20/08/2014

Através da lente [Sérgio Godinho]



Sons
20 Outubro 2000

Sérgio Godinho observa as canções do seu novo álbum à lupa

Através da lente

            “Lupa” é Sérgio Godinho “vintage”. Excelentes canções vestidas de forma superlativa por Nuno Rafael, dos Despe & Siga, e Hélder Gonçalves, dos Clã. Depois de “Domingo no Mundo” o autor de “Pano Cru” regressa em força, numa demonstração de que o seu veio criativo está longe de se esgotar. Se ele descobriu ou não o elixir da eterna juventude, ´´e irrelevante. Os efeitos são visíveis nas novas histórias que conta. Observadas pelo próprio à lupa.

            Bíblias de um deus ateu“(É que) em matéria de amor/Estamos sempre adolescendo”

            A ideia de utilizar discos antigos de vinilo riscados foi do Nuno Rafael. Há uma memória. Parece que as coisas vêm de outro passado. É uma canção forte que explana um bocado o que são os meus temas, sobretudo em relação à vida e ao amor. Fala de renovação. Achei piada explicar o significado das palavras “androceu” e “gineceu”. Nota-se na juventude um fenómeno de simplificação, sobretudo ao nível da leitura. A imagem, a televisão, tirou-lhe espaço. Por outro lado, fico surpreso com o grau de liberdade destas gerações mais novas. Liberdade criativa, de diversidade e de interesse por outras culturas, depois de se ter passado primeiro por uma espécie de “vale tudo”. Mas esta canção, embora fale dos festivais de Verão, não é só sobre a juventude. Seja qual for a idade que tenhamos, como eu digo na letra, em matéria de amor, estamos sempre adolescendo.

            Benvindo Sr. Presidente“Soubera eu que o senhor vinha/E com certeza não me tinha/Apanhado na cozinha”

            Canção satírica. Uma crítica ao poder e à mediatização do poder. Sem os “media”, o poder e os políticos não são nada. E não são só as idas aos mercados do Paulo Portas [risos]. São todos. A canção fala, por um lado, do tipo que é obrigado – os portugueses são bem educados… - a receber bem o político, embora a mulher tenha ido embora e esteja desempregado, e, por outro lado, do papel que são obrigados a fazer os políticos, quase sempre artificial. Quem quiser que enfie a carapuça!
            Em termos musicais, tem os sons do cortejo que se vai afastando, com o ladrar dos cães, uma espécie de remate cacofónico.

            Dancemos no mundo“Separam-nos crimes/Separam-nos cores/A noite é de horrores”

            Mistura géneros, com um refrão um bocadinho “retro”, idílico, embora seja uma canção mais pesada do que parece. Fala das separações dos amantes. A primeira imagem veio de uma reportagem que li sobre um casal formado por um palestiniano e uma israelita. Também podia ser um branco e uma negra. O título esteve para ser “Fronteiras”. Uma utopia sobre o sonho de podermos estar juntos. Os corpos existem, simplesmente há a intolerância religiosa, os “fatwas”, os credos, as cores, os crimes que separam…

            Maçã com bicho (acho eu da praxe)“Mas há quem ache/Graça à praxe/É divertida (hi-hon)/Lição de vida (ão-ão)”

            É uma crítica, e na primeira pessoa! Gosto dos estudantes, já fui várias vezes convidado para a queima-das-fitas, mas rituais celebratórios como as praxes, em que a humilhação funciona como processo iniciático, chateiam-me! É o riso considerado como valor absoluto, quando o valor absoluto não é o riso, mas o humor. Eu aqui até uso um bocado as mesmas armas, zurro e ladro…

            Na prisão“Porque há horas tão velozes/E semanas infinitas?”

            Já cantei na penitenciária. Mas gostaria de poder um dia cantar esta canção numa prisão. É uma coisa que me toca muito, sei como são as prisões por dentro… É uma canção de alguém que se sente irmão dos que estão presos. Uma série de vinhetas sobre o que é estar preso – para além de tudo o que eu possa denunciar, sobre as condições horríveis das prisões portuguesas. Ainda por cima para pessoas que não deviam ir lá parar, presas por razões ridículas, como o consumo de drogas. A justiça portuguesa é dos setores em que estamos longe de viver uma situação satisfatória. É um monstro, uma hidra que não pára de crescer. Corta-se de um lado e cresce do outro. É assustador. Os encobrimentos, os favorecimentos, a lentidão… Para mudar é necessária a coragem que falta numa situação de corporativismo.

            Estou com os azuis“I’ve got the blues/Estou com os azuis/Salvé! Tê/Salvé! Rei dos Ruis”

            Uma homenagem a uma parceria. Nem sabia que havia este tributo ao “Ar de Rock” quando fiz isto. É um “gag”. Uma canção despreocupada em forma de blues. Gosto de parcerias, de vozes que se confundem. Eu, além de já ter trabalhado com o Milton [Nascimento], por exemplo, faço parcerias comigo mesmo… No sentido em que procuro encontrar a minha outra voz…

            Bom prazer“Amanhã, bom prazer eu ponho/No que faça do que hoje sonho”

            Uma canção que eu já andava a cantar ao vivo, embora com uma versão muito simples, à guitarra. Também já tinha sido gravada para a Filipa Pais. Esta nova versão foi trabalhada pelo Nuno Rafael e ganhou uma nova vida. Os ambientes mudaram…

            Visita guiada“Cada qual sabe de cor/(Ninguém tem nada com isso!)/Em que ponto de que dor/Se arrisca a cauda na estrada”

            Canção sobre o amor, sobre as circunstâncias do amor. O amor e as suas “atrocidades”, “felicidades” e “sacaneidades”. Mostra as maneiras como as pessoas se amam…

            É nosso, o S. João“Mas se houver um dia/Em que a gente/Negue tudo intimamente/E se preste à mais perdida confusão”

            Nem sequer sou do FC do Porto; sou do Sporting, embora tenha uma costela salgueirista. Não tenho uma imagem muito conotada com o Porto, apesar de ter escrito o “Porto aqui tão perto”. E peguei no “Carteiro”, do António Mafra, que era lá do Norte. A melodia é uma marcha franca que depois o Hélder transformou em algo mais. Já não vou ao S. João há anos, mas gosto da maneira de estar das pessoas do Porto. A canção celebra a comunhão entre elas, numa noite especial que não devia ser de exceção mas algo para viver sempre. Ainda o desejo de utopia.

            A última sessão“Vimos todos o filme de rajada/Sempre de olhos postos no desfecho/Do happy-end, eu nem sequer me queixo/Só que a vida é mais emaranhada”

            Teve um primeiro arranjo, mas depois chegámos à conclusão de que estava demasiado espesso, que a canção perdia simplicidade. Tem uma frase que é um bocado o resumo de tudo, a “caixa negra dos amores” que esteve mesmo para ser o título da canção. São duas personagens que estão a ver um filme onde não vai haver desgraças e de repente a realidade começa a interferir. Não é um final pessimista. É apenas a vida que é mais emaranhada…

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