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25/08/2016

Cada um é como cada qual [Kristen Noguès e Déanta no Intercéltico do Porto]

PÚBLICO
cultura SEGUNDA 28 MARÇO 1994

Bretões e irlandeses juntos no Intercéltico

Cada um é como cada qual

Exercícios de academismo vindos da Bretanha e uma promessa de futuro trazida por um grupo de mulheres da Irlanda marcaram o terceiro dia do Intercéltico que desde a passada quinta-feira tem vindo a decorrer na cidade do Porto. Kristen Noguès, bretã, e Deirdre Havlin, irlandesa, foram as revelações.

As mulheres continuam a dar cartas na quinta edição do festival Intercéltico, ou não fosse a edição deste ano dedicada à música tradicional no feminino. Sábado, com o cinema do Terço a abarrotar, coube a Kristen Noguès, uma veterana da harpa céltica mas praticamente desconhecida entre nós, salvar um concerto que teve mais a ver com o jazz do que com a folk, céltica ou não. O que até não seria grave se o trio de músicos acompanhantes, os famosos irmãos Molard, dos Gwerz, e o guitarrista Jacques Pellen não tivessem incorrido no pecado mortal do academismo, o que veio a acontecer e que, seja no jazz, seja na tradicional, costuma por regra ser fatal.
            Sozinha na harpa deu gosto ouvir Kristen Noguès, o modo como interligou os acordes da tradição com desvios pela contemporaneidade e a improvisação. Jacky e Patrick Molard e Jacques Pellen não a souberam acompanhar. Encharcada numa complexidade formal que deu pouco espaço à espontaneidade, cedo a música começou a soar demasiado pesada aos ouvidos de parte da assistência que preferiu seguir para o conforto do bar. Jacky deu a ideia de estar enfiado num espartilho. Patrick atingiu os limites da estridência na “cornemuse” e deu razão àqueles para quem as “uillean pipes” deveriam ser vedadas a todos à exceção dos irlandeses. Pellen pertence a outro universo e pareceu sempre um intruso. A boa música não se compadece com virtuosismos vazios de força e sentimento. Que o digam os Muzsikas e a lição que deram na véspera. No “encore” chegou a ser penoso assistir aos esforços e caretas de desaprovação e desespero da harpista, num afã de mudança de chaves a tentar, sem sucesso, encontrar o tom certo que afinasse com o gemido perfeitamente dispensável do bordão da gaita de Patrick Molard. Enfim, receberam muitas palmas...
            Da Irlanda, as Déanta, cinco mulheres contra as quais nada pôde o único homem da banda, Eóghan O’Brien, confirmaram que, por ora, são uma boa promessa e que o futuro da música tradicional da ilha deverá contra com elas. Têm para já em Deirdre Havlin uma boa flautista e tocadora de “tin whistle” (inovadora a forma fora dos cânones habituais como executa os “reels” e “airs” neste instrumento) e uma boa voz – que foi amaciando e ganhando segurança ao longo do concerto – na pessoa de Mary Dillon. Bem dispostos, eficazes quanto baste, tendo em Clódagh Warnock uma excelente e bem-humorada porta-voz, os Déanta foram bons embaixadores do seu país. Não fizeram grandes avarias nem tal se lhes pede por enquanto.
            Depois, foi rumar até um recanto dos jardins do hotel acastelado onde os Déanta se juntaram aos seus vizinhos de Sligo, Dervish, e a Jacky Molard para uma “jam session” de álcool e o mais que geralmente acontece quando vários irlandeses se juntam em redor de uma mesa com os instrumentos e, neste caso, dezenas de latas de cerveja em cima.
            Tiveram pouco tempo para isso. A fação ibérica, comandada por Amélia Muge e Uxia, entrou em disputa e a matar, com o adufe e a pandeireta a abafarem tudo o que fosse subtileza, acabando a madrugada em decadência acelerada do popular ao popularucho mais chão, perante o gaúdio dos irlandeses que devem ter ficado impressionados com o proverbial tato nacional. Com Jacky Molard enchouriçado e muito bem bebido no meio do arraial lusitano e em processo acelerado de regressão à pré-história do violino, a festa foi portuguesa até ao fim. Nós cá somos assim! É para que vejam!