05/08/2014

A cola invisível dos génios [Dervish]



Sons
30 de Junho 2000

Cathy Jordan, dos Dervish, em entrevista exclusiva ao PÚBLICO

A cola invisível dos génios

Admiradores dos Bothy Band, os Dervish consideram-se sobreviventes. Apesar da energia que transmitem numa sala de concertos, garantem que poderiam tocar num “pub” dias a fio, sem se repetirem. Uma cola invisível mantém-los unidos há uma década. O PÚBLICO conversou com a vocalista Cathy Jordan.

Com dez anos de vida e seis álbuns editados, os Dervish atingiram o topo, proeza de que poucos grupos de música tradicional da Irlanda se podem orgulhar. Cathy Jordan explicou ao PÚBLICO as razões deste sucesso, fruto de um trabalho árduo e de uma fidelidade constante às raízes. O novo álbum “Midsummer’s Night” e mais uma atuação, a terceira, em Portugal, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas, fizeram aumentar ainda mais o cartel do grupo em Portugal.
PÚBLICO – Antes de ser convidada para ser a vocalista dos Dervish, que relação tinha com a música?
Cathy Jordan – Canto desde miúda. Toda a gente na minha família canta, pai, mãe, irmãos e irmãs. Nasci numa quinta isolada, na Irlanda rural, e a única distração que havia era a música. Os vizinhos vinham a minha casa, traziam consigo os instrumentos, tocava-se e cantava-se durante toda a noite. A minha irmã estudava num colégio em Sligo e foi lá, numa sessão de música tradicional, que encontrei os músicos dos Dervish.
P. – Conhecia nessa altura os principais grupos irlandeses dos anos 70, como os Planxty ou os Bothy Band? O seu estilo vocal lembra, por vezes, o de Triona Ní Dhomnaill, dos Bothy Band…
R. – Tomo isso como um cumprimento. Eu não diria que canto como ela mas admito que tanto os Dervish como muitas outras bandas irlandesas nunca teriam existido se os Bothy Band não tivessem existido. Eram génios que revolucionaram por completo os arranjos da música tradicional, introduzindo-lhes instrumentos como a guitarra, o bouzouki ou o mandocello.
P. – quando uma das tendências atuais mais fortes é a produção de fusões de toda a espécie, os Dervish mantêm-se relativamente próximos da ortodoxia…
R. – Poderíamos tocar música tradicional irlandesa na atmosfera de um “pub” durante horas a fio, durante dias, e nunca repetir um tema. É o que gostamos de fazer e é o núcleo central do nosso trabalho. Não queremos mudar por mudar. Se a música é suficientemente boa num “pub” é porque é, de facto, boa. Tocamos os temas na sua forma mais tradicional, com o violino e o acordeão fiéis ao original. É ao nível do acompanhamento que adaptamos e modificamos a estrutura dos acordes e dos ritmos.
P. – Essa tradição genuína continua viva na Irlanda?
R. – Com certeza. Viva e de boa saúde. Existem milhares de músicos na Irlanda que passam essa tradição de geração em geração.
P. – Continua a ouvir os velhos cantores?
R. – Absolutamente! São os professores. Um dos primeiros músicos irlandeses a gravar um disco, nos anos 20, era de Sligo, o violinista Michael Coleman. Todos os atuais músicos de Sligo olham para ele como um génio. A um nível técnico, nenhum outro músico conseguiu até hoje igualá-lo.
P. – Na sua primeira apresentação em Portugal, no Festival Intercéltico do Porto, atuaram ao lado dos Déanta. Eles desapareceram depois disso, enquanto os Dervish não pararam de crescer e de conquistar prestígio. A competição é de tal forma forte que os mais fracos ficam pelo caminho?
R. – Essa competição existe. Mas quando começámos, no início dos anos 90, havia apenas os Chieftains, os Altan existim há cinco anos… Foi uma época sem qualquer “boom” da música irlandesa, ao contrário do que se verifica hoje. Não havia então uma competição forte mas também não havia grandes incentivos. Trabalhámos arduamente, tivemos que comprar o nosso próprio autocarro e formar a nossa própria editora. Foi um processo gradual. Quando chegámos a um degrau mais alto da escada começaram a aparecer uma quantidade de outras bandas que viram o que nós tínhamos feito e evitaram cometer os mesmos erros que nós cometemos. Essas bandas atingiram o mesmo nível que nós em menos tempos.
P. – Que erros foram esses?
R. – Bem, nos negócios, sobretudo nas relações com as editoras, na promoção e “marketing” dos discos. Quando começámos nenhuma editora se interessou por nós. Ninguém queria arriscar na música tradicional irlandesa. Hoje é diferente, as novas bandas têm facilidade em assinar contratos. As companhias pressionam-nas desde cedo a participar em festivais e a verdade é que ganham rapidamente bastante dinheiro. Nós estamos juntos há todo este tempo – ao fim de dez anos é preciso que haja uma cola invisível que permita a qualquer grupo sobreviver – e só agora começámos verdadeiramente a ter alguns lucros. Ao ponto de pensarmos financiar alguns novos projetos, como compormos música para uma mini-série de televisão, na Irlanda, e fazermos um vídeo sobre o grupo.

