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29/09/2021

Ladino no alto da montanha [Dave Douglas]

JAZZ
ENTREVISTA
PÚBLICO 19 MARÇO 2005
 
Ladino no alto da montanha
 

Mountain Passages é o novo álbum do trompetista Dave Douglas. Inspirado na figura do pai, montanhista e cartógrafo, foi apresentado ao vivo em plena montanha. A música ladina atravessa grande parte do reportório. Conversa com este músico.
            Explique, por favor, a génese de “Mountain Passages”.
           O álbum foi feito especificamente para responder a uma encomenda de um festival no Norte de Itália, o “Sound of the Dolomites”. Pediram-me para criar uma “suite” que pudesse ser tocada no cume das montanhas. Todos os instrumentos tinham que ser carregados até lá, logo não havia piano, nem contrabaixo. Até que comecei a ouvir música na minha cabeça, uma divagação de uma “travelling band”. Daí a instrumentação: trompete, clarinete, tuba, violoncelo, percussão… Também me deram alguma música “ladina”, completamente louca, metade é muito calma, a outra metade é música de copos. No CD tentei oscilar entre estes dois extremos. Mas o mais importante foi imaginar a sensação que seria tocar nas montanhas.
            Que sensação foi essa?
            É difícil de descrever. Sempre que algum de nós tenta descrever o espetáculo, é como um sonho. Foi maravilhoso. Ainda tive receio que o ar fosse demasiado rarefeito para tocar trompete, mas estava tão excitado que não houve problema. E o público também estava quente — é preciso ver que também ele teve que subir a montanha a pé até ao local do concerto.
            Qual foi a influência do seu pai (montanhista e cartógrafo) na criação do álbum?
       É difícil dizer. Ele influenciou-me de tantas maneiras diferentes… Mas o meu pai morreu precisamente quando estávamos a fazer esta música… Foi ele que me fez ter lições de música, quando eu era muito novo…
            “Mountain Passages” pode ser encarado como um mapa?
            Como uma paisagem… Mas voltando ao meu pai: quando estava a escrever a música, pensei na minha própria experiência nas montanhas, o que tinha muito a ver com a minha relação com ele, e, só me apercebi que o álbum lhe era dedicado, quando morreu. Nunca ouviu o disco.
            Como definiria o termo “música da montanha”?
           Penso que toda a boa música fornece mais perguntas do que respostas. Neste caso questões sobre o que nos aconteceria, como seres humanos, ao tocar num local tão longínquo, desligados de tudo. Sem “pager” nem computador…
            A sua música tem elementos étnicos muito fortes. De onde vêm eles?
            Estou aberto a ouvir qualquer coisa. A minha educação como músico de jazz não impediu que estivesse exposto a vários estilos de música. Por exemplo, os álbuns que gravei com os Tiny Bell Trio são jazz, mas influenciados por folk, por uma folk imaginária.
            “Mountain Passages” é um dos seus álbuns formalmente mais tradicionais. Concorda?
           Sim… Segui uma regra que foi a de não ter muitas páginas de música. Arranjei umas folhas mais pequenas e cada peça está confinada a seis linhas de música. Depois passei tudo para uns cartões, mais pesados, para não voarem quando estávamos nas montanhas. Foi este o limite que impus às composições, daí parecerem mais simples.
            Qual é a sua relação com o jazz tradicional? Está dentro ou fora da tradição?
           Estamos todos dentro da tradição. Todos. É impossível não fazer parte dela, mas ao mesmo tempo somos livres para fazermos o que queremos. Por isso a questão é: o que fazer com a tradição? A impressão que tenho é que devemos puxá-la para a frente e continuarmos a desafiar-nos.
            Como é que estende esses limites?
            Cada vez que componho uma peça de música, ponho a mim próprio uma série de questões. Penso sempre previamente no que poderei fazer. É por isso que os meus CD são tão diferentes uns dos outros. Antes de escrever penso sempre no conceito. Tive um ano para pensar em “Mountain Passages”.
            Por que motivo aceitou tocar em álbuns de Suzanne Vega ou de Sheryl Crow?
            Muitos dos discos pop em que toquei foi a convite do produtor Michael Froom. Também toquei no álbum dele. Gosto bastante de pop, não tenho qualquer preconceito quanto a isso. Gosto muito de Björk, Radiohead, Timbaland… Mas com Michael Froom era sempre interessante, não era aquele tipo de sessão em que dizem “toca isto” e depois vamo-nos embora. Não, falávamos muito de cada canção, havia sempre diálogo.
            Fale-nos da sua relação com a eletrónica, que já vem do tempo em que tocava com os Doctor Nerve…
            É uma nova linguagem que está disponível. Na maior parte da minha música tanto uso o computador, como instrumentos mais antigos como o Wurlitzer, o Fender Rhodes ou o “ring modulator”. Mas o que se pode fazer com o computador é fascinante, penso que é tão excitante como tocar saxofone ou cantar. Neste momento um dos meus projetos com o grupo elétrico os Keystone é criar bandas sonoras para filmes mudos de Roscoe “Fatty” Arbuckle, ator e realizador, uma estrela de cinema de 1915/16. Também participa o DJ Aleph.
            Quais são as suas influências?
            Sou influenciado pela pop e pela “world music”. No jazz, Charles Mingus, Thelonious Monk, Eric Dolphy, Ornette Coleman, Cecil Taylor, Wayne Shorter, Woody Shaw, Julius Hemphill, Henry Threadgill, Anthony Braxton… Tudo gente importante para mim. Não pretendo copiar ninguém, mas apenas aproveitar as suas lições. No início de carreira compus jazz moderno mainstream, ao estilo de Joe Henderson e Woody Shaw, mas ao longo dos anos fui descobrindo novas maneiras de me expressar, até fazer um álbum como “In a Lifetime”, uma homenagem a Booker Little.
            A fase elétrica de Miles Davis?
            Claro, foi muito importante. A fase elétrica e a acústica. Gosto de todos os períodos de Miles. Não compreendo as pessoas que apenas ouvem a fase elétrica. É horrível. O homem trabalhou tanto! Dêem-lhe uma chance, por amor de Deus!
            Quais são as suas motivações?
            As motivações são sempre um pouco misteriosas. Neste ponto posso dizer que é ser fiel, honesto comigo próprio, dizer a minha verdade através da música. Gostaria de comunicar aos outros a minha realidade pessoal e, quando se faz isto, há sempre algo de universal no processo.
            Disse que todos os seus discos são diferentes uns dos outros. Há alguma unidade na sua obra?
            Somos o que somos, não há maneira de escapar. A razão por que fiz discos tão diferentes foi por tentar ultrapassar os meus limites. Porque é que tenho de ser isto ou aquilo? Mas, olhando para trás, não são assim tão diferentes. Há em cada álbum uma linha qualquer que passa para o álbum seguinte, há uma sequência. Não espero que toda a gente conheça todos os meus álbuns, mas, à medida que forem conhecendo a minha obra para trás, verão que existe um caminho.
 
