25/02/2019

Requiem pela dama de negro [Nico]


13|JUNHO|2003 Y
ciclo|cinema


requiem pela dama de negro

Warhol viu nela o escândalo. Garrel a beleza da tragédia. Nico passou pela vida e pela obra de ambos da mesma maneira que a sua música marcou os Velvet Underground e deixou cicatrizes dentro de cada um de nós. Não se adora a lua impunemente. Para adorar, na Cinemateca, este mês.

Nico, cantora e atriz – diz o mini-ciclo na Cinemateca Portuguesa. Nico, mulher fatal. Philippe Garrel, cineasta. Ele afirmou um dia que fazia filmes para não se suicidar. Ela tomava comprimidos para dormir, comprimidos para acordar e comprimidos para viver. Costumava desfalecer sem razão aparente. Estavam destinados a encontrar-se e a viver um com o outro. Assim aconteceu até ao dia em que ela morreu, a 18 de Julho de 1988, às oito horas da noite, no hospital de Nisto, em Cannes, aos 50 anos, vítima de uma hemorragia cerebral provocada por uma queda de bicicleta, ao esbarrar contra uma árvore quando dava um passeio por Ibiza.
            Ele nunca se conseguiu libertar do fantasma e continua a filmar como se ela continuasse presente – a esfinge. A deusa da lua, como lhe chamavam. Nico e Philippe Garrel. Como antes tinham sido Nico e Fellini, Nico e Brian Jones, Nico e Alain Delon, Nico e Bob Dylan, Nico e Andy Warhol, Nico e Lou Reed e John Cale, Nico e Jackson Browne. Nico e Warhol é igual a Chelsea Girls (vai ser exibido no dia 18, às 21h30). Nico e Garrel é igual a La Cicatrice Intérieure (dia 25, às 21h30) e a Les Hautes Solitudes (dia 26, às 21h30).
            Nico e a morte. Morte que cada um podia ver a brilhar nos seus olhos azuis de cristal, na sua voz de mármore, na sua música de orgasmos gelados. Nico foi a lápide erigida ao rock dos anos 60 que sobreviveu pela década seguinte como uma máscara de cera mantida viva artificialmente por alguns dos homens que a veneraram como se venera a noite. John Cale, produtor de álbuns como “The End” e “Drama of Exile”, que fez dela a diva petrificada da new wave, do gótico e da eletrónica zombie. E Garrel, claro, que com ela viveu, com ela enlouqueceu e com ela filmou “La Cicatrice Intérieure” (1972), “Athanor” (1972), “Les Hautes Solitudes” (1974), “Un Ange Passe” (1975), “Le Berceau de Cristal” (1976), “Voyage au Jardin des Morts” (1978), “Le Bleu des Origines” (1979) e, já como presença fantasmática, post-mortem, “J’Entends plus la Guitarre” (1991) ou “Sauvage Innocence” (2001).

            serei o teu espelho. E, no entanto, Nico era outra. Quem, não se sabe. Não se soube nunca. Apenas que era loura mas que ficou imortalizada como morena, cor mais adequada às feiticeiras. Ou “another cooler Dietrich for another cooler generation”, como alguém a caracterizou, adivinhando-lhe o carisma de mulher fatal, sem saber até que ponto este “fatal” seria levado à letra. Apenas que não se chamava Nico mas Christa Päffgen (foi um fotógrafo que, aos 15 anos, em Ibiza, lhe pôs este nome, em homenagem a uma namorada morta, Nico Papatakis, a morte, sempre a morte). Apenas que não era cantora mas que a sua voz, vinda sabe-se lá de que abismos do ser, não teve paralelo em nenhuma outra intérprete da música popular. Apenas que não era música mas que a música que nos deixou, composta embora por outros, nos arrepia. Como um romance de Lovecraft em que uma personagem louca desenterra o “Necronomicon” para insuflar vida aos mortos.
            Nico foi, acima de tudo, uma personagem. Um molde. Um silêncio adequado à construção do mito. Com “Bitter dreams are made of this” afixado em cartaz.
            Garrel fez dela uma presença (ou uma ausência) de luz negra, personificação daquela eternidade que os poetas românticos Holderlin e Novalis encaravam como a dissolução final nas trevas, na grande noite universal, mãe dos sonhos e das quimeras. Em “Le Bercaeu de Cristal” a única voz que se ouve é a dela, declamando um poema, sobre a música do guitarrista Manuel Gottsching, dos Ash Ra Tempel (a BSO está disponível em CD numa belíssima edição da Spalax), designação então já encurtada para Ashra, de cuja formação fazia parte, precisamente, Lutz Ulbricht, amigo e empresário da cantora e antigo elemento do grupo de “krautrock”, Agitation Free.
            Podemos encadear algumas peças soltas. O que Gottsching/Ashra compõe é um mantra de sonoridades cósmicas que, progressivamente, coloca o espectador em transe, num cume mental a que o final do filme põe termo de forma abrupta, como uma ressaca instantânea.
            São as “altas solidões” de que Nietzsche fala na sua obra poético-filosófica e são deste filme as imagens que ilustram a capa de “The End...”, álbum de 1974, com produção de John Cale, de cujo alinhamento faz parte uma versão, ainda mais agonizante que o original, de “The end”, de Jim Morrison que, por sua vez, travou conhecimento com a germânica em moldes que a câmara de Oliver Stone filmou – em “The Doors- O Mito de uma Geração”, biografia ficcionada dos The Doors – de forma pouco católica, elipse que subentende uma sessão de sexo oral entre os dois, num elevador. Dificilmente representável como ícone sexual ou erótico, independentemente das sugestões de necrofilia que a sua figura pode induzir (há quem jure ter visto o seu rosto transformar-se numa caveira, durante um concerto realizado numa catedral em França nos anos 70) restava, ainda neste caso, a representação pela ausência ou pela redução à sexualidade despojada de qualquer sentimento. Nico, ainda e sempre, a pedra tumular sob a qual se escondem segredos insondáveis.