Do “pub” para o auditório

P. – Não é costume as bandas irlandesas durarem tanto tempo. A regra é os músicos saltarem de um projeto para outro…
R. – Sim, mas se já conseguimos chegar tão longe, achamos que é possível continuar. Seria interessante verificar quantas das bandas hoje em atividade conseguirão sobreviver nos próximos anos… algumas delas fantásticas, como os Danú ou os Lúnasa. Mas vai ser difícil. Se conseguirem ultrapassar os primeiros cinco anos e gravarem pelo menos três álbuns, então assim, talvez consigam… Mas há quem fique cego ao tocar para grandes audiências. Depois há as contas para pagar. Não chega ser-se bom músico, também é preciso tratar dos negócios. Os Bothy Band ou os Planxty não ganharam um “penny” enquanto existiram! Por outro lado, quando se assina por uma grande editora, surgem pressões, como aconteceu com os Altan.
P. – É possível a uma banda como os Dervish sobreviver sem sair do circuito da Irlanda e entrar no circuito europeu?
R. – Não como uma banda. Pode fazer-se carreira mas apenas como músico de sessões. Uma banda não tem qualquer hipótese. Nós podemos dar 150 concertos por ano e apenas dois ou três são na Irlanda. Embora haja hoje mais dinheiro na Irlanda do que havia antes, escasseiam as salas de concertos e há uma falta de interesse. Para a maioria das pessoas não faz sentido pagar para ver uma banda tocar numa sala de concertos se pode ouvir esta música de graça num “pub”. Não veem a diferença entre o músico que toca à esquina da rua e a banda que atua num auditório – é tudo “deedle-didle-dee” [fonética aproximada…]. É uma pena, porque algumas dessas pessoas, que se “arriscam” a pagar bilhete para nos ver atuar numa sala, ficaram espantadas e deliciadas com o poder e a energia, com algo a que nunca assistiram antes.
P. – “Midsummer’s Night” é um álbum “clássico”. Não a preocupa que o grande público, para quem a música irlandesa não passa de uma moda, possa perder o interesse pelo grupo, até porque os Dervish não condescendem em alterações radicais da sonoridade?
R. – “Midsummer’s Night” foi o primeiro álbum que gravámos com a formação atual de sete músicos, o que aumentou o leque de opções dos arranjos. As possibilidades tornaram-se infinitas. Temos uma base de dados com o nome de cerca de 15 mil fãs, de todo o mundo. É claro que as pessoas que compram os nossos álbuns à espera de ouvir rock abandonarão de imediato o grupo. Mas se o nosso objetivo principal fosse agradar às grandes audiências nunca teríamos optado por tocar música tradicional! É verdade que existe hoje uma moda mas nós já cá estávamos antes dela aparecer e tudo aponta para que continuemos depois de desaparecer.

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