Sons
20 Outubro
2000
Sérgio
Godinho observa as canções do seu novo álbum à lupa
Através da lente
“Lupa”
é Sérgio Godinho “vintage”. Excelentes canções vestidas de forma superlativa
por Nuno Rafael, dos Despe & Siga, e Hélder Gonçalves, dos Clã. Depois de
“Domingo no Mundo” o autor de “Pano Cru” regressa em força, numa demonstração
de que o seu veio criativo está longe de se esgotar. Se ele descobriu ou não o
elixir da eterna juventude, ´´e irrelevante. Os efeitos são visíveis nas novas
histórias que conta. Observadas pelo próprio à lupa.
Bíblias de um deus ateu – “(É que) em matéria de amor/Estamos sempre
adolescendo”
A
ideia de utilizar discos antigos de vinilo riscados foi do Nuno Rafael. Há uma
memória. Parece que as coisas vêm de outro passado. É uma canção forte que
explana um bocado o que são os meus temas, sobretudo em relação à vida e ao
amor. Fala de renovação. Achei piada explicar o significado das palavras
“androceu” e “gineceu”. Nota-se na juventude um fenómeno de simplificação,
sobretudo ao nível da leitura. A imagem, a televisão, tirou-lhe espaço. Por
outro lado, fico surpreso com o grau de liberdade destas gerações mais novas.
Liberdade criativa, de diversidade e de interesse por outras culturas, depois
de se ter passado primeiro por uma espécie de “vale tudo”. Mas esta canção,
embora fale dos festivais de Verão, não é só sobre a juventude. Seja qual for a
idade que tenhamos, como eu digo na letra, em matéria de amor, estamos sempre
adolescendo.
Benvindo Sr.
Presidente – “Soubera eu que o senhor
vinha/E com certeza não me tinha/Apanhado na cozinha”
Canção
satírica. Uma crítica ao poder e à mediatização do poder. Sem os “media”, o
poder e os políticos não são nada. E não são só as idas aos mercados do Paulo
Portas [risos]. São todos. A canção fala, por um lado, do tipo que é obrigado –
os portugueses são bem educados… - a receber bem o político, embora a mulher
tenha ido embora e esteja desempregado, e, por outro lado, do papel que são
obrigados a fazer os políticos, quase sempre artificial. Quem quiser que enfie
a carapuça!
Em
termos musicais, tem os sons do cortejo que se vai afastando, com o ladrar dos
cães, uma espécie de remate cacofónico.
Dancemos no mundo – “Separam-nos crimes/Separam-nos cores/A
noite é de horrores”
Mistura
géneros, com um refrão um bocadinho “retro”, idílico, embora seja uma canção
mais pesada do que parece. Fala das separações dos amantes. A primeira imagem
veio de uma reportagem que li sobre um casal formado por um palestiniano e uma
israelita. Também podia ser um branco e uma negra. O título esteve para ser
“Fronteiras”. Uma utopia sobre o sonho de podermos estar juntos. Os corpos
existem, simplesmente há a intolerância religiosa, os “fatwas”, os credos, as
cores, os crimes que separam…
Maçã com bicho (acho eu da praxe) – “Mas há quem ache/Graça à praxe/É divertida
(hi-hon)/Lição de vida (ão-ão)”
É
uma crítica, e na primeira pessoa! Gosto dos estudantes, já fui várias vezes
convidado para a queima-das-fitas, mas rituais celebratórios como as praxes, em
que a humilhação funciona como processo iniciático, chateiam-me! É o riso
considerado como valor absoluto, quando o valor absoluto não é o riso, mas o
humor. Eu aqui até uso um bocado as mesmas armas, zurro e ladro…
Na prisão – “Porque há horas tão velozes/E semanas infinitas?”
Já
cantei na penitenciária. Mas gostaria de poder um dia cantar esta canção numa
prisão. É uma coisa que me toca muito, sei como são as prisões por dentro… É
uma canção de alguém que se sente irmão dos que estão presos. Uma série de
vinhetas sobre o que é estar preso – para além de tudo o que eu possa
denunciar, sobre as condições horríveis das prisões portuguesas. Ainda por cima
para pessoas que não deviam ir lá parar, presas por razões ridículas, como o
consumo de drogas. A justiça portuguesa é dos setores em que estamos longe de
viver uma situação satisfatória. É um monstro, uma hidra que não pára de
crescer. Corta-se de um lado e cresce do outro. É assustador. Os encobrimentos,
os favorecimentos, a lentidão… Para mudar é necessária a coragem que falta numa
situação de corporativismo.
Estou com os azuis – “I’ve got the blues/Estou com os
azuis/Salvé! Tê/Salvé! Rei dos Ruis”
Uma
homenagem a uma parceria. Nem sabia que havia este tributo ao “Ar de Rock”
quando fiz isto. É um “gag”. Uma canção despreocupada em forma de blues. Gosto
de parcerias, de vozes que se confundem. Eu, além de já ter trabalhado com o
Milton [Nascimento], por exemplo, faço parcerias comigo mesmo… No sentido em
que procuro encontrar a minha outra voz…
Bom prazer – “Amanhã, bom prazer eu ponho/No que faça do que hoje sonho”
Uma
canção que eu já andava a cantar ao vivo, embora com uma versão muito simples,
à guitarra. Também já tinha sido gravada para a Filipa Pais. Esta nova versão
foi trabalhada pelo Nuno Rafael e ganhou uma nova vida. Os ambientes mudaram…
Visita guiada – “Cada qual sabe de cor/(Ninguém tem nada com isso!)/Em que ponto de que
dor/Se arrisca a cauda na estrada”
Canção
sobre o amor, sobre as circunstâncias do amor. O amor e as suas “atrocidades”,
“felicidades” e “sacaneidades”. Mostra as maneiras como as pessoas se amam…
É nosso, o S. João – “Mas se houver um dia/Em que a gente/Negue
tudo intimamente/E se preste à mais perdida confusão”
Nem
sequer sou do FC do Porto; sou do Sporting, embora tenha uma costela salgueirista.
Não tenho uma imagem muito conotada com o Porto, apesar de ter escrito o “Porto
aqui tão perto”. E peguei no “Carteiro”, do António Mafra, que era lá do Norte.
A melodia é uma marcha franca que depois o Hélder transformou em algo mais. Já
não vou ao S. João há anos, mas gosto da maneira de estar das pessoas do Porto.
A canção celebra a comunhão entre elas, numa noite especial que não devia ser
de exceção mas algo para viver sempre. Ainda o desejo de utopia.
A última sessão – “Vimos todos o filme de rajada/Sempre de olhos postos no desfecho/Do
happy-end, eu nem sequer me queixo/Só que a vida é mais emaranhada”
Teve
um primeiro arranjo, mas depois chegámos à conclusão de que estava demasiado
espesso, que a canção perdia simplicidade. Tem uma frase que é um bocado o
resumo de tudo, a “caixa negra dos amores” que esteve mesmo para ser o título
da canção. São duas personagens que estão a ver um filme onde não vai haver
desgraças e de repente a realidade começa a interferir. Não é um final pessimista.
É apenas a vida que é mais emaranhada…
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