            a vida amarga. Christina Päffgen, ou Päfgens, ou Pfäffen, nasceu em Budapeste, em 1938, filha de mãe espanhola e pai jugoslavo (morto num campo de concentração nazi). Começou por ser costureira e, aos 13 anos, vendeu “lingerie”. Um ano mais tarde já trabalhava como modelo em Berlim. Participou pela primeira vez como atriz numa cena, filmada em Capri, de “For the First Time”, de Rudolph Maté, com Mario Lanza. Conheceu Ibiza e por lá ficou. A lua buscando a proteção do sol.
            De férias, em 1959, num “palazzo” em Roma, um amigo convidou-a para figuração em “La Dolce Vita”, de Fellini. Passeou-se no “plateau” com um candelabro nas mãos, numa festa. O realizador reparou nela (quem não repararia?) e convidou-a para participar no filme. Nascia o mito.
            Depois de assistir a aulas de representação no Actor’s Studio, de Nova Iorque, na mesma classe de Marilyn, conseguiu um dos principais papéis em “Strip-Tease”, de Jacques Poitrenaud. Gravou com Serge Gainsbourg o título-tema mas o single não foi editado, surgindo em seu lugar uma outra versão, por Juliette Gréco.
            Em 1964 conheceu Brian Jones, dos Stones, que a apresentou a Andrew Loog Oldham, então produtor do grupo. Gravou para o selo Immediate o single “I’m not sayin’”, composição de Gordon Lightfoot, com o guitarrista Jimmy Page, que se viria a notabilizar nos Led Zeppelin, e produção de Oldham.
            Uma relação amorosa com o ator Alain Delon, da qual nasceu um filho, Ari (há uma canção dedicada a ele, em “The Marble Index”) antecipou outro encontro, desta feita com Bob Dylan, que lhe ofereceu “I’ll keep it with mine” (mais tarde incluída no álbum de estreia da cantora, “Chelsea Girl”) e lhe dedicou “Visions of Johanna”, do álbum “Blonde on Blonde”. É Dylan quem, por intermédio do poeta Gérard Malanga, a conduziu à boca do lobo e da glória, Andy Warhol, que a convocou para participar nos seus filmes experimentais, como “The Chelsea Girls” (1966, mítico jogo de bobines intermutáveis das quais a cantora alemã protagoniza as marcadas com número de série 1, “Nico in kitchen”, e 12, “Nico crying”), “Screen Tests” (1964-66), “The Velvet Underground & Nico (A Symphony of Sound” (1966), “I, a Man” (1967, este com assinatura, na realização, de Paul Morrisey) ou “Imitation of Christ”.
            A sua vontade de fazer carreira como cantora, leva Warhol a integrá-la no espetáculo multimédia Exploding Plastic Inevitable e, consequentemente, nas gravações do mítico “álbum da banana” dos Velvet Underground, onde vocaliza três memoráveis composições de Lou Reed, “Femme fatale”, “All tomorrow’s parties” e “I’ll be your mirror”. Ao vivo, canta em clubes como o Blue Angel, acompanhada, além de Reed, Cale e Sterling Morrison, por futuros ilustres como Tim Hardin, Tim Buckley e Jackson Browne, com quem manterá uma curta relação e que lhe oferece as canções “These days” e “The fairest of the seasons”, ambas incluídas no disco solo de estreia.
            Mas os Velvet, no meio de disputas entre Cale e Reed provocadas pelo ciúme, não suportam a pressão de se verem ofuscados pelo brilho da estátua e despedem-na. É Cale, porém, quem relança a sua carreira a solo, ao produzir “The End...” (1974), já depois da cantora ter lançado em 1969 o que poderá ser considerado a sua obra-prima, “The Marble Index”, seguido do surreal “Desertshore” (1970), em cuja fotografia da capa se pode ver Nico numa cena do filme de Garrel, “La Cicatrice Intérieure”, que se estrearia dois anos mais tarde.

            o abandono. Após um interregno de sete anos, durante os quais assombra os palcos na companhia do seu “harmonium” (a sua imagem, de pé, hirta, atrás deste instrumento, é um dos primeiros paradigmas gráficos do “gótico”), do álcool e da heroína, compondo dedicatórias aos amigos mortos, reaparece com “Drama of Exile” (1981), já aureolada com o estatuto de “punk goddess”, concluindo-se a sua discografia a solo com “Camera Obscura” (1985), tentativa de reciclagem, novamente a cargo de John Cale, destinada a apresentá-la num novo formato eletrónico. Além destes álbuns, circulam no mercado quantidades consideráveis de “bootlegs”, coletâneas e arquivos ao vivo. Faltava esperar pelo fim.
            “Ibiza é o meu local favorito, é lá que hei-de morrer”, afirmou numa entrevista. O destino e uma árvore, contra a qual esbarrou durante o tal passeio fatídico de bicicleta, fizeram-lhe a vontade. Ela que também dissera: “Tenho o hábito de abandonar os sítios nas alturas erradas, precisamente quando algo de bom está prestes a acontecer-me”.
            O seu corpo repousa ao lado do de sua mãe, num cemitério na floresta de Grunewald, numa das margens do rio Wannsee, em Berlim. Pode lá ir-se, num velho autocarro que parte de hora a hora da estação de metro de Wannsee. De Inverno o cemitério fecha cedo. Conta-se que, durante o enterro, um grupo de amigos tocava “Desertshore” num gravador de cassetes. Quase juraríamos que a faixa final, “Le petit chevalier”. Onde Nico é conduzida pela voz de uma criança.

