28 de Julho 2000
REEDIÇÕES
Scott,
o explorador
Raymond Scott
Manhattan Research Inc. (10/10)
2xCD
Basta, distri. Ananana
Peter
Buck, dos R.E.M., Adrian Utley, dos Portishead, Cornelius, Y. Konishi, dos
Pizzicato Five, Holhger Czukay, Eric Harris, dos Olivia Tremor Control, Matt
Black, dos Coldcut, e John Zorn contam-se entre os músicos que ficaram de cara
à banda ao ouvirem “Manhattan Research Inc.”. Conhecido sobretudo pelo seu
trabalho na área do jazz, através das gravações dos anos 30 e 40 com o seu
Quintette, recentemente recriadas de forma admirável pela banda holandesa The
Beau Hunks, Raymond Scott desenvolveu a partir da década seguinte um trabalho
notável no domínio da criação tecnológica, composição e execução de música
eletrónica.
Se
“Soothing Sounds for Baby”, uma trilogia de música eletrónica destinada a
crianças “Kraftwerk for kiddies”, como alguém lhe chamou) revelava já uma mente
fervilhante e uma atitude pouco convencional na abordagem desta área musical, a
presente antologia confirma o seu autor como um génio excêntrico e um criador
visionário que – percebe-se agora com toda a nitidez – antecipou em quase meio
século correntes como o pós-rock ou as “funny electronics” de bandas como os
Messer Fur Frau Muller e Nova Huta.
“Manhattan
Research Inc.” era o nome de um imenso estúdio espalhado por 32 divisões (“um
labirinto eletrónico”, nas palavras de Alan D. Haas, da revista “Popular
Electronics”) onde Raymond Scott dava livre curso à sua criatividade delirante.
“Mais do que uma fábrica de pensamento, uma central de sonhos onde a excitação
do amanhã se encontra disponível já hoje”, como o compositor se lhe referia.
Foi neste complexo de aparência e conteúdo futuristas que Scott desenvolveu e
utilizou de forma brilhante instrumentos por ele próprio inventados, como o
“Clavivox”, a “Circle Machine”, o “Bass Line Generator”, o “Rhythm Modulator” e
o mítico “Electronium” (a “máquina de composição instantânea”), mas também o
“Karloff” (onde elaborava os sons mais assustadores…) e… o “Bandito the Bongo
Artist”.
Com
estas máquinas, o seu humor e o seu talento desmesurado construiu Raymond Scott
uma obra diversificada e inclassificável, que aqui se reúne pela primeira vez
em disco, num conjunto de 69 composições que vão 1953 a 1969. Desde jingles
publicitários (Nescafé, Vicks, Sprite, Companhia de Gás e Eletricidade de
Baltimore, IBM, etc.), a música para desenhos animados (“County fair”, de 1962,
na verdade o único tema composto por Scott para “cartoons”, embora as pessoas o
associem a este tipo de cinema e a sua música tenha, sem dúvida, sido
aproveitada por Carl Stalling, compositor oficial dos “cartoons” de Tex Avery
para a Warner Bros…) ou ainda a banda sonora da instalação “Futurama”
construída e idealizada pela General Motors para a Feira Mundial da Nova Iorque
de 1964, a par de composições mais conceptuais que abrangem a pop sintética,
música industrial e colaborações com Jim Henson, criador dos Marretas.
A
apresentação é admirável e inclui um livro de 144 páginas onde pode ser lida
uma entrevista com Robert Moog, inventor do sintetizador com o seu nome que fez
furor nos anos 70. Moog não hesita em declarar que Scott esteve “na vanguarda
do desenvolvimento da tecnologia e do seu uso comercial em termos musicais”.
Fotos inéditas, planos do estúdio/laboratório e registos de patente são outros
dos itens incluídos no livro.
A
emoção imediata provocada pela primeira audição de “Manhattan Research Inc.” é
o espanto. Por verificar a incrível atualidade e modernidade não só dos sons
com da música de Raymond Scott. Um tema como “Bendix 1: the tomorrow people”
revela num ápice a fonte, então obscura, onde os Negativland foram buscar
inspiração. E os Stereolab já não podem de igual forma esconder que ouviram a
música do compositor norte-americano e – com base em peças desta antologia como
“Backwars overload”, “The rhythm modulator”, “Cindy electronium” ou “The pygmy
táxi corporation” – qual o compêndio onde foram buscar os títulos para as suas
canções.
“The
rhythm modulator” transforma o estúdio inteiro num gigantesco maquinismo de
relojoaria. Robert Moog ficou siderado quando ouviu. “Lightworks” é “Música no
Coração” misturada com “lounge” do séc. XXI. Os eletrotropicalismos de Atom
Heart são ofuscados por “Vim”, “Sprite” faz borbulhas num cenário da era espacial.
“Limbo: The organized mind” utiliza música concreta na recriação da atmosfera
de um filme negro transposta para um enredo alucinatório que descreve o modo de
funcionamento do cérebro de Limbo, a personagem principal, com as suas
fantasias, memórias e medos. Filme realizado e aqui com a narração de Jim
Henson.
Os
Residents não fariam melhor.
Descobrem-se
em “Manhattan Research Inc.” “easy-listening” assobiado no tapete da Via
Láctea, uma assombrosa sinfonia eletro-industrial, “IBM MT/ST: The paperwok
explosion” (os Negativland fizeram anos mais tarde explodir as suas próprias
bombas em “Car bomb”, do álbum “Escape from Noise”, por sinal acabado de
reeditar pela Seeland, com uma nova capa e uma gravação, “exacto-mastered”,
exatamente igual à da anterior reedição na SST…), melodias e efeitos
eletrónicos que deixam os Kraftwerk de rastos e uma coisa assustadoramente
experimental, se pensarmos que foi feita em 1968, intitulada “Backwards
overload” que pretende ser o equivalente eletrónico de uma guerra nuclear!
“Night and day”, de Cole Porter, renasce sob a forma de pop eletrónica.
O
segundo CD, com composições mais recentes dos anos 60, é mais melódico e,
nalguns casos, “romântico”, com uma utilização sistemática dos ritmos
eletrónicos, elaborados noutro aparelho inventado por Scott cujas capacidades
em nada ficavam a dever aos atuais sequenciadores. Emulações da “música
clássica em sintetizador” de Walter Carlos, mas “easy listening” da era
espacial (“Portofino”). O “esmagamento” dos Kraftwerk dos dois primeiros álbuns
confirma-se em “The wild piece”, de 1969, outra peça de inacreditável
originalidade produzida na íntegra no Electronium.
A
“dark ambient” emerge em “Cyclic bit”. “Ripples”, de 1966, bate aos pontos os
To Rococo Rot. Uma segunda versão de “County fair” e “Cindy electronium”
destroem o mito do pioneirismo de “Zuckerzeit” dos Cluster. Ouvir para crer!
Mas
quaisquer definições e comparações ficam aquém do que “Manhattan Research Inc.”
realmente é e representa: uma obra visionária onde se inscrevem praticamente
todas as tendências do presente e a consagração definitiva de um dos génios da
música eletrónica deste século.
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