
com uma base musical que também não é nossa, mas dos Arkham Hi*Fi.
P. – “Lefthand” junta eletrónica, lounge,
hjazz, bossa-nova… Não se pode dizer que não estejam na crista da onda…
MIGUEL CARDONA
– No meu caso, que estou mais ligado à produção, se não estiver a fazer música estou
a ouvir. Em minha casa ou na de colecionadores de discos. Ainda na semana
passada comprei o “Room With a View”, que é uma compilação dos Amalgamation of
Soundz, que são eles próprios colecionadores, a coletânea “Jazz in the House 8”
do Phil Asher, alguém que passa este tipo de som que agora está na moda, um
álbum já antigo de Q-Tip. A verdade é que todas estas modas, como o fat garage,
ou o Larry Levan, já me andam a chatear. São cada vez mais rápidas, as pessoas
não têm tempo para absorver o que é importante.
M. P. – Eu
ouço Billie Holiday, Nuna Simone, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan…
P. – Dizia o Miguel que as pessoas já não
absorvem o que é importante?
M. C. – Às
tantas forma-se um bloqueio. De repente gosta-se de bossa e já não se gosta de
drum’n’bass, de que se gostava há três meses. Ouvir música torna-se um fenómeno
consumista e “racista”. A moda leva as pessoas a terem sensações apenas pelo
facto de ser algo que está na moda e não simplesmente pela música em si.
Diz-se: “Sinto-me bem porque estou num ambiente lounge a ouvir Masters at Work
na versão “Bossa Très Jazz” e pronto, estou bem porque estou com o pessoal, sei
que o que está a tocar é a faixa três, sei que isto foi roubado pelos Moloko e
que deu milhões de contos em “Sing it Back”, portanto sou uma pessoa especial
porque sei isto, porque li numa revista ou um amigo meu ou um jornalista
informadíssimo me disse!”…
P. – Mas isso não faz parte da própria
natureza do circuito da música de dança, essa socialização? Mesmo a música de
“Lefthand” está mais próxima do que nos primórdios da banda, dessa vertente,
digamos, mais mundana…
M.C. – Isso é
porque ficámos mais sozinhos a produzir o disco, apenas nós os dois e o Joe
Fossard. É um disco mais vasto onde se torna mais fácil darmos largas a todas as
nossas ambições musicais e se calhar porque estamos mais perto dessa ideia de
contemporaneidade social do que de uma ideia de contemporaneidade intelectual.
P. – E a Margarida, sente o mesmo apelo do
gozo direto, de uma música mais conotada com o conceito de diversão?
M. P. – Não,
normalmente sou eu a “face escura”. O Miguel é uma pessoa com mais energia que
assume essa lado de provocar uma experiência sensitiva, de provocar nas pessoas
uma vontade de dançar. Eu vou menos por aí…
Duke
já havia
P. – “Duke interlude” é obviamente uma
dedicatória a Duke Ellington, embora pela música ninguém adivinhasse…
M. C. – Esse
tema tem uma história. Ao registarmos as faixas na SPA, o tema chamava-se “Rude
interlude”. A senhora que lá estava, muito simplesmente, disse logo “não, não!
Esse tema não pode registar com esse nome porque há aqui um senhor que é o
(soletra) D-u-k-e- E-ll-in-g-ton…”. Já eu me estava a rir. Exatamente, é mesmo
o senhor Duke Ellington. Entre gargalhadas acabei por “agradecer” à senhora ter
ficado a conhecer um grande vulto da orquestração jazz e um dos grandes músicos
do séc. XX. Ficou “Duke interlude”.
P. – Pelos títulos, percebe-se que gostam
de brincar com as palavras…
M.C. – É uma
necessidade. Por exemplo, “B com 1”, que no poema original da Margarida se
chama “One alone”. Mas também tivemos dificuldades com o registo dessa faixa…
“Mondo” faz-me lembrar o nome de uma bebida, ou uma paisagem…
P. – Quem são os Lisboa City Rockers que
produzem os temas “Criminal behaviour” e “Trans interlude”?
M.C. – É
segredo. Também foram eles que produziram o nosso single, “Single plus”.
Digamos que são um coletivo cujo anonimato tem a ver com a ideia de criar uma
imagem, um espaço lúdico, uma etiqueta que possa incluir Os Faíscas, António
Variações ou os Mler Ife Dada, passando pelo Rock Rendez-Vous. Uma ideia de
unidade, de movimento e que também tem a ver com o rock fora da sua conotação
anglo-saxónica, um “Lisbon rock!”. Mas fazem essencialmente música de dança
ligada ao “house” ou um “electro” mais pop, da velha escola. São uma espécie de
testemunhas silenciosas…
Condução
de pesados
P. – Foram buscar para a gravação os velhos
sintetizador Moog, o órgão Hammond e o piano elétrico Fender Rhodes.
R. – O que o
Fender Rhodes tem de melhor é o peso das teclas. Podes ter um bom de Fender
samplado mas depois não tens a relação com o instrumento, que vibra e é bonito,
e em que a sua própria imagem inspira o músico. Quanto ao Moog, assiste-se a um
regresso brutal. No analógico, a parte elétrica é muito mais rica, os
componentes, os próprios materiais, permitem ao instrumento ter um som muito
mais poderoso. Sente-se que está ali qualquer coisa. É como conduzir um veículo
pesado. É diferente teres um tecladozinho midi onde podes chamar um “som
Rhodes” ou um “som Moog”. Perde-se essa relação.
P. – Cada um dos temas de “Lefthand” podia
passar por um pequeno filme. Há uma relação direta da música dos Coldfinger com
o cinema?
M. C. – O
cinema é algo que transporto comigo. O último filme que vi foi “Magnolia”.
Achei-o tão bom, de tal forma intenso, que me levantei e fui-me embora, já não
aguentava mais, comecei a ficar transtornado. Deviam parar a meio para as
pessoas descansarem. As imagens cinematográficas determinam por um lado o facto
de nos expressarmos em inglês e, por outro, a relação com as personagens, com
heróis, que acabam por influenciar a minha escrita musical. O último tema, por
exemplo, “The tree and the bird”, é uma fábula que vejo na minha cabeça como um
filme de animação. Sobre um fundo branco, há uma árvore a falar a um pássaro
dizendo-lhe “Tu também fazes parte de mim, não vou poder ir contigo, mas se
puderes levar um pouco de mim dentro de ti quando te fores embora…”. Claro que
há outras imagens bastante mais pesadas…
P. – “Lucky star” é um dos temas de “Lefthand”
mais declaradamente inserido no drum’n’bass. Afinal em que ficamos, o d’n’b
morreu ou veio para ficar? Um músico como Amon Tobin enterrou ou salvou o
d’n’b?
M.C. – Não
acredito nessas mortes anunciadas. Já quando era miúdo tentaram matar o punk, depois
tentaram matar o rock… O Amon Tobin trabalha com o som de uma forma quase dada,
cola os elementos, muito na escola dos Coldcut e da Ninja Tune, apesar de ser
diferente. Não acho que ele seja um típico autor de drum’n’bass. O James
Hardway também fez agora um disco um bocado diferente, mas faltam os gurus… O
LTJ Bukem, que seria um dj de d’n’b, fez um disco que não é de d’n’b. Mas o
d’n’b não morreu. É uma ideia que existia já no jazz be-bop, com uma atitude
tipicamente humana. Se um gajo apanhar um autocarro numa hora de ponta, lá
dentro é um concerto de d’n’b na cabeça das pessoas…
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