Daniel Lanois - Shine


Y 13|JUNHO|2003
roteiro|discos

DANIEL LANOIS
Shine
Anti, distri. Compact Records
6|10

Pop ambiental. Pop feita com mil cuidados na cozinha, isto é, no estúdio. Daniel Lanois é uma espécie de Brian Eno sem o génio. Como Eno, produziu os U2, mas também Peter Gabriel ou Dylan. Também como Eno, decidiu a dada altura assinar ele próprio os discos. “Shine” vale, como os anteriores, pelo som. Quanto às canções, fica a sensação de terem resultado de fórmulas previamente ensaiadas até atingirem o ponto em que não provocam nem repulsa nem paixões. “I love you” é uma mistura de Velvet com U2 que conta com a voz de Emmylou Harris e, logo a seguir, “Falling at your feet” lança-nos à cara Bono como convidado. Já “As tears roll by” envereda pelo registo dos primeiros discos de canções de Eno. Sem o génio. Lanois tem, contudo, a noção da melodia, da coloração e do espaço. Que povoa com slide guitars (“Transmitters” e “JJ leaves LA” soam tão bem como Ry Cooder ou B. J. Cole), a solidão do “bayou”, algo de Badalamenti em “Matador”, respirações pausadas, o ar frio de uma noite sinalizada pelo canto dos grilos e transmissões de rádio fantasma. “Shine” brilha com uma chama azul.

Dead Can Dance - Wake


Y 13|JUNHO|2003
roteiro|discos

DEAD CAN DANCE
Wake
4AD, distri. MVM
7|10

Aos Dead Can Dance se deve o enobrecimento do “gótico”, que em grupos como os The Cult ou Bauhaus era sinónimo de vampiros amantes de “rock”, cruzes e olheiras. Os Dead Can Dance cobriram-no com o manto dourado da realeza, em “Dead Can Dance” (84), “Spleen and Ideal” (85) e “Within the Realm of a Dying Sun” (87), contraponto pop de uma estética marcada por tons mais carregados em nomes como Brian Lustmord ou The Zone. Aion”, de 90, é o corolário do aprofundamento do “gótico”, através da apropriação da música antiga de teor erudito. Na fase mais recente os Dead Can Dance incorporaram elementos da “world music”, como em “Spiritchaser”, ganhando em universalidade o que perderam no apelo inicial de banda de culto para rituais pagãos. A antologia “Wake”, reduzindo a dois CDs a caixa de 4, “Limited Box Set”, editada em 2001, acompanha esta evolução, na altura em que também o vídeo “Toward the Within” (antes apenas disponível na mesma caixa) é editado em separado, em formato PAL. O DVD reúne, além das imagens dos concertos de 93 no Mayfair Theatre, Santa Monica, cinco temas-extra não incluídos no vídeo original.

Migso - 002


Y 13|JUNHO|2003
roteiro|discos

MIGUEL SOARES
Miguel Soares
Variz, distri. Matéria Prima
8|10

Ora até que enfim um disco de eletrónica com sentido de humor e vistas largas. Miguel Soares, como Kubik ou os Mola Dudle, inclui-se na categoria dos músicos para quem as máquinas servem como cornucópia de onde devem brotar doces, sonhos, criaturas, novas terras, chocolates, fantasmas e tudo o que a imaginação conseguir. O sintetizador, o sampler e o computador são filtros de uma realidade alternativa que passa por uma visão pessoal e por uma procura de sínteses, devedora ainda do excelente trabalho na produção dos The Producers. Fica logo patente na abertura, “Trio”, que Miguel Soares vê mais longe que os falsos demiurgos que esgotam as encomendas de programas de composição. Aqui, o jazz é matéria virtual para escavações que trazem à baila uma das obras-primas da eletrónica da geração de 80, “Insect Culture”, dos Popular Mechanics. Depois, as vozes em “loop” ou da TV, as batidas e melodias inusitadas e a integração/manipulação de elementos musicais como maquinismos de corda, badaladas fora de fase, fanfarras e geometrias ilusórias transportam uma quantidade de ideias e soluções originais e excitantes acima da média. Além de que títulos como “Beer canal”, “Sparky”, “Warp reactor” ou “Buzz Aldrin” estão ao nível dos Negativland.



Partidas e chegadas [Vandermark 5]


7 JUNHO 2003
JAZZ
DISCOS

Ken Vandermark recria clássicos do free e ilumina a pista de aterragem do aeroporto do jazz. No selo português Clean Feed as novas aeronaves funcionam a bateria.

