Sons
30
de Junho 2000
Cathy
Jordan, dos Dervish, em entrevista exclusiva ao PÚBLICO
A cola invisível dos génios
Admiradores dos Bothy Band, os Dervish consideram-se sobreviventes.
Apesar da energia que transmitem numa sala de concertos, garantem que poderiam
tocar num “pub” dias a fio, sem se repetirem. Uma cola invisível mantém-los
unidos há uma década. O PÚBLICO conversou com a vocalista Cathy Jordan.
Com dez anos
de vida e seis álbuns editados, os Dervish atingiram o topo, proeza de que
poucos grupos de música tradicional da Irlanda se podem orgulhar. Cathy Jordan
explicou ao PÚBLICO as razões deste sucesso, fruto de um trabalho árduo e de
uma fidelidade constante às raízes. O novo álbum “Midsummer’s Night” e mais uma
atuação, a terceira, em Portugal, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas,
fizeram aumentar ainda mais o cartel do grupo em Portugal.
PÚBLICO – Antes de ser convidada para ser a
vocalista dos Dervish, que relação tinha com a música?
Cathy Jordan –
Canto desde miúda. Toda a gente na minha família canta, pai, mãe, irmãos e
irmãs. Nasci numa quinta isolada, na Irlanda rural, e a única distração que
havia era a música. Os vizinhos vinham a minha casa, traziam consigo os
instrumentos, tocava-se e cantava-se durante toda a noite. A minha irmã estudava
num colégio em Sligo e foi lá, numa sessão de música tradicional, que encontrei
os músicos dos Dervish.
P. – Conhecia nessa altura os principais
grupos irlandeses dos anos 70, como os Planxty ou os Bothy Band? O seu estilo
vocal lembra, por vezes, o de Triona Ní Dhomnaill, dos Bothy Band…
R. – Tomo isso
como um cumprimento. Eu não diria que canto como ela mas admito que tanto os
Dervish como muitas outras bandas irlandesas nunca teriam existido se os Bothy
Band não tivessem existido. Eram génios que revolucionaram por completo os
arranjos da música tradicional, introduzindo-lhes instrumentos como a guitarra,
o bouzouki ou o mandocello.
P. – quando uma das tendências atuais mais
fortes é a produção de fusões de toda a espécie, os Dervish mantêm-se relativamente
próximos da ortodoxia…
R. – Poderíamos
tocar música tradicional irlandesa na atmosfera de um “pub” durante horas a
fio, durante dias, e nunca repetir um tema. É o que gostamos de fazer e é o
núcleo central do nosso trabalho. Não queremos mudar por mudar. Se a música é
suficientemente boa num “pub” é porque é, de facto, boa. Tocamos os temas na
sua forma mais tradicional, com o violino e o acordeão fiéis ao original. É ao
nível do acompanhamento que adaptamos e modificamos a estrutura dos acordes e
dos ritmos.
P. – Essa tradição genuína continua viva na
Irlanda?
R. – Com
certeza. Viva e de boa saúde. Existem milhares de músicos na Irlanda que passam
essa tradição de geração em geração.
P. – Continua a ouvir os velhos cantores?
R. – Absolutamente!
São os professores. Um dos primeiros músicos irlandeses a gravar um disco, nos
anos 20, era de Sligo, o violinista Michael Coleman. Todos os atuais músicos de
Sligo olham para ele como um génio. A um nível técnico, nenhum outro músico
conseguiu até hoje igualá-lo.
P. – Na sua primeira apresentação em
Portugal, no Festival Intercéltico do Porto, atuaram ao lado dos Déanta. Eles
desapareceram depois disso, enquanto os Dervish não pararam de crescer e de
conquistar prestígio. A competição é de tal forma forte que os mais fracos
ficam pelo caminho?
