Y 23|MAIO|2003
música|fado
ser
fadista é entregar-se à vida
São
duas vozes capitais do novo fado. No mais recente álbum de Mafalda Arnauth, Encantamento, escutamos uma voz mais serena, alada e “cantabile” do que nos discos
anteriores. Com Sensus, Cristina
Branco avança mais um passo para fora do fado tradicional. Disco onde a poesia
e a voz rivalizam em erotismo, tem a ousadia das coisas belas.
Depois de “Mafalda Arnauth”, produzido por
João Gil, e “Esta Voz que me Atravessa”, produzido por Amélia Muge,
“Encantamento” tem auto-produção da fadista. O resultado é o seu melhor álbum
de sempre. Pelos temas e pela voz. A fadista tomou quase tudo em mãos. “não
quis deixar nada em mãos alheias, decido assumir toda a responsabilidade. A
parceria maior que tenho neste disco é o Luís Oliveira, que se encarregou da
direção musical e dos arranjos. Neste disco as letras voltam a ser minhas… E a
responsabilidade de algo que esteja menos bem é também minha. Digamos que a
minha personalidade se tornou mais vincada. O disco resulta de um crescimento e
de uma auto-descoberta tão grande que não seria justo pôr outras pessoas a
assumirem a responsabilidade pelas minhas decisões”.
Responsabilidade
que Arnauth assume como fruto de uma segurança que antes não se manifestara:
“uma segurança que adveio do prazer que me deu. Sou uma mistura de racional e
emocional, e o racional consegue fazer uma avaliação do trabalho. O emocional
voltou a ter espaço para se expressar, coisa que no segundo disco não
aconteceu, por cansaço e por estar a trabalhar com pessoas com muito mais
experiência do que eu, o que gerou em mim um certo respeito”.
Algo
mudou entretanto, como resultado desse processo de auto-descoberta. Mafalda
centrou as atenções no corpo, forçou-o a disciplinar-se. Três fatores
contribuíram para essa mudança: “O primeiro fator vital foi a saúde. O templo
onde tudo isto acontece, o meu corpo. Precisava de uma paragem no final de
2001, todo o trabalho de estrada tinha sido desgastante. O segundo fator foi
ter deixado de fumar. De repente pude reencontrar a minha voz e redescobrir
novas possibilidades em termos de interpretação. Quando tomamos conta do nosso
corpo ficamos com muito mais força para tudo o que vem a seguir. Um terceiro fator
foi ter voltado a compor”.
o
fado é sereno. Desprende-se da audição de “Encantamento” uma sensação
de serenidade. Sem rodeios: dos três álbuns já gravados pela fadista,
“Encantamento” é aquele em que Mafalda canta melhor. Algo que nasce “da
respiração, da tal história de ter acabado com o tabaco”. A fadista também teve
aulas de canto, “de colocação de voz”, que a ajudaram, sobretudo a
tranquilizar-se. “Não me formataram a voz mas deram-me saúde ao instrumento.
Sinto que está muito bem. O sopro, a respiração é tão importante a falar como a
cantar, o facto de eu conseguir fazer essa gestão do ar, põe naturalmente tudo
no sítio, deixando outra margem para a inspiração. Antes era uma das minhas
dificuldades. Só a insegurança, a ansiedade, só isso já aperta o ar. Quando não
temos que nos preocupar com isso, a atenção passa imediatamente para outro
lado”.
O
trabalho de estúdio teve a sua quota-parte nestes resultados. Mafalda teve o
estúdio totalmente à sua disposição. “O Luís Oliveira e o José António Pedro,
que faz o som do disco, formam uma sociedade e têm os dois um estúdio que, além
de ser muito caseiro, é topo de gama ao nível técnico. Os músicos tiveram dois
meses para gravar, mais um para as misturas”. Sobrou tempo. Não houve pressões.
“A editora teve alguma dificuldade em perceber como é que está tanto tempo a
fazer um disco. Para a maior parte das pessoas é uma loucura, ter um estúdio só
para nós”.
Preocupações
que não são vulgares nos fadistas vulgares mas que Mafalda Arnauth considera
essenciais. Funcionou uma filosofia de vida que passa pela aprendizagem
constante. “Enquanto estudei Veterinária tive uma cadeira, de Toxicologia, que
me abriu os olhos para o ser humano hoje e como era há 30 anos atrás. Em 30
anos, os nossos corpos deixaram de ser as forças da natureza que eram. Não digo
que toda a gente seja assim, mas eu pago mais caro do que as outras pessoas.
Apesar de ter um corpo forte, com personalidade, sinto que sou frágil. O ritmo
da vida é hoje superior, o stress que apanhamos, a comida, tudo nos fragiliza.