Partidas e chegadas


Ken Vandermark é um músico notável e um dos expoentes da nova geração de saxofonistas. Como todos os grandes músicos, com força, uma voz própria e “afinada” e um conhecimento profundo do passado, só assim se tornando lícito romper e inovar sobre esse mesmo passado. Parentescos espirituais? Evan Parker, Braxton, Dolphy... Mas sempre com o rosto de Vandermark, inventor portentoso, vendaval de ideias e de energia. “Airports for Light” (2002), assinado pelo coletivo Vandermark 5 – Jeb Bishop (trombone), Jim Daisy (bateria), Kent Kessler (baixo), Dave Rempis (saxofones) –, compõe-se de nove dedicatórias. A Gerhard Richter, John Cassavetes, Fredrik Ljungkvist, Rahsan Roland Kirk, Budd Johnson, Jean Tinguely, Curtis Mayfield, Otis Redding e Sonny Rollins. Um segundo CD tem a preenchê-lo unicamente temas de Sonny Rollins.
            O som sabe e cheira a Chicago, onde Vandermark se estabeleceu e tem feito escola nos últimos anos. Junta em doses exatas o esquematismo hermético-matemático de Braxton, o fluxo sanguíneo de Parker, o palimpsesto de discursos sobrepostos de Dolphy. Mas Vandermark confronta-nos com um poder que é só seu, impulsionando o grupo para uma música cheia, como que criada por uma “big band” inteira. Sobranceiros, os três sopros interligam-se num constante maquinismo produtor de soluções musicais que a cada momento surpreendem. Entre o “bas fond” do pós-jazz de Chicago, o “blues” em figurações cubistas, o “hard bop” futurista e o “free” mais solitário e estratosférico (“Initials” é um solo ou uma explosão nuclear?), Ken Vandermark faz o que quer, com o desplante dos génios. Uma locomotiva, uma fortaleza voadora, um coro de reatores, um combate de boxe, um jardim de flores canibais são imagens a que a luz dá forma. Difícil é, depois de a receber, deixá-la de novo levantar voo do aeroporto. Luz que de outra forma se derrama sobre o disco com temas de Rollins. Anotam-se as diferenças em relação ao autor de “Freedom Suite”: a velocidade de pensamento, o timbre, o fraseado e a colocação são adaptados mais do que recriados por Vandermark, capaz, no entanto de fazer ressaltar o que de excitante permeia clássicos como “East Broadway rundown”, “Alfi e” e a já citada “Freedom Suite”, aqui retomada através de um excerto.
            Teoricamente mais ambiciosa é a obra gravada pelo mesmo grupo em 2001, o duplo “Free Jazz Classics, Vol. 1&2” preenchido por versões de temas de Ornette Coleman, Anthony Braxton, Cecil Taylor, Joe McPhee, Sun Ra, Eric Dolphy, Lester Bowie, Archie Shepp, Carla Bley, Frank Wright, Jimmy Giuffre, Julius Hemphill e Don Cherry. Admira-se a coragem necessária para arriscar tal empreendimento, mais ainda por se tratar de uma gravação ao vivo. Os nomes escolhidos são (talvez à exceção de Frank Wright...) avatares, não só do “free jazz”, como da música improvisada e do jazz contemporâneo em geral. Qualquer deles genial, tirando Wright e, vá lá, Lester Bowie... Percorrer de uma assentada caminhos, tão brilhantes como árduos, como estes, ou é pretensão megalómana ou de alguém com absoluta confiança nas suas capacidades, incluindo as de camaleão. O tal conhecimento de que falávamos no início é exigido aqui de uma maneira quase violenta mas Vandermark e os seus companheiros entregam-se à tarefa sem medo e, sobretudo, sem preconceitos. A música, como seria de esperar, move-se dentro de parâmetros mais balizados que os de “Airports for Light”, o que não deixa de ser paradoxal num disco de “free jazz”. Mas, e será esta a maior lição a tirar de “Free Jazz Classics”, o que Vandermark põe em relevo é precisamente uma escrita (daí os “clássicos”) do “free” que, amiúde, sai obscurecida pela vertente expressionista do “género”, não sendo então, inocente, a escolha destes músicos, e não outros, que além de portentosos executantes foram ou são grandes compositores. “Free Jazz classics” é grande jazz de ginásio.

VANDENMARK 5
Airports for Light
2xCD Atavistic
9 | 10
Free Jazz Classics
2xCD Atavistic
8 | 10
distri. Ananana

15/02/2019

Combate com a guitarra [Ricardo Rocha]


Y 6|JUNHO|2003
música|ricardo rocha

Junta-se ao grupo dos mestres da guitarra portuguesa. O disco aproxima-nos de algo que não se diz em palavras mas se sente como nostalgia do paraíso perdido.

combate com a guitarra

            Com “Voluptuária”, Ricardo Rocha, 28 anos, expõe uma nova conceção musical para a guitarra portuguesa que vai do minimalismo à música de câmara, passando pelo ambientalismo e por uma perspetiva original sobre Carlos Paredes.
            O neto de Fontes Rocha refuta o virtuosismo, impossível de obter num instrumento que considera “limitado”, mas a verdade é que este duplo álbum com que agora se estreia a solo, “Voluptuária”, materializa essa noção de “benfeitoria” que consiste em tornar o Belo amável. Ou, como se pode ler no texto que acompanha esta edição, “há diletantismo do benfeitor, com o objetivo de deleitar-se ou recrear-se, haja vista que o bem principal a que se junta uma benfeitoria a dispensa, pelo aspeto utilitário ou funcional, mas fica mais formoso ou recreador”.
            Além de Carlos Paredes, “Voluptuária” inclui temas de Pedro Caldeira Cabral e composições próprias, fazendo sobressair uma originalidade que é, afinal, e segundo o seu autor, o que de verdadeiramente “genial” pode existir nesta luta mais do que contra com a guitarra portuguesa. Volúpia ou pesadelo?

            Na capa do disco pode ler-se: “Voluptuária” “não se explica, não se descreve, não se define”. Mesmo assim, tente lá uma explicação...
            A primeira parte do disco é menos acessível. O segundo disco, sem ser totalmente a solo, é mais leve e colorido. Ou menos escuro. Mais para o azul-escuro... As peças para cravo e violino têm a mesma tonalidade.
            O seu nome já era conhecido a partir de participações em discos de Carlos do Carmo, Janita Salomé, Sérgio Godinho, Vitorino ou Mafalda Arnauth. Agora estreia-se a solo com um duplo. Que circunstâncias propiciaram que fosse assim?
            Em parte foi pelo local de gravação, o Convento dos Capuchos, um sítio magnífico. Depois, não houve aquele compromisso burocrático com as editoras, contratos, essas coisas horríveis... E já tinha bastantes peças feitas. Ia para lá uma vez por semana, ao fim da tarde, e ficava até à meia-noite, duas da manhã... Ao fim de 20 dias o disco ficou pronto.
            Quer explicar a razão de ser do título?
            “Voluptuária” é o título de uma peça que faz uma aproximação, até obsessiva, entre a palavra e o conteúdo musical. Acho absurdo dar um título ao calha a uma música. Normalmente até demoro mais tempo a encontrar um título do que a compor a peça (risos). Ridículo mas verdadeiro (risos). Mas... no caso de “Voluptuária” tem a ver com “voluptuoso”, “lúbrico”, “prazer”, “deleite”, sem chegar à “luxúria” e ao “lascivo” (risos)...
            No disco há uma “Rotina enfadonha” e um “Estaticismo”, por sinal os dois temas mais longos...
            “Rotina enfadonha” é uma peça repetitiva, no sentido rítmico, quase hipnótico. Com um lado irónico. Esta rotina pode ser a do dia-a-dia de cada um, embora neste caso fale por mim. Mas é também essa rotina rítmica que, a dado momento, desaparece para dar lugar a outro ambiente, embora, no fim, regresse de novo... O “Estaticismo” é uma peça parada, direcionando-se de uma forma “extática”.
            ... Já para não falar de uma “Teoria falhada”...
            Essa tem a ver com o facto de, quando a estava a fazer, me ter enganado do princípio ao fim. Nesta peça, não foi seguida a regra das 12 notas. Fiz 12 notas quando me apercebi de que a 12ª só aparecia já na série seguinte de notas. Das duas uma, ou fazia tudo do princípio, ou continuava. Ironicamente, apercebi-me de que era mais fácil construir segundo esta nova maneira. Não exigia tanto esforço mental, ou esforço auditivo. É difícil encontrar uma série de 12 notas em que todos os intervalos soem bem.
            Faz também uma homenagem tripla ao compositor clássico Alexander Scriabin (1872-1915).
            Porque o estilo dessas três peças está de acordo com o de uma determinada fase da música dele. É o meu compositor preferido.
            O primeiro CD conclui-se com composições de Pedro Caldeira Cabral. De que forma abordou a música deste compositor?
            São peças extraordinariamente bem construídas para a guitarra e todas elas possuem uma inspiração magnífica, ao nível melódico e harmónico.
            Sente mais prazer em tocar a música de Caldeira Cabral ou a de Carlos Paredes?
            São dois mundos distintos. Ao tocar Paredes, a sensação que se tem é a de uma grande fisicalidade.
            É uma música indissociável do seu autor e de uma forma muito particular de a executar?
            Mesmo quando outra pessoa toca Paredes, tem de o fazer de forma física. Agora, o tempo, as “nuances”, a dinâmica, é fundamental que seja alterada, sob pena de se cair no ridículo da imitação. É preciso banir a cópia da interpretação e entrar num processo, que não é fácil, de esquecer isso tudo e olhar para a peça como se fosse a primeira vez.
            É difícil interiorizar a música de Paredes?
            É difícil de interpretar. E o mais difícil é a pessoa abstrair-se da forma de ele tocar. Quando falava de uma forma física, queria dizer de forma enérgica. Sem energia, a música não soa a nada.
            O lado trágico na música do Paredes: “apropriou-se” dele?
            Sim. E do seu lado misterioso, sobretudo em “A noite”, curiosamente um tema que usa uma linguagem nada habitual nele. É uma peça escura.
            Carlos Paredes está para a guitarra portuguesa como Amália para o fado? Uma referência que pode tornar-se “maldição”?
            Pode ser perigoso... Mas não sinto isso. A música que faço na guitarra portuguesa não tem nada a ver com ele. Rapidamente percebi que seria inútil continuar um caminho que ele construiu, iniciado e acabado por ele. Ele fez questão de fazer tudo. É quase obrigatório tocar a música dele. Depois, das duas uma, ou se fica preso a ele ou direciona-se a guitarra para outro sítio. Na peça do álbum em que lhe presto homenagem, curiosamente, não estava nada à espera de conseguir compor no estilo do Paredes. Mas, coisa extraordinária, o estilo rítmico, as “nuances” e o carater melódico têm muito a ver com as formas que ele utilizava. Foi a única vez que fiz isso.
            Qual o seu álbum preferido de Paredes?
            “Movimento Perpétuo”.
            Que relação a sua guitarra mantém com o fado?
            Uma boa relação. Gosto imenso de tocar fados quando o grupo funciona perfeitamente, como na música de câmara. Mas é raríssimo conseguir estar ao lado de mais duas ou três pessoas que toquem bem ou, melhor ainda, que se entendam, se ouçam uns aos outros. A relação entre a guitarra portuguesa, a guitarra clássica e a guitarra baixo é a que mais se aproxima da minha visão tímbrica. É uma combinação extraordinária.
            E com o jazz e a música improvisada?
            Há anos entrei para o Hot Clube onde tive umas aulas de piano mas acabei por nunca tocar jazz. A guitarra portuguesa não se enquadra nessa área, nos “standards”. Toquei música improvisada mas nada desse género. Foi engraçado.
            A guitarra portuguesa já atingiu os seus limites?
            É um instrumento limitado. Não pode tocar um concerto com uma orquestra, por exemplo... Poder pode, o problema é que essa suposta peça teria de ser construída de forma idiomática, para guitarra. Não é como um violino ou um violoncelo que tocam quase tudo. A guitarra, não, é uma coisa limitada, menor, que traz problemas atrás de problemas.
            Então que gozo tem em tocá-la?
            Não existe gozo nenhum. O confronto e os obstáculos são uns atrás dos outros. Existe, sim, uma sonoridade característica e uma potência, uma projeção de volume que raros instrumentos de corda com trastes têm. Consegue passar por cima de um cravo, por exemplo.
            Trata-se, então, de um mundo autónomo?
            Um mundo à parte, sim... É limitado em relação a um violino ou a um piano, instrumentos melódicos com uma capacidade extraordinária para executar qualquer tipo de melodia virtuosística. Na guitarra... acabou! (risos). É um instrumento híbrido que acaba por não ser nem melódico nem harmónico. É a única definição real que se pode dar da guitarra portuguesa. Não é clara, nem assumida, nem transparente... A própria guitarra clássica é muito mais completa que a guitarra portuguesa.
            Não será um caso de personalidade demasiado vincada?
            Digamos que se afoga na sua personalidade (risos).
            E, na sua “luta” contra esse “monstro”, já atingiu os limites?
            Não me preocupo com isso. Em cada coisa que toco deparo-me sempre com dificuldades. O objetivo principal é ouvir aquilo que quero ouvir e construir as notas que quero construir. Mas por vezes deparo-me com problemas difíceis de ultrapassar. Tento ultrapassá-los, mas sem nunca perder a noção de que não o consigo fazer (risos). Os problemas surgem porque as coisas que quero ouvir, as notas e a sua sequência, são difíceis de executar na prática. Às vezes o que pretendo ouvir não se propicia. Tudo isto terá a ver com o facto de eu também tocar piano e o piano abrir um leque sonoro vastíssimo que depois não pode ser transposto para a guitarra. É uma tragédia! (risos).
            Subentende-se que tocar guitarra portuguesa é uma luta sem quartel?
            Uma luta permanente. Angustiante e frustrante. É um desafio mórbido. Chega-se ao fim de 50 ou 60 anos a tocar o instrumento e continua-se com os mesmos problemas. É uma aberração! (risos).
            O que é então ser-se um virtuoso neste instrumento?
            Não conheço ninguém virtuoso na guitarra portuguesa. Virtuosos são Liszt, Glen Gould, Keith Jarrett. Esse virtuosismo não existe na guitarra portuguesa. Porque não apareceu nenhuma pessoa que o demonstrasse e porque o próprio instrumento impossibilita-o. Não está preparado nem musical nem fisicamente para entrar nesse alto jogo.
            Por vezes dá a ideia de que a guitarra portuguesa é como que um instrumento “mecânico”, como um realejo, em que determinadas sequências de notas parecem impor-se naturalmente...
            Sim, há essa imposição, não dá hipóteses de escolha. Se não for assim, não pode ser de outra maneira.
            Já se sujeitou, já está convencido, a guitarra venceu-o?
            Teoricamente sei isso. Mas na prática não o faço. E como não faço isso, sujeito-me a esse confronto constante com o instrumento, com dissabores técnicos e problemas dramáticos. É um pesadelo!
            Tem mestres da guitarra portuguesa?
            Carlos Paredes, o meu avô [Fontes Rocha], José Nunes. Todos geniais.
            Voltando à carga: o que é ser-se genial na guitarra portuguesa?
            Essencialmente, ter uma abordagem e um estilo pessoais, que é das coisas mais difíceis de conseguir. Ter um som impossível de imitar.
            Nunca pensou, como forma de ultrapassar esses problemas técnicos que aponta, em efetuar no estúdio gravações em multipistas?
            Como transformar uma guitarra em várias? Não, nunca! Isso é uma coisa não muito honesta. Cheguei à conclusão de que o que interessa é poder executar, em qualquer circunstância, o resultado final. Apesar dos problemas serem quase intermináveis...




