Pop Rock
31 de Outubro 1990
PONTE CULTURAL
PAUL SIMON
The Rhythm of the Saints
LP,
MC e CD, Warner Bros. distri. WEA
África, América do Sul, Cochinchina, Odivelas e o Terceiro Mundo em geral
transformaram-se nos últimos anos numa inesgotável fonte de inspiração e,
porque não dizê-lo, de rendimentos, à disposição do músico ocidental civilizado
e preocupado com os problemas económico-político-sociais dos seus irmãos mais
desfavorecidos. “World Music” foi o termo convenientemente inventado para dar
cobertura a fusões de toda a espécie, empacotada de preferência com rótulos do
tipo: “Só há uma Terra”, “Salvemos a Amazónia” ou, no caso de Odivelas, “Não à
cidade-dormitório e à construção clandestina, a Câmara tem de fazer qualquer
coisa”.
Da grande sopa entretanto sucessivamente requintada, que tenta encobrir
com o excesso de temperos a ausência de um sabor original, destacam-se algumas
obras de autores aparentemente acima de qualquer suspeita, como “Rei Momo”, de
David Byrne, e “Passion”, de Peter Gabriel, para citar algumas das mais
recentes. Talking Heads + ritmos sul-americanos, no primeiro caso, Scorsese +
“tudo ao molho e fé em Deus”, no segundo. Poucos se lembram do pioneirismo de
Holger Czukay, em “Cannaxis”, superlativo em todos os aspetos e nas tintas para
se era ou não Música do Mundo. E o próprio Paul Simon, claro, na aproximação
político-musical à cultura negra sul-africana, em “Graceland”.
Para este último chegou agora a vez de o Brasil, de mãos dadas com a
África e alguns nomes sortidos da mais-ou-menos vanguarda nova-iorquina, servir
de pretexto e ponto de partida para mais um álbum. Assim foram gravados os
habituais batuques brasucas, posteriormente levados para o estúdio, ouvidos,
truncados e acrescidos de posteriores contribuições instrumentais. Do lado
“genuinamente terceiro-mundista”, foram contratados os grupos Olodum e Uakti,
Remy Kabocka, Mingo Araújo, Mazzola Ya Yo de la Nelson, Jorginho Marcalzinho,
Wilson das Neves, Dom Chacal, Elolongue Mbango Catherine, Sidinho e por aí
fora, todos os nomes exóticos ou de pronúncia portuguesa. Aculturados: Milton
Nascimento (canta parte de “Spirit Voices” em português), o percussionista Naná
Vasconcelos e os Ladysmith Black Mambazo (grupo vocal). Vanguardistas ou
simples músicos de estúdio: Adrian Belew (guitarra), Michael e Randy Brecker
(respetivamente sintetizadores e trompete) e Steve Gadd (bateria). Lunáticos:
J. J. Cale (guitarra). Caídos no disco por engano: Ringo Starr. Principais
instigadores: Armand Sabal-Lecco e Bakithi Kumalo (baixo), Vincent Bguini e Ray
Phiri (guitarra), pertencentes à nata dos músicos africanos e com os quais Paul
Simon decidiu as linhas metras orientadoras do trabalho.
O esquema do álbum é, na aparência, simples: sobre as estruturas rítmicas
previamente compostas e produzidas, Paul Simon escreveu as linhas melódicas, de
maneira a poder chamar ao resultado “canções”. Os resultados variam entre o
excelente (“Can’t Run but” – cadência hipnótica de marimbas, algures entre o
minimalismo de Tom van der Geld e o batuque subliminal dos Can, a que se juntou
a guitarra distante e incisiva de J. J. Cale, aqui também ele lembrando o
“metal cristalino” de Michael Karoli, “Further to Fly”, e o espetáculo das
percussões, “The Cool, Cool River”, em tudo semelhante, até nas entoações vocais
de Simon, à vertente mais étnica e percussiva de Peter Gabriel ou ainda ao
tropicalismo etéreo de “Spirit Voices”) e o monótono, em temas como “She Moves
on”, que mais parecem canções do tempo em que fazia dupla com Art Garfunkel,
enfeitadas com ritmo de samba para turista ver.
Experiência neste campo minado das alianças Ocidente-resto do Mundo
tem-na Paul Simon de sobra. Dito de outra maneira: sabe disfarçar bem uma
cantiga mais mal amanhada com um arranjo e produção suficientemente
luxuriantes, de molde a esconder a deficiência. O músico consegue, no entanto,
sair-se bastante bem do empreendimento. Soube reciclar-se sem parecer
oportunista e, sobretudo, parece ter encontrado uma forma elegante e
inteligente de partir à conquista dos sons do Planeta e de os integrar no seu
próprio discurso sem que o processo soe a falso. Ou seja, conseguiu fazer a
ligação entre as duas margens, sem meter água, à custa de uma suficientemente
sólida “Bridge over Troubled Water”. ***