PÚBLICO
cultura SEGUNDA 28
MARÇO 1994
Bretões
e irlandeses juntos no Intercéltico
Cada um é
como cada qual
Exercícios de academismo vindos da Bretanha e uma promessa de futuro
trazida por um grupo de mulheres da Irlanda marcaram o terceiro dia do Intercéltico
que desde a passada quinta-feira tem vindo a decorrer na cidade do Porto.
Kristen Noguès, bretã, e Deirdre Havlin, irlandesa, foram as revelações.
As mulheres continuam a dar
cartas na quinta edição do festival Intercéltico, ou não fosse a edição deste
ano dedicada à música tradicional no feminino. Sábado, com o cinema do Terço a
abarrotar, coube a Kristen Noguès, uma veterana da harpa céltica mas
praticamente desconhecida entre nós, salvar um concerto que teve mais a ver com
o jazz do que com a folk, céltica ou não. O que até não seria grave se o trio
de músicos acompanhantes, os famosos irmãos Molard, dos Gwerz, e o guitarrista
Jacques Pellen não tivessem incorrido no pecado mortal do academismo, o que
veio a acontecer e que, seja no jazz, seja na tradicional, costuma por regra
ser fatal.
Sozinha
na harpa deu gosto ouvir Kristen Noguès, o modo como interligou os acordes da
tradição com desvios pela contemporaneidade e a improvisação. Jacky e Patrick
Molard e Jacques Pellen não a souberam acompanhar. Encharcada numa complexidade
formal que deu pouco espaço à espontaneidade, cedo a música começou a soar
demasiado pesada aos ouvidos de parte da assistência que preferiu seguir para o
conforto do bar. Jacky deu a ideia de estar enfiado num espartilho. Patrick
atingiu os limites da estridência na “cornemuse” e deu razão àqueles para quem
as “uillean pipes” deveriam ser vedadas a todos à exceção dos irlandeses.
Pellen pertence a outro universo e pareceu sempre um intruso. A boa música não
se compadece com virtuosismos vazios de força e sentimento. Que o digam os
Muzsikas e a lição que deram na véspera. No “encore” chegou a ser penoso
assistir aos esforços e caretas de desaprovação e desespero da harpista, num
afã de mudança de chaves a tentar, sem sucesso, encontrar o tom certo que
afinasse com o gemido perfeitamente dispensável do bordão da gaita de Patrick
Molard. Enfim, receberam muitas palmas...
Da
Irlanda, as Déanta, cinco mulheres contra as quais nada pôde o único homem da
banda, Eóghan O’Brien, confirmaram que, por ora, são uma boa promessa e que o
futuro da música tradicional da ilha deverá contra com elas. Têm para já em
Deirdre Havlin uma boa flautista e tocadora de “tin whistle” (inovadora a forma
fora dos cânones habituais como executa os “reels” e “airs” neste instrumento)
e uma boa voz – que foi amaciando e ganhando segurança ao longo do concerto –
na pessoa de Mary Dillon. Bem dispostos, eficazes quanto baste, tendo em
Clódagh Warnock uma excelente e bem-humorada porta-voz, os Déanta foram bons embaixadores
do seu país. Não fizeram grandes avarias nem tal se lhes pede por enquanto.
Depois,
foi rumar até um recanto dos jardins do hotel acastelado onde os Déanta se
juntaram aos seus vizinhos de Sligo, Dervish, e a Jacky Molard para uma “jam
session” de álcool e o mais que geralmente acontece quando vários irlandeses se
juntam em redor de uma mesa com os instrumentos e, neste caso, dezenas de latas
de cerveja em cima.
Tiveram
pouco tempo para isso. A fação ibérica, comandada por Amélia Muge e Uxia, entrou
em disputa e a matar, com o adufe e a pandeireta a abafarem tudo o que fosse
subtileza, acabando a madrugada em decadência acelerada do popular ao
popularucho mais chão, perante o gaúdio dos irlandeses que devem ter ficado
impressionados com o proverbial tato nacional. Com Jacky Molard enchouriçado e
muito bem bebido no meio do arraial lusitano e em processo acelerado de
regressão à pré-história do violino, a festa foi portuguesa até ao fim. Nós cá
somos assim! É para que vejam!