CULTURA
SEXTA-FEIRA,
2 MAI 2003
História do fado
custa um milhão de euros
ESPÓLIO NAS MÃOS DE COLECIONADOR INGLÊS
Um milhão de euros
é quanto pede Bruce Mastin pela sua valiosa coleção dos primórdios do fado. São
cinco mil discos raros, de 78 rotações. A proposta de compra vai ser feita nos próximos
dias
O
fado vende-se. O fado compra-se. O fado paga-se. Paga-se e bem, sobretudo
quando se trata de um espécime raro. Imagine-se um espólio de cinco mil discos
de 78 rotações, a maior parte deles inéditos, remontando as gravações mais antigas,
ainda em cilindro de cera, a 1904. Este espólio existe, mas está nas mãos de um
inglês.
O fado é nosso. Pois é. Mas quem tem
uma parte importante dele é o britânico Bruce Mastin, colecionador. Acontece
que Mr. Mastin, sabendo do interesse do Estado português em adquirir a preciosidade
que, em meados do século passado, adquiriu num armazém de Lisboa por tuta e
meia, até compreende e aceita as razões lusitanas, mas, desfazer-se dela, só a
troco de um cheque de um milhão de euros.
E vale esse dinheiro? Se vale! Nesses
cinco mil discos está impressa a origem do fado gravado, quando, em 1926, a
companhia inglesa Gramophone, com sede em Hayes, Middlesex, estabeleceu filiais
em Lisboa (na Valentim de Carvalho) e no Porto (no Grande Bazar do Porto). As
duas fábricas de gramofones e discos encetaram então um intenso processo de
gravação de discos, com orçamentos que previam o pagamento aos artistas, aluguer
das salas de gravação, publicidade, salário dos engenheiros de som (Fleming e
Draycott, assim se chamavam os dois técnicos que a firma inglesa fazia deslocar
a Lisboa para o efeito), equipamento, etc... As sessões duraram até 1936, a II
Grande Guerra estalou entretanto e a Gramophone Company deixou Portugal,
abandonando o espólio que o sr. Mastin teve a sorte de encontrar.
Entre as históricas gravações contam-se
os nomes de Reinaldo Varela, José Bastos, Isabel Costa, Almeida Cruz, Eduardo
de Souza, Rodrigues Vieira, Delfina Victor e Maria Victoria, todas registadas em
1904. Mais recentes, há 78 rotações de, entre outros, Maria Alice, Manassas de
Lacerda, Avelino Baptista, Estêvão Amarante, Madalena de Melo, Maria Emília Ferreira,
Júlia Florista, Maria do Carmo Torres e dos míticos Ercília Costa, Berta
Cardoso, António Menano, Edmundo de Bettencourt, Armandinho e Alfredo Duarte (Marceneiro).
Fado como se cantava nos cafés Vitória ou Luso, este último descrito no início
dos anos 30 pelo musicólogo Rodney Gallop como “um retângulo amplo, cuja entrada
era interdita aos portadores de bonés ou boinas”.
Peças únicas
Tudo
isto existe, tudo isto é triste (enquanto não passar para cá), tudo isto é
fado. Que fazer, então, para que deixe de ser triste? João Pinto Sousa, diretor
da empresa Corda Seca, especializada em iconografia do fado, e elemento da
associação Movimentos Perpétuos, quer ir pessoalmente a Londres e trazer o tesouro
para Portugal, custe o que custar. De preferência, menos do que o milhão de
euros pedidos pelo sr. Mastin (uma “exorbitância”), mas se for mesmo preciso puxar
os cordões à bolsa, paciência.
Antes, já uma comissão oficial se deslocara
a Londres, chefiada por Joaquim Pais de Brito, diretor do Museu Nacional de
Etnologia, para testemunhar “a mais-valia e a importância deste espólio para Portugal”,
até porque são “os primeiros fados gravados” e urge devolvê-los à pátria onde
nasceram. Feita a avaliação, é a vez de João Pinto de Sousa viajar até Londres para
tentar convencer o colecionador, o qual, segundo parece, se mostra “sensível”
às razões dos portugueses.
Com ligações afetivas à Casa do Fado
e da Guitarra Portuguesa, empresa municipal interessada na transação, é nessa
condição que João Pinto Sousa recebeu “todo o apoio para poder, também como
cidadão”, fazer tudo o que estiver ao seu alcance “para, com algumas boas
influências, nomeadamente do próprio Presidente da República, tentar trazer a
coleção para Portugal”.
Atingido tal objetivo, os cinco mil
discos (dos quais, “pelo menos, 4500 são peças únicas”) serão organizados, digitalizados,
integrados numa base de dados e editados numa antologia, “Arquivos do Fado”, pela
Tradisom, de José Moças, outra das pessoas empenhadas em recuperar os registos
fonográficos “de uma das épocas mais importantes do património musical
português” e exemplares cuja importância e raridade são reconhecidas por especialistas
do fado como Daniel Gouveia, José Manuel Osório, José Pracana e Luís Filipe
Penedo. Recorde-se que nos arquivos atuais do fado os exemplares mais antigos não
ostentam data anterior a 1945. A acompanhar esta antologia será editado um
trabalho inédito do investigador norte-americano Paul Vernon, com o
levantamento de toda a discografia do espólio.
Preço “descabido”
Em
teoria, incluindo as necessárias autorizações, está tudo pronto. Falta apenas
trazer o material e, claro, falta o dinheiro para o pagar. Pinto de Sousa
tentará fazer descer o preço. O dinheiro não virá do Estado – “O Ministério da
Cultura (MC), através do POC, só pode apoiar a futura gravação, digitalização,
reprodução, não a compra efetiva” –, mas de uma série de mecenatos, como
bancos, que Pinto de Sousa procurará angariar, com base nos apoios do próprio
MC, da Casa do Fado, da Câmara de Lisboa e da Presidência da República.
Mas um milhão de euros é um preço
“descabido”: “Admito que, do ponto de vista comercial, o homem seja justamente
renumerado, mas o peso do que estaria em cima da balança é o de algo que é
pertença de uma certa alma portuguesa. Vou tentar que ele desça à terra e seja sensível
aos argumentos românticos desta história”.
Mesmo que Bruce Mastin não desça à
terra, João Pinto Sousa defende que o negócio tem que ser feito. “Há coisas que
não têm preço, e este seria um dinheiro bem gasto”. Além disso, dado as
primeiras gravações datarem de 1904, “era bonito em 2004, já que vamos ter a Europa
a olhar para nós por causa do futebol, podermos ter também um centenário do
fado”.
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