CULTURA
SEGUNDA-FEIRA,
26 MAI 2003
Crítica Jazz
Omar,
que “son” tem!
Matosinhos em Jazz
Sexteto
de Paulo Perfeito + Omar Sosa Septet
Flora
Purim, Airto Moreira, Miguel Braga + Orquestra de Jazz de Matosinhos
Matosinhos,
Exponor
Dias
23 e 24, 21h30
Sala
quase cheia nos dois dias
Qual ual “son”, qual jazz, qual cha-cha-cha,
a música que Omar Sosa levou ao segundo dia do festival Matosinhos em Jazz é a
música que as crianças e os poetas ouvem nos sonhos. Deslumbramento. O pianista
cubano, que, na ocasião, tocou o repertório do seu mais recente álbum, “Sentir”,
mais uma série de inéditos a incluir no próximo disco, é um daqueles músicos
que, faça o que fizer, é como se estivesse a participar na criação do mundo
através do som.
Omar
cria a partir de cada nota, de cada ritmo, de cada pedaço do piano, mas a sua música
é mais do que um simples alinhamento de formas. Habita nela uma energia
primordial, um espírito quase infantil, em que o prazer da descoberta e a
fruição do que se descobriu são as únicas regras de conduta a seguir. Em
Matosinhos, o ritual incluiu cascatas rítmicas avassaladoras, “riffing” tribal
e “trip’al”, jogos de refrações e ecos com as notas do piano tratadas eletronicamente.
Diálogos com o silêncio e danças dervíshicas. Tradições de Cuba e romantismo,
fúria e delicadeza, “clusters” infernais e o voo pacífico de pombas. A música
subiu, subiu, sem parar.
Lá
no alto, o piano suspendeu-se numa conversa com melodias de vento geradas por
um tubo de plástico posto a girar em diferentes velocidades pelo percussionista
venezuelano Gustavo Ovalles. O mesmo piano inventou sinfonias instantâneas em
contraponto com as matracas agitadas pelo argelino El Houssaine Kili que,
noutros temas, acrescentou à música os rendilhados vocais da música árabe.
Martha
Galarraga, a cantora do grupo, cantou com o coração e fez música com
gargalhadas. A seu lado, o “rapper” Breis conduziu parte da viagem. Termos como
“paz”, “liberdade”, “felicidade” e “amor” libertaram-se do lastro do
lugar-comum, para se oferecerem como evidências.
Breis
auto-hipnotizou-se em melopeias circulares, rendeu homenagem a várias figuras
do jazz, ampliou “slogans” até os fazer emergir como evangelhos. E pôs o
público a dançar, a estalar os dedos, a cantar. Luis Depestre, o saxofonista,
swingou como um puto entusiasmado. E Omar a tocar as cordas e as teclas, a
dedilhar o ar, a criar música a partir do simples movimento do corpo. Sabendo,
como só os sábios (os sábios-criança) sabem, que a música, em última instância,
é puro movimento.
Comparada
com esta música sem margens, a do sexteto de Paulo Perfeito, que abriu a noite
de sexta-feira, pareceu vulgar. Há ali trabalho de composição, falta-lhe por
enquanto o sopro vital.
Domingo
abriu com os brasileiros Airto Moreira e Flora Purim e o pianista português
Miguel Braga. Em regime de improviso, nenhum brilhou. Braga acumulou lugares-comuns
no piano e no sintetizador, sem espaço de manobra para mais. Flora mostrou pertencer
àquele grupo de vozes com chama, mas para as quais a afinação constitui um problema
recorrente a resolver. Já para não falar da “gaffe” de se dirigir à assistência
em francês e da qual passou depois todo o tempo a justificar-se, com lérias do tipo:
“Não sou portuguesa nem brasileira, mas uma cidadã do planeta à espera que um
disco-voador me venha buscar.” Airto confirmou, por seu lado, não ser um
baterista mas um percussionista de exceção. A ele se ficaram a dever dois
momentos-chave: a reprodução de ambientes da selva amazónica e um solo de pandeireta
e “scat” que fez sobressair o tipo de lógica intuitiva (passe o paradoxo...)
que assoma aos músicos que detêm o poder de estabelecer ligação direta com a
fontes.
O
jazz “jazz” regressou com a Orquestra de Jazz de Matosinhos, dirigida pelos pianistas
Carlos Azevedo e Pedro Guedes. Excelente na arquitetura coletiva com base num
repertório original por vezes edificado sobre a planta de Gil Evans, a
orquestra ofereceu largo espaço de destaque aos solistas, bem aproveitado por
Andrés Tarabbia (“Pancho”), num imaginativo jogo de percussão, e Paulo Pinto,
que disparou uma rajada certeira de guitarra elétrica bem rockeira.
Mas
o melhor solista da noite foi o trompetista convidado Eric Vloeimans, o que se
viria a confirmar, madrugada dentro, na “jam” que decorreu no bar B-Flat com a
presença de uma quantidade de instrumentistas portugueses e do tocador de
harmónica espanhol Antonio Serrano. A Orquestra de Jazz de Matosinhos terá a
dirigi-la a pianista, compositora e arranjadora Carla Bley, a 20 de Junho, no
Festival em Obra Aberta, que se realizará na Casa da Música, no Porto, ainda antes
da sua abertura oficial.
EM RESUMO
Omar Sosa O ritual celebrado
pelo pianista cubano ultrapassou tudo o resto que se ouviu nas duas últimas
noites do Matosinhos em Jazz
Sem comentários:
Enviar um comentário