CULTURA
SÁBADO, 31 MAI 2003
O CIRCO DE FERAS
PASSOU POR ALVALADE
Primitive Reason,
Disturbed, Audioslave, Deftones e Marilyn Manson inauguraram, quinta-feira, em
Alvalade, a temporada dos festivais rock. “Mosh”, urros, relva arrancada e
cerveja. Quem precisa de música em ocasiões como esta?
Vendo
as coisas objetivamente, a generalidade da música que se ouviu no Festival
Super Rock in Lisbon, quinta-feira, no Estádio de Alvalade, na era pós-futebol,
foi má. E quando não foi má, foi muito má. Mas as 20 mil pessoas que estiveram
longe de esgotar o recinto (as bancadas estavam pouco mais que vazias e, no
relvado, a mole humana apenas se estendia até pouco mais de metade) aderiram e
gostaram.
A prova disso residiu no espetáculo
que, praticamente durante as oito horas que durou o festival, foi oferecido
pela parte da assistência que se comprimia em frente ao palco e se entregou com
entusiasmo a uma sessão permanente de "mosh", na sua nova modalidade:
a ecológica.
Parecia uma daquelas imagens típicas
da banda-desenhada, um torvelinho de poeira com braços, cabeças e pernas a
saírem pelos lados. Mas com uma novidade relativamente ao "mosh"
tradicional: à confusão da carne em combate do costume juntou-se o arremesso em
todas as direções (preferencialmente as cabeças) de nacos de relva – com dimensões
que variavam entre o simples torrão e a placa tectónica – arrancados ao vetusto
tapete verde de Alvalade. Bonito de se ver.
Nas bancadas, pelo contrário, o
ambiente era de maior contenção, até porque, à distância que se fica do palco,
não dá para a excitação se propagar com a mesma intensidade.
As bandas em cartaz cumpriram todas
o que lhes era pedido, ou seja, que baixassem o nível de qualidade formal da
música o mais possível até perto do zero (o que, regra geral, conseguiram) e,
em compensação, forçassem, também o mais possível, o nível decibélico.
Outra das características comuns
entre as cinco bandas – Primitive Reason, Disturbed, Audioslave, Deftones e
Marilyn Manson – foi o facto dos respetivos vocalistas passarem mais tempo a
urrar do que a cantar. O efeito, esteticamente lícito, embora passível de
levantar algumas objeções, teve o condão de nivelar músicos e multidão numa
sessão de "gestalt" libertador. Ou, noutra perspetiva, de aproximar a
pessoa humana de uma certa animalidade primordial, com a multidão a comunicar,
por sua vez, entre si, através de uivos e urros. Ou, dito de uma maneira mais
simples: parecia o jardim zoológico.
Volta, Alice
Cooper, estás perdoado!
O
rock dos Primitive Reason, que na ocasião apresentaram o novo álbum,
"Firescroll", soou duro, com citações ao ska, metálico e vociferante
qb. O público aplaudiu com moderação, atarefado em ensaiar as primeiras
coreografias de "mosh". Intervalo para recarregar baterias, leia-se,
para atestar o depósito de cerveja, mesmo com a imperial a um euro e meio.
Seguiram-se os Disturbed. Puseram o
povo a gritar "we are... we are...", que sim, que somos todos
"disturbed". O vocalista urrou, pediu para a assistência pôr os
"motherfuckin' fists" no ar (no que foi prontamente obedecido), a
relva começou a ser metodicamente arrancada do seu lugar natural e a ser
arremessada como projétil balístico. Tudo nos conformes. Intervalo para atestar
o depósito de cerveja.
Os Audioslave, de Chris Cornell,
ex-Soundgarden, acompanhado de três ex-Rage Against the Machine, sem descurarem
os urros da praxe, tocaram a melhor música da noite. Riffs poderosos, metal
fundido que não dispensou alguns desvarios electrónicos nem a melodia, a par de
uma sensibilidade sem vergonha de pedir conselhos à pop, obtiveram, contudo, da
multidão, a mesma reacção. "Mosh", escalpes de relva, murros e
pontapés desferidos com um misto de amor e selvajaria. Yeeeaaaahhhh! - por
assim dizer. Foi muito ou foi pouco, mas foi o suficiente para os colocar acima
da concorrência. Afinal de contas, os Audioslave mostraram ter algo que,
provavelmente, o rock atual tende cada vez mais a desprezar: ideias. Outra boa
ideia, para o intervalo: atestar – hic! – o depósito de cerveja.
Aguardados com enorme expectativa,
os Deftones rastejaram (metaforicamente) pelo chão, com uma torrente de sons em
estado bruto e o vocalista a urrar mais alto do que todos os outros,
intercalando o berreiro com uma espécie de mini-manifestos ideológicos. O
público interiorizou a mensagem e redobrou a fúria do "mosh".
Interv-hic-alo para, hic-ates-hic-tar o depósito-hic de cerveja.
E, finalmente, o monstro por que
todos ansiavam. Marilyn Manson, com o álbum "The Golden Age of Grotesque"
para mostrar. Grotesco foi, surgindo em Alvalade com o seu "look"
habitual de Bela Lugosi acabado de sair do caixão. Mas, para além da
maquilhagem, mostrou pouco ou quase nada. Rock de metal, rock sinfónico,
baladas bimbas, uma versão, pretensamente perversa, de "Sweet dreams (are
made of this)", dos Eurythmics, "showbusiness" de pacotilha que
meteu umas donzelas a fingir de nuas, luzes relampejantes, tudo a despachar,
tudo a soar a falso (regressa, Alice Cooper, estás perdoado!), gritos de
"Portogalo" e "fight!" (ou seria "bite"?) e o
omnipresente "grroaaaarrrrhhh" que acabou por se tornar o "slogan"
mais entoado da noite.
Terminada a função, do lado do
público, a refrega abrandou, por fim. Com os corpos e as cabeças bem
massacradas, saiu toda a gente do estádio feliz. E isso é bom. Ou, como
suspirava no final uma rapariga, arrasada mas em êxtase, estendida no relvado: "Foi
lindo!"
Sem comentários:
Enviar um comentário