R. – Essa
competição existe. Mas quando começámos, no início dos anos 90, havia apenas os
Chieftains, os Altan existim há cinco anos… Foi uma época sem qualquer “boom”
da música irlandesa, ao contrário do que se verifica hoje. Não havia então uma
competição forte mas também não havia grandes incentivos. Trabalhámos
arduamente, tivemos que comprar o nosso próprio autocarro e formar a nossa
própria editora. Foi um processo gradual. Quando chegámos a um degrau mais alto
da escada começaram a aparecer uma quantidade de outras bandas que viram o que
nós tínhamos feito e evitaram cometer os mesmos erros que nós cometemos. Essas
bandas atingiram o mesmo nível que nós em menos tempos.
P. – Que erros foram esses?
R. – Bem, nos
negócios, sobretudo nas relações com as editoras, na promoção e “marketing” dos
discos. Quando começámos nenhuma editora se interessou por nós. Ninguém queria
arriscar na música tradicional irlandesa. Hoje é diferente, as novas bandas têm
facilidade em assinar contratos. As companhias pressionam-nas desde cedo a
participar em festivais e a verdade é que ganham rapidamente bastante dinheiro.
Nós estamos juntos há todo este tempo – ao fim de dez anos é preciso que haja
uma cola invisível que permita a qualquer grupo sobreviver – e só agora
começámos verdadeiramente a ter alguns lucros. Ao ponto de pensarmos financiar
alguns novos projetos, como compormos música para uma mini-série de televisão,
na Irlanda, e fazermos um vídeo sobre o grupo.
Do
“pub” para o auditório
P. – Não é costume as bandas irlandesas
durarem tanto tempo. A regra é os músicos saltarem de um projeto para outro…
R. – Sim, mas
se já conseguimos chegar tão longe, achamos que é possível continuar. Seria
interessante verificar quantas das bandas hoje em atividade conseguirão
sobreviver nos próximos anos… algumas delas fantásticas, como os Danú ou os
Lúnasa. Mas vai ser difícil. Se conseguirem ultrapassar os primeiros cinco anos
e gravarem pelo menos três álbuns, então assim, talvez consigam… Mas há quem
fique cego ao tocar para grandes audiências. Depois há as contas para pagar.
Não chega ser-se bom músico, também é preciso tratar dos negócios. Os Bothy
Band ou os Planxty não ganharam um “penny” enquanto existiram! Por outro lado,
quando se assina por uma grande editora, surgem pressões, como aconteceu com os
Altan.
P. – É possível a uma banda como os Dervish
sobreviver sem sair do circuito da Irlanda e entrar no circuito europeu?
R. – Não como
uma banda. Pode fazer-se carreira mas apenas como músico de sessões. Uma banda
não tem qualquer hipótese. Nós podemos dar 150 concertos por ano e apenas dois
ou três são na Irlanda. Embora haja hoje mais dinheiro na Irlanda do que havia
antes, escasseiam as salas de concertos e há uma falta de interesse. Para a
maioria das pessoas não faz sentido pagar para ver uma banda tocar numa sala de
concertos se pode ouvir esta música de graça num “pub”. Não veem a diferença
entre o músico que toca à esquina da rua e a banda que atua num auditório – é
tudo “deedle-didle-dee” [fonética aproximada…]. É uma pena, porque algumas
dessas pessoas, que se “arriscam” a pagar bilhete para nos ver atuar numa sala,
ficaram espantadas e deliciadas com o poder e a energia, com algo a que nunca
assistiram antes.
P. – “Midsummer’s Night” é um álbum
“clássico”. Não a preocupa que o grande público, para quem a música irlandesa
não passa de uma moda, possa perder o interesse pelo grupo, até porque os
Dervish não condescendem em alterações radicais da sonoridade?
R. – “Midsummer’s
Night” foi o primeiro álbum que gravámos com a formação atual de sete músicos,
o que aumentou o leque de opções dos arranjos. As possibilidades tornaram-se
infinitas. Temos uma base de dados com o nome de cerca de 15 mil fãs, de todo o
mundo. É claro que as pessoas que compram os nossos álbuns à espera de ouvir
rock abandonarão de imediato o grupo. Mas se o nosso objetivo principal fosse
agradar às grandes audiências nunca teríamos optado por tocar música
tradicional! É verdade que existe hoje uma moda mas nós já cá estávamos antes
dela aparecer e tudo aponta para que continuemos depois de desaparecer.
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