Tive que encontrar uma disciplina. É claro que há outras pessoas que continuam
a ser forças da Natureza, por mais que façam as maiores desgraças”.
Há
quem diga que quanto maiores são os excessos melhor se canta o fado. Para
Mafalda, não. “Até há quem diga que eu, neste momento, tenho voz a mais…”, diz
a sorrir. Como é isso? “Voz a mais, por se sentir menos esforço a cantar, sem
aquela necessidade de sofrimento que ainda está um bocadinho inerente ao
canto”. Em “encantamento” sente-se o prazer. Incluindo “o prazer que se pode
tirar das próprias dificuldades”. “porque o percurso deste disco é extremamente
doloroso, fruto do tal crescimento”, diz a fadista. “Tentei fazer algo feliz de
um processo que foi doloroso”. Ser fadista é, então, uma “filosofia de vida”,
uma “entrega à vida”. Filosofia que pratica, “embora não os mesmos núcleos nem
nos mesmos ambientes” que fizeram o fado no passado. “Ser fadista é isso, é a
pessoa que vive, que absorve uma quantidade de experiências e que as transporta
para o canto. O que eu absorvo é que é diferente do que absorve a maior parte
das pessoas. Continuo a sentir um canto melancólico. Hoje já consigo ver nas
fadistas da minha geração as suas diferenças”. E vê-las assim: Cristina Branco,
“cada vez mais uma fadista que se alimenta da poesia”, Mariza, a “fadista de
faísca, de garra”, Mísia, “uma fadista cosmopolita”. Cada uma delas “a absorver
várias áreas do mundo”.
matar
saudades. Mafalda Arnauth continua a frequentar as casas de fado. Para
“matar saudades”. Dá razão a Argentina Santos que ainda há pouco tempo dizia ao
Público que é impossível aos novos fazer carreira sem passar pelas casas de
fado. “Passei por lá e continuo a sentir a necessidade de ir, mas não no mesmo
formato. Se já não vou com a mesma frequência é porque foi lá que aprendi, nem
tudo coisas boas. Mas a minha natureza não se enquadra numa casa fechada.
Argentina Santos tem o seu trono, o seu lugar de culto. Se um dia tiver a minha
casa de fados, naturalmente que também terei que estar lá. Mas hoje prefiro ir
cantar a uma casa de fado e sentir gozo do que estar lá uma noite inteira. Até
porque nós, da nova geração, tornámo-nos umas “pequenas estrelas”. Numa casa de
fado onde está alguém a cantar diariamente, com uma entrega total, não tenho
coragem de chegar lá, e por ter algum estatuto, chegar, cantar cinco ou seis
fados e ir para casa. Estaria a obrigar alguém, provavelmente muito mais
cansado do que eu, a ter que cantar outra vez. É um respeito que continuo a
ter”.
o problema
dos títulos. “Encantamento” termina com um “Fado Arnauth”. A própria
não receia ser acusada de pretensiosismo e explica a razão de ser do título:
“esse título existe porque estive dois ou três meses a tentar dar títulos às
músicas o que, com a SPA [Sociedade Portuguesa de Autores], é impossível. Têm
sempre registado um título igual! Por exemplo, tinha ‘Na palma da minha mão’,
mas não dava, tentei cinco ou seis títulos, acabou por ter que ser ‘Da palma da
minha mão’. O ‘Fado Arnauth’ foi “Feitiço’, o ‘Sem limite’ não pôde ser ‘Sem
limites’, ‘Bendito fado’ teve que ficar ‘Bendito fado, bendita gente’, ‘É
sempre cedo’ chamava-se ‘Acorda coração’… Impressionante. O “Fado Arnauth” foi
um relâmpago, nascido da frustração.”
E
“Encantamento”, foi também assim? “Esse foi um encantamento total. Um
cantamento, encantamento que vem do canto. Um encantamento com a vida que
passa. Porque é que, de repente, me sinto uma pessoa saudável? Há quem diga que
o desapego à vida, um instinto anti-vida, é necessário. Eu penso precisamente o
contrário, acho que este encantamento vem de cantar à vida, da superação do
dia-a-dia. A minha vida será tanto mais rica quanto mais gostar até das coisas
menos boas. Embora hoje este amor pela vida esteja algo ‘démodé’… Já esteve
mais na moda ser-se feliz.”
Também
a síndrome ‘Nova Amália’ esteve mais na moda. Hoje “as novas fadistas que estão
a aparecer têm o cuidado de ter particularidades próprias, uma personalidade
marcada”. Mafalda Arnauth até exagera um pouco, a ponto de continuar sem gravar
um único fado de Amália. Lá virá o dia. “Hei-de fazer isso! Mas quando o fizer,
não serão só fados dela. Será como uma prenda que darei a mim própria”.
“Encantamento” é composto por 14 temas, com música de Luís
Oliveira e poemas de Mafalda Arnauth, à exceção de “As Fontes”, de Sophia de
Mello Breyner, “Cavalo à Solta”, com letra de Fernando Tordo, e “No teu poema”,
com versos de José Luís Tinoco. Acompanham a fadista José Elmiro Nunes
(guitarra portuguesa), Luís Oliveira (guitarra clássica) e João Penedo
(contrabaixo). Os convidados são João Ferreira Rosa, em “Da palma da minha
mão”, e a cantora de jazz Mónica Ferraz, em “Ó voz da minha alma”.
eros é branco
“Sensus” é um disco de poesia erótica de
autores luso-brasileiros como Vinicius de Moraes, Chico Buarque, David
Mourão-Ferreira, Pedro-Homem de Melo, Camões, Vasco Graça Moura, Maria Teresa
Horta, Pedro Támen e Eugénio de Andrade. Com William Shakespeare a deitar
também a sua pitada de sal a uma música em que Custódio Castelo se encarrega de
dar sentido aos sons.
Tudo
partiu de um poema de David Mourão-Ferreira que deu o nome ao álbum anterior de
Cristina Branco, “Corpo Iluminado”. Mourão-Ferreira volta a estar presente,
desta feita, com “Assim que te despes”. Assim Cristina Branco se despe de
preconceitos. Fado dos sentidos. Fado-carne. Fado picante? Cristina garante que
se sente, neste novo registo, “como peixe na água”.
A
capa calhou ficar talvez um pouco sugestiva demais, provocando todo o tipo de
associações. A cantora não tem culpa, ri-se com gosto e salta imediatamente
para o cerne da questão: “Toda a gente pensa logo, poesia erótica e tal…”. É
este “tal” que importa esclarecer. Tenham clama, é tudo científico:
“inicialmente pretendi que fosse um documento sobre a sociedade portuguesa
desde a época medieval até agora. Como é que os portugueses viam a sexualidade.
Acabou por não ser, porque entretanto tropeçámos no Shakespeare, no Vinicius e
no Chico…”. Apesar da vertente didáctica, Cristina assume que “Sensus” tem “uma
linguagem mais ousada, embora sem cair no óbvio”, do que os álbuns anteriores.
Mas
“Sensus” fala de sexualidade ou de erotismo? “Tem as duas coisas. Sem utilizar
as palavras concretas”, como faz questão em frisar. “Pastoras da estrela”, um
dos belíssimos temas de “Sensus”, composto por Miguel Carvalhinho, soa a música
antiga, situando o fado nas noites trovadorescas de antanho. É pecado,
clamariam as vozes censoras. É pecado sentir e tirar prazer da música. “Sensus”
destila esse pecado e quem nos absolverá desta luxúria? “A abordagem musical do
Custódio tem algo que bebe em tempos muito remotos”. A voz de Cristina faz o
resto, lançando-nos no caminho da perdição.
Sem
misericórdia pelos fracos, Cristina garante que “ainda pretende ir mais longe”.
Na revolução do fado, bem entendido. E recorda que, nos primórdios, o “fado era
cantado por prostitutas”, o que lhe conferia um carácter, digamos, não de
pecado mortal, mas venial.
Quanto
a Cristina Banco, o seu canto afasta-se cada vez mais das formas tradicionais
do fado. “Porque não contar apenas uma história?”. As histórias de “Sensus”
incluem um “Soneto de separação”, de Vinicius de Moraes, “O meu amor”, de Chico
Buarque, “Ninfas”, de Camões, “Soneto destruído”, de Graça Moura, “As mãos e os
frutos”, de Eugénio de Andrade e “O sabor de saber”, de Rui Branco. Histórias,
afinal, de amor que uns dizem que vem antes e outros que vem depois. Cristina
Branco destaca uma, “O meu amor”, uma espécie de “impressão digital”. Começa
assim: “O meu amor/Tem um jeito manso que é só seu/E que me deixa louca/Quando
me beija a boca/A minha pele fica toda arrepiada/E me beija com calma e
fundo/Até minha alma se sentir beijada”.
Tocam em “Sensus” Custódio Castelo (guitarra clássica, baixo),
Alexandre Silva (guitarra clássica), Fernando Maia (baixo), Miguel Carvalhinho
(guitarra clássica), André Dequech (piano) e Ben Wolf (contrabaixo).
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