O terceiro movimento

Depois de Pedro Caldeira Cabral e das suas “Memórias da Guitarra Portuguesa” é a vez de Ricardo Rocha testemunhar a favor (embora a entrevista ao lado possa sugerir mais um “contra”…) da guitarra portuguesa e das suas especificidades enquanto instrumento que melhor exprime um modo de sentir (tradicional?) português mas que finalmente se abre para um universalismo, de ordem não só estética como ideológica, antes apenas enunciado.
“Voluptuária” pode ser encarado como o terceiro momento, ou movimento de um caminho de emancipação deste instrumento que terá tido origem em Carlos Paredes, prosseguindo no sentido de uma certa “normalização” estilística através de Pedro Caldeira Cabral, e finalmente sido redimido das suas limitações próprias e enquadrado no campo mesmo das novas músicas, por Ricardo Rocha. De Paredes retirou Rocha a expressividade física (o arrebatamento, esse é próprio da alma de cada um) enquanto de Caldeira Cabral aproveitou o gosto pelo jogo das formas e a propensão para um estruturalismo mais cerebral que em Paredes mal se deixava perceber por detrás do dilúvio das emoções.
Rocha possui uma visão de campo alargada, sente o tempo de uma forma que lhe permite ir do minimalismo e da repetição ao estatismo, das cascatas de acordes que tombam em dilúvio às notas soltas que flutuam com vida própria no seio do silêncio. Do classicismo, reiterado nas três composições em forma de “trompe l’oeil” com dedicatória a Scriabin e enredado nos parâmetros do contraponto e do Barroco nas peças para cravo, ao abstracionismo cultivado, à sombra de um acompanhamento discreto da guitarra, nas peças para violino. É, porém, no gosto pelo equilíbrio e na preocupação, quase obsessiva, pelo detalhe (inclusive posto em prática no trabalho meticuloso da escolha dos títulos e no grafismo da embalagem, um digipak que põe em contraste o lado cósmico com o microcosmos dos pequenos ícones pessoais) que Ricardo Rocha se revela exímio, propondo a integração da guitarra portuguesa numa “new age” de contornos inovadores onde as noções de tradicionalismo e modernidade se esbatem e a beleza não se esgota nas cores de uma natureza-morta, antes é espaço de procura de novos horizontes.

RICARDO ROCHA
Voluptuária
2xCD, ed. e distri. Vachier & Associados

António Ferreira - Música de Baixa Fidelidade


Y 6|JUNHO|2003
roteiro|discos

ANTÓNIO FERREIRA
Música de Baixa Fidelidade
Plancton Music
8|10

“Música de Baixa Fidelidade” foi editado em 88, pela Ama Romanta, na mesma altura que “Plux Quba”, de Nuno Canavarro. Dois álbuns que criaram em Portugal as bases de uma eletrónica situada na confluência da pop com a música contemporânea dita erudita. “Música de Baixa Fidelidade”, então assinada pelo seu autor como TóZé Ferreira, assume o seu carácter programático, quer ao nível prático da realização sonora, quer ao nível de uma teorização que põe em confronto as noções de “hi-fi” e “lo-fi”, daí decorrendo a sensação de uma certa “frieza”. Se os exercícios de manipulação da voz, como “More adult music”, “This is music, as it was expected” e “O Verão nasceu da paixão de 1921” evocam operações paralelas de Paul de Marinis, Robert Ashley e Carl Stone, todo o tratamento de sinais sonoros evidenciam uma coerência que lhe garante estatuto de obra fundamental no universo da música portuguesa atrás definido. Conceitos matemáticos ou de interatividade entre diversos parâmetros musicais (escala, afinação, modo, ritmo) “adulterados” via programação ganham vida própria e uma limpidez sonora (acentuada pela remasterização) que parecem querer contradizer o título. É, além do mais, um prazer para o cérebro.

@C + Pedro Tudela + Longina + Vítor Joaquim


Y 6|JUNHO|2003
roteiro|discos

@C
Hard Disk
8|10

PEDRO TUDELA
Là où je Dors
8|10

LONGINA
!Siam Acnun
7|10

VÍTOR JOAQUIM
La Strada is on Fire (and we are all Naked)
8|10

Todos ed. Crónica, distri. Matéria Prima

@c, pedro tudela, vítor joaquim e longina
crónicas da terra digital

“Crónica” é nome de série de uma nova editora nacional de eletrónica. Com informação áudio e vídeo e “links” diretos ao neurónio mais próximo. Primeira edição da coleção, “Hard Disk”, dos @c (Miguel Carvalhais, Pedro Almeida e Pedro Moreira) inclui seis disseminações sónicas e um vídeo da programadora gráfica e artista digital Lia. Refrações industriais, vozes enforcadas numa linha de montagem de clones psicóticos, ordenadores de batidas digital/tribais. Pan-Sonic, Cabaret Voltaire de “Mix-up” e “Voice of America” em versão rolo compressor são enxertados na memória. Forward. Valsas ao longe, frequências “limpas” e “sujas”, sinais de rádio, dissecação do interior de um “chip” com vida. “Hard Disk” é uma ampliação, um ato de voyeurismo que tira prazer do processamento digital. Os sons nascem do vazio e a ele regressam. Mas analise-se a radiografia sonora desta sequência de tempo e encontrar-se-á um universo em metamorfose evolutiva. Crónica número um da terra digital: aprovada sem reservas para usos indiscriminados.
            Crónica número dois. Pedro Tudela sai do coletivo @C para apresentar “Là où je Dors”. Onde o coletivo opta por apenas numerar cada tema, Tudela intitula os seus com termos como “Forest”, “Carrousel” (alô cluster), “man that can not touch woman”, “Mermaids”, “Bed of Clouds” e “Delirium with dolls”. Sabe-se da importância da palavra poética enquanto fator de indução de imagens. Desta conjugação Tudela faz surgir drones das quais vão emergindo batidas de “ambient tecno”, cortadas por arranhões nos locais mais extravagantes da rede sónica, efeitos de “delay” e “phase”, sobreposições, ecos, súbitas eclosões de ruído seguidas de contrações e aspirações. “Là où je Dors” pode ser um complemento dos @C em que o composto sonoro abre mais uma janela, deixando antever uma fauna e uma flora não menos monstruosas onde cada aberração é capaz de espantar por uma conceção do Belo que se infiltra como uma doença. Aprovada para uso farmacológico ou para contemplação em estados de consciência alterados.
            Crónica número três. “!Siam Acnun” (“Nunca Mais”, ao contrário) do galego Longina. Algumas fórmulas rítmicas semelhantes às dos @C, mas recuperando o “groove” com patas de inseto de Victor Nubla sob a designação Xjacks, o “swing” dinossáurico, terrivelmente aditivo, dos Esplendor Geometrico ou o minimalismo dos Rechenzentrum. Baixo de jazz moribundo, piano-anagramas, binários de tribos perdidas, cortam as batidas daquela que, das quatro, será a crónica mais perto de se poder dançar mas também a que mais se aproxima de alguns estereótipos do género. Aprovado para sessões de terapia de hipnose de regressão.
            Crónica número quatro. “La Strada is on Fire (and we are all Naked)” de Vítor Joaquim. Com Martin Archer (saxofones processados), Rodrigo Amado (saxofones), Victor Coimbra (baixo) e Mariana F (voz). E pedaços de sons extraídos de emissões de TV, uma “velha estrela de rock” e “um discurso de Bill Clinton (depois de um bombardeamento com danos colaterais). Ainda a eletrónica como máquina de sonhos fabricados a partir de recortes da realidade mesmo que a “realidade” não seja mais do que a fenomenologia de um mundo “exterior” que nos é vedado. A estrada está a arder mas não nos damos conta. E Vítor Joaquim filma o vazio do pós-incêndio. Os saxofones conferem uma nota de psicadelismo-etno e “alien jazz” a uma música que ocasionalmente evoca os SPK na sua vertente mais ritual. Aprovado como banda-sonora de um “peep show” para o pós-Apocalipse.

13/02/2019

O circo de feras passou por Alvalade [Festival Super Rock in Lisbon]


CULTURA
SÁBADO, 31 MAI 2003


O CIRCO DE FERAS PASSOU POR ALVALADE

Primitive Reason, Disturbed, Audioslave, Deftones e Marilyn Manson inauguraram, quinta-feira, em Alvalade, a temporada dos festivais rock. “Mosh”, urros, relva arrancada e cerveja. Quem precisa de música em ocasiões como esta?

Vendo as coisas objetivamente, a generalidade da música que se ouviu no Festival Super Rock in Lisbon, quinta-feira, no Estádio de Alvalade, na era pós-futebol, foi má. E quando não foi má, foi muito má. Mas as 20 mil pessoas que estiveram longe de esgotar o recinto (as bancadas estavam pouco mais que vazias e, no relvado, a mole humana apenas se estendia até pouco mais de metade) aderiram e gostaram.
            A prova disso residiu no espetáculo que, praticamente durante as oito horas que durou o festival, foi oferecido pela parte da assistência que se comprimia em frente ao palco e se entregou com entusiasmo a uma sessão permanente de "mosh", na sua nova modalidade: a ecológica.
            Parecia uma daquelas imagens típicas da banda-desenhada, um torvelinho de poeira com braços, cabeças e pernas a saírem pelos lados. Mas com uma novidade relativamente ao "mosh" tradicional: à confusão da carne em combate do costume juntou-se o arremesso em todas as direções (preferencialmente as cabeças) de nacos de relva – com dimensões que variavam entre o simples torrão e a placa tectónica – arrancados ao vetusto tapete verde de Alvalade. Bonito de se ver.
            Nas bancadas, pelo contrário, o ambiente era de maior contenção, até porque, à distância que se fica do palco, não dá para a excitação se propagar com a mesma intensidade.
            As bandas em cartaz cumpriram todas o que lhes era pedido, ou seja, que baixassem o nível de qualidade formal da música o mais possível até perto do zero (o que, regra geral, conseguiram) e, em compensação, forçassem, também o mais possível, o nível decibélico.
            Outra das características comuns entre as cinco bandas – Primitive Reason, Disturbed, Audioslave, Deftones e Marilyn Manson – foi o facto dos respetivos vocalistas passarem mais tempo a urrar do que a cantar. O efeito, esteticamente lícito, embora passível de levantar algumas objeções, teve o condão de nivelar músicos e multidão numa sessão de "gestalt" libertador. Ou, noutra perspetiva, de aproximar a pessoa humana de uma certa animalidade primordial, com a multidão a comunicar, por sua vez, entre si, através de uivos e urros. Ou, dito de uma maneira mais simples: parecia o jardim zoológico.

Volta, Alice Cooper, estás perdoado!
O rock dos Primitive Reason, que na ocasião apresentaram o novo álbum, "Firescroll", soou duro, com citações ao ska, metálico e vociferante qb. O público aplaudiu com moderação, atarefado em ensaiar as primeiras coreografias de "mosh". Intervalo para recarregar baterias, leia-se, para atestar o depósito de cerveja, mesmo com a imperial a um euro e meio.
            Seguiram-se os Disturbed. Puseram o povo a gritar "we are... we are...", que sim, que somos todos "disturbed". O vocalista urrou, pediu para a assistência pôr os "motherfuckin' fists" no ar (no que foi prontamente obedecido), a relva começou a ser metodicamente arrancada do seu lugar natural e a ser arremessada como projétil balístico. Tudo nos conformes. Intervalo para atestar o depósito de cerveja.
            Os Audioslave, de Chris Cornell, ex-Soundgarden, acompanhado de três ex-Rage Against the Machine, sem descurarem os urros da praxe, tocaram a melhor música da noite. Riffs poderosos, metal fundido que não dispensou alguns desvarios electrónicos nem a melodia, a par de uma sensibilidade sem vergonha de pedir conselhos à pop, obtiveram, contudo, da multidão, a mesma reacção. "Mosh", escalpes de relva, murros e pontapés desferidos com um misto de amor e selvajaria. Yeeeaaaahhhh! - por assim dizer. Foi muito ou foi pouco, mas foi o suficiente para os colocar acima da concorrência. Afinal de contas, os Audioslave mostraram ter algo que, provavelmente, o rock atual tende cada vez mais a desprezar: ideias. Outra boa ideia, para o intervalo: atestar – hic! – o depósito de cerveja.
            Aguardados com enorme expectativa, os Deftones rastejaram (metaforicamente) pelo chão, com uma torrente de sons em estado bruto e o vocalista a urrar mais alto do que todos os outros, intercalando o berreiro com uma espécie de mini-manifestos ideológicos. O público interiorizou a mensagem e redobrou a fúria do "mosh". Interv-hic-alo para, hic-ates-hic-tar o depósito-hic de cerveja.

            
E, finalmente, o monstro por que todos ansiavam. Marilyn Manson, com o álbum "The Golden Age of Grotesque" para mostrar. Grotesco foi, surgindo em Alvalade com o seu "look" habitual de Bela Lugosi acabado de sair do caixão. Mas, para além da maquilhagem, mostrou pouco ou quase nada. Rock de metal, rock sinfónico, baladas bimbas, uma versão, pretensamente perversa, de "Sweet dreams (are made of this)", dos Eurythmics, "showbusiness" de pacotilha que meteu umas donzelas a fingir de nuas, luzes relampejantes, tudo a despachar, tudo a soar a falso (regressa, Alice Cooper, estás perdoado!), gritos de "Portogalo" e "fight!" (ou seria "bite"?) e o omnipresente "grroaaaarrrrhhh" que acabou por se tornar o "slogan" mais entoado da noite.
            Terminada a função, do lado do público, a refrega abrandou, por fim. Com os corpos e as cabeças bem massacradas, saiu toda a gente do estádio feliz. E isso é bom. Ou, como suspirava no final uma rapariga, arrasada mas em êxtase, estendida no relvado: "Foi lindo!"