Dave Douglas
Mountain Passages
Greenleaf Music
8 | 10
 
Tudo se confunde no ar rarefeito da montanha. Em “Mountain Passages”, de Dave Douglas, a memória do pai cruza-se com as sensações de ter tocado ao vivo na montanha para um público que, tal como os músicos, teve que subir a pé até ao local do concerto, situado a 3000 metros acima do nível do mar. Um “concerto imaginário”, pelas sensações irreais que provocou, mas que, em última análise, revelou ser o ponto de partida para a criação de um álbum que será dos mais convencionais na carreira do trompetista, embora encerre em si não poucas virtualidades. A faceta étnica é uma constante, com temas de música ladina (dos judeus hispânicos do Sudoeste da Península Ibérica) a serem tocados com o recurso a uma instrumentação que resume bastante bem a designação “música da montanha”: a tuba, sobretudo, confere um ar alpino a estas sonoridades, que parecem respeitar, mas ao mesmo tempo desafiar a natureza. Sons que passam como o vento, se erguem como a rocha, correm como a água, se elevam como árvores. Um tema como “Gnarly schnapps” radica no “free” para se libertar num corrupio de sopros selvagem, mas logo a seguir “Gumshoe” tem a delicadeza de um tradicional, com a linha melódica perfeitamente definida e um solo de trompete de rara beleza. “Twelve degrees proof” tem ar de circo e fanfarra e “Palisades”, com precipitação de percussões, a consistência de troncos sobrepostos num padrão abstrato. “Mountain Passages” é a passagem através da altitude e do ar da montanha e uma experiência bem sucedida no campo do jazz alternativo.

A melancolia pode ser uma bênção [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 5 MARÇO 2005
 
O pianista sueco Esbjorn Svensson é o mais abençoado dos músicos desta semana. Paul Motian tem o sabor da tradição, Galliano o da transgressão. E chegou mais jazz português.
 
A melancolia pode ser uma bênção
 
“Viaticum” é a bênção religiosa dada aos moribundos. Mas o E.S.T., trio do pianista Esbjorn Svenssson, está longe de dar o último suspiro. Mesmo assim “Viaticum” é um álbum pautado por uma melancolia difusa, invernal, o menos efusivo, se quisermos, da discografia do trio. Keith Jarrett é influência assumida, mas aqui outras músicas se atravessam no caminho. A música brasileira em “The well-wisher”, o rock progressivo em “The unstable table & the infamous fable”, com algo eletrónico e de Steve Hackett a imitar uma guitarra elétrica que não consta da ficha técnica. É um dos grandes temas do disco de um grupo tão eclético que não se envergonha de citar e misturar Pat Metheny, Deep Purple, Radiohead, Brad Mehldau e os Sweet, também como influências.
            Entre a generalidade de temas melancólicos e jarrettianos, destaca-se pela sensibilidade pop e pelo trabalho hipnótico, quase krautrock, da bateria – “Letter from the leviathan”. “A picture of Doris travelling with Boris” é outra faixa que responde por uma atitude progressiva e onde, uma vez mais, o pianista faz bom uso da eletrónica. Mas o mais estranho de tudo são os vinte minutos, intercalados por um largo período de silêncio, de “What though the way may be long” que na parte final se espraia por uma ambiente de eletrónica e piano ambientais e minimalistas dignos de um Brian Eno, com toques de guitarra meio orientalizantes meio Terje Rypdal. “Viaticum” é, provavelmente, apesar de triste, o mais belo dos discos dos E. S. T.
            Introspetivo e a ligar bem com “Viaticum” é “I Have the Room above Her”, de Paul Motian, secundado por Bill Frisell e Joe Lovano. Aqui não é propriamente tristeza, mas uma serena visão das cores de um céu, diurno ou noturno, que se observa através de uma janela aberta. Lovano respira amplamente no tenor como só ele sabe, Motian revela-se um baterista completo, quem desenha as esquadrias dentro das quais se vão inscrever as melodias. Bill Frisell – suspiro – acrescenta as suas notas esparsas não destoando do ambiente geral de contemplação. Há nesta música uma sabedoria subjacente e esta vem, indubitavelmente, das lições, das muitas lições de história que o baterista deu e recebeu ao longo da sua extensa carreira, com etapas importantes em Coleman Hawkins, Lennie Tristano, Thelonious Monk, George Russell, Paul Bley, Keith Jarrett, Carla Bley e Bill Evans. O tempo e o tema gerais são as baladas, não há grandes revoluções, mas sim a tal justeza de tom que se mantém inalterável do princípio ao fi m. Se os E.S.T. são devedores de outras músicas que não o jazz, Paul Motian e os seus dois companheiros tudo devem ao jazz e à tradição. Claro que uma olhadela mais apressada pode lançar pela janela o anátema “som ECM”, mas mesmo neste caso a rotulação não adquire um sentido pejorativo. É jazz a três, interligado com amor e com um enorme amor pelo que existe entre todos os sons — o silêncio. Às vezes como, em “Osmosis, pt.1” a música cai como chuva, noutras, como em “Dance”, levanta-se alguma poeira do chão.
            Além de Bill Frisell, outro dos nossos ódios de estimação é o acordeão. No jazz. Não que Richard Galliano seja um executante hediondo deste instrumento, que não é – a sua técnica está mesmo acima de qualquer suspeita e “Ruby, my Dear” é até um álbum que se ouve com agrado, sobretudo para os apreciadores de qualquer coisa que está entre o “bal musette”, Piazzolla e o jazz.
            Na embalagem do digipak, é dito que Galliano é um explorador que “toca musette num tempo africano”, com o “espírito be-bop”, a “gravidade do blues”, a “pulsação de um clássico, latino”, o “romantismo de Monk”, a “profundidade de Pettiford” e a “modernidade envolvente de Erik Satie”. É preciso fazer um certo esforço da imaginação para aceitar tudo isto, apesar de o álbum incluir composições, precisamente, de Monk, Pettiford e Satie, mas o que impressiona acima de tudo é a técnica, um balanço constante e uma respiração dos foles que respeita tanto as tradições do jazz como da música popular de raiz mais popular. Mas temos que reconhecer que nos faz uma certa impressão escutar uma “Gnossienne” de Satie tocada em acordeão. Há músicas que parecem ter impressos na sua alma o som de um instrumento, neste caso o piano, e esta é uma delas. O necessário silêncio que inunda cada melodia esotérica do compositor impressionista está ausente. “Ruby, my dear” é agradável mas não impressionante, muito menos importante.
            E vamos a mais uma fornada de jazz português. Miguel Amado, músico que já esteve envolvido nos grupos de Pedro Madaleno e Ficções, lidera no baixo um quarteto composto ainda por Guto Lucena (saxofone), Ruben Alves (teclados) e Vicky (bateria). Estamos no domínio do jazz de fusão, doce, com – uma vez mais, e no que parece ser recorrente em músicos portugueses ligados a esta escola – a influência do jazz rock de Canterbury dos anos 70, de bandas como os Gilgamesh ou os Gong mais tardios. No título-tema o baixo dá o “groove”, em “Terra firme” dá tudo certo com um “riff” dos Soft Machine e “One last day” rima com os National Health. Não que Amado seja exatamente Richard Sinclair ou que Ruben Alves vista a pele do malogrado Alan Gowen, mas é impossível não pensar no jazz progressivo que qualquer das bandas citadas fazia na década de 70. Mais afastados desta área, estão o funky “Mr. Groove box” e a fusão mais convencional, com Guto Lucena em bom plano, de “O vírus”.
            “The Sound of Places”, de Pedro Madaleno, começa por dar nas vistas pelas belíssimas fotografias (de paisagens – lugares) inclusas. Depois é o discurso de Madaleno, sempre suave, que se impõe, tendo por companhia Wolfgang Fuhr (sax tenor), Nelson Cascais (contrabaixo) e Dejan Terzic (bateria). Os temas são narrativos, sem grandes contrastes, construídos sobre “riffs” e motivos em discreta mutação. O terreno é mais escarpado, graças ao saxofone de Fuhr, em “Montanhas” nesta coleção de lugares com som que incluem ainda “Campo”, “Água”, “Faróis na noite” (belíssima balada com a guitarra e o saxofone em sentido diálogo), “Deserto”, “Em órbita” (o jazz mais avançado, aqui com Madaleno em efeitos Sputnik) e “Igrejas” (o tema mais longo, com ar de “jam” pausada).
            Outro guitarrista, Afonso Pais, estreia-se com “Terranova”, ao lado de Carlos Barretto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria). Pais tem um som mais clássico, afirmativo e voluntarioso que Madaleno. “Terranova” ostenta um swing mais trabalhado, menos óbvio, para o qual muito contribui a eficácia da dupla Barretto/Frazão. “Domo da metazona” é um chorinho carioca que serve de demonstração de vários compassos diferentes, e o tema final, “Momentum”, é um original de Monk, executado com total empenhamento e boa dicção e gosto pela ação pelos três músicos, ainda aqui com um arranjo que lhe confere um cheirinho brasileiro e – lá está – um naco do fator Canterbury.
 
E.S.T.
Viaticum
Act, distri. Dargil
8 | 10
 
Paul Motian
I Have the Room Above her
ECM, distri. Dargil
7 | 10
 
Richard Galliano
Ruby, My Dear
Dreyfus, distri. Megamúsica
6 | 10
 
Miguel Amado
Mensagens de Fumo
Escutar, distri. Trem Azul
7 | 10
 
Pedro Madaleno
The Sound of Places
Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10
 
Afonso Pais
Terranova
Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10

10/09/2021

Uns americanos em Paris [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 12 FEVEREIRO 2005
 
A América da música mais livre passou por Paris nos anos 70. Uma nova série francesa recuperou quinze registos da época. Os Art Ensemble of Chigaco ficaram com a fatia maior.
 
Art Ensemble Of Chicago
Certain Blacks
8 | 10
 
Art Ensemble Of Chicago
With Fontella Bass
8 | 10
 
Art Ensemble Of Chicago
Phase One
8 | 10
 
Dave Burrell
After Love
8 | 10
 
Paul Bley
Improvisie
8 | 10
 
Steve Lacy
The Gap
7 | 10
 
Todos ed. America, distri. Universal
 
Uns americanos em Paris
 
America é um novo selo francês, cujo “output” inicial é uma série de 15 discos gravados no início da década de 70 por músicos americanos conotados com o “free jazz”. Característica particular: todos os discos foram registados em Paris, ao vivo ou nos estúdios da Decca. Os autores são Art Ensemble of Chicago (três CD), Paul Bley, Anthony Braxton (dois), Dave Burrell, Emergency, Steve Lacy, Roswell Rudd, Archie Shepp, Alan Shorter, Clifford Thornton Quartet, Mal Waldron com The Steve Lacy Quintet e Frank Wright. A dedicatória do selo é dirigida ao teórico e crítico francês Laurent Goddet.
            Primeiro da série, Art Ensemble of Chicago (AEC), e “Certain Blacks”, registo de 10 de Fevereiro de 1970, por uma formação que, além dos históricos Lester Bowie, Joseph Jarman, Roscoe Mitchell e Malachi Favors, incluía Chicago Beau (saxofone tenor, harmónica, piano e percussões), Julio Finn (harmónica) e William A. Howell (bateria, naquela que foi a sua única sessão gravada). Mais “primitiva” que as posteriores estilizações, como as levadas a cabo na editora ECM. “Certain Blacks ‘do what they wanna’” é uma leitura tribalista do “blues”, com cânticos” e um emaranhado labiríntico de sopros. “One for Jarman”, mais contemplativo, põe em evidência os jogos da flauta, do sax tenor, da harmónica e do piano. “Bye bye baby” é um “espiritual” executado com devoção à pureza original. Sonny Boy Williamson abraça com o seu espírito a totalidade de um disco que põe em prática a velha máxima dos AEC – “From the ancient to the future”.
            No mesmo ano, em Agosto, já com Don Moye, os Art Ensemble gravaram na capital francesa um álbum de parceria com a cantora “soul” Fontella Bass, na altura mulher de Lester Bowie. AEC sempre foi sinónimo de libertação e grito da raça negra, embora, como tivesse reconhecido Lester Bowie, faltasse ao grupo o “estímulo do gueto”. O que implica, em sua substituição, que as “pessoas são o gueto” e as “pessoas do gueto são a música”. A “new thing” dos AEC é a tradução para o jazz do “black power” e isso fica patente na “suite”, semi-improvisada e dividida em dois movimentos, “How strange” e “Ole Jed”. O ambiente é uma St. Louis astral, povoada pela voz teatral de Bass, apitos, risos, sirenes, toda a habitual parafernália sónica e simbólica do grupo, unida num ritual de ligação da selva urbana às energias mais subtis da natureza, personificadas por essas “percussões do sol” feitas de vibrações cristalinas, sinos, metais refulgentes, marimbas e “temple blocks”. Fontella é um pouco a dançarina e o menestrel, a voz da raça, umas vezes em oração, outras meditando, outras ainda gritando ao desafio. “Horn webb”, o outro longo tema, começa por ser furiosamente percussivo para a seguir se aplacar em introspeção, numa espécie de balada que aos poucos vai sendo fragmentada e revelando as partes constituintes, sob a “drone” devocional de um vibrafone e com o trompete de Bowie a voar como uma grande ave. O “free”, nos AEC, mais do que combinação ou adição de loucuras particulares, é sempre a celebração, festiva ou de protesto, de um ato de comunhão e criatividade coletivas.
            “Phase One”, terceiro capítulo parisiense do grupo, tem como data de gravação Fevereiro de 1971. Uma vez mais, dois temas longos, “Ohnedaruth” e “Lebert Aaly”, anagrama de Albert Ayler, a quem é feita dedicatória. O primeiro é “free jazz” na aceção mais corrente do termo, feito de longas dissertações do trompete de Bowie e os saxofones de Mitchell e Jarman, com a bateria a substituir as paisagens tímbricos das múltiplas percussões. Paradoxalmente, a questão, várias vezes formulada, da opção do grupo por uma quantidade incontável de instrumentos e artefactos sonoros tem aqui menos relevância. O tema dedicado a Ayler é, por outro lado, como não podia deixar de ser, a incursão numa outra divisória do largo campo de manobras dos AEC. Os espíritos e fantasmas aylerianos são desfraldados como bandeiras, com uma pureza quase “naïf” que evoca a pré-história do jazz, com o “gospel” a falar, observado à luz do grito, da inquietação e da aspiração religiosa. Mais a menos a meio do tema, sobrevém uma reordenação. Os pequenos sons mostram-se e escorrem como gotas de chuva numa placa de vidro. Deus e o Céu respondem finalmente e o grito é aplacado, quando os universos dos bichos, dos homens e dos anjos retomam, cada um, o seu lugar.
            Dois AEC, Roscoe Mitchell e Don Moye, participam em “After Love”, do pianista Dave Burrell, um dos mais importantes do “free”. Alan Silva (violoncelo acústico e elétrico, violino), Ron Miller (contrabaixo, bandolim), Michel Gladieux (contrabaixo) e um segundo baterista, Bertrand Gauthier, compõem o restante “line up”. Burrell, pianista de extremos e aluno atento, quer da história antiga, quer das inovações introduzidas por Coltrane, Sun Ra, Cecil Taylor e Ornette Coleman, separa e recompõe vertiginosamente todos esses componentes. O seu piano vai de Jelly Roll Morton a Taylor, passando por Ellington e Monk, por vezes amassando todos eles num acorde ou numa corrida lancinante. Mitchell e Silva seguem ou antecipam o seu delírio ininterrupto, mas a música está longe de se subordinar ao caos. Quando um bandolim sorri a quebrar o frenesim de “After love, part 1 – Questions and answers”, a música percorre as ruas como o circo que desce à cidade, numa antecipação do que, anos mais tarde, faria o excêntrico Eugene Chadbourne. “My march” soa como Monk com febre. Não é tanto a noite como o crepúsculo, quando as criaturas da floresta saem das suas tocas e também elas cantam o seu louvor. O saxofone de Mitchell conta com serenidade a sua história, mas Silva, no violino, como sempre, mostra-se inquieto. Em ritmo de marcha, a flauta e o contrabaixo, com Burrell finalmente abandonando-se às notas da alegria, anunciam o advento da alvorada.
            Noutro lado da casa, o pianista canadiano cumpria em 1971 as promessas feitas em 1967, no rock, pela explosão psicadélica e pela exploração intensiva dos teclados eletrónicos. “Improvisie” é jazz psicadélico, com Bley a socorrer-se exclusivamente do piano elétrico e do sintetizador, acompanhado por Annette Peacock (piano, piano eléctrico, sintetizador, baixo elétrico e voz, sua parceira no projeto The Bley-Peacock-Synthesizer- Show) e Han Bennink (percussão). Anos mais tarde, já na década de 90, Bley voltaria aos sintetizadores em “Synth Thesis”, embora numa veia mais clássica. Ao contrário de Sun Ra, que usava o “moog” como demiurgo de um cosmos em constante formação e expansão, com recurso intenso aos registos mais “noisy”, Bley servia-se aqui da mesma máquina como fábrica de sonoridades mais variadas e subtis, numa expansão mental e musical idêntica a outras provenientes do “free rock” mais planante. “Touching” (Bley gravaria outras versões deste tema) é mais telúrico e lunático, com eletrónica arrojada, mas a improvisação soa, porventura, menos emocionalmente concentrada que no título-tema. Bennink, esse, diverte-se a criar ritmos-brinquedo, por onde deslizam, como em escorregas, os sintetizadores.
            “The Gap”, de 1972, é um trabalho do saxofonista soprano Steve Lacy, com Steve Potts (saxofones soprano e alto), Irene Aebi (violoncelo), Kent Carter (contrabaixo) e Noel McGhie (bateria). O núcleo central do álbum, “The thing”, inspirou-se na pintura de Jean Fautrier, numa última versão designada “sinfonia”, para improvisação que apenas deverá observar parâmetros como “saídas”, “entradas” ou “quantidades” como “poucas coisas”, “muitas coisas”, “coisas desconectadas”, “só uma coisa”, “nada” e “tudo”. Com uma partitura como esta é óbvio que a liberdade é total, num sentido abstrato onde os encontros, “coisas”, “entradas” e “saídas” parecem eventualmente fortuitos.
            A apresentação gráfica desta “América” parisiense, superficialmente apelativa, optou por capas com padrões pictóricos do mesmo tipo. A leitura dos textos é prejudicada por manchas de cor que escurecem os caracteres, e a reprodução das capas originais surge numa versão pobre e deficientemente impressa a preto e branco. Felizmente, a música, está muitos furos acima.

07/09/2021

Uma luz para curar o mundo [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 29 JANEIRO 2005
 
Há uma música que pretende sarar os males do mundo. William Parker e Alice Coltrane são bons médicos.
 
William Parker & The Little Huey Creative Music Orchestra
Mass for the Healing of the World
Black Saint, distri. Dargil
8 | 10
 
David Friesen Trio
Midnight Mood
Intuition, distri. Dargil
6 | 10
 
Alice Coltrane
Translinear Light
Impulse!, distri. Universal
7 | 10
 
Henning Sieverts
Hidden C
Intuition, distri. Dargil
7 | 10
 
Trio Rouge
Trio Rouge
Intuition, distri. Dargil
7 | 10
 
Kyle Eastwood
Paris Blue
Candis, distri. Dargil
3 | 10
 
Uma luz para curar o mundo
 
Há músicas que dão febre e músicas que curam. William Parker criou uma missa, apresentada e gravada ao vivo em Verona, Itália, em 1998, a que chamou “Mass for the Healing of the World”, com The Little Huey Creative Music Orchestra, composta por 16 elementos, incluindo Rob Brown (sax alto), Darryl Foster (saxes soprano e tenor), Roy Campbell (trompete), Dave Hofstra (tuba), Cooper Moore (piano) e Susie Ibarra (bateria e timbalão). “Suite”, amputada posteriormente de algumas partes, inclui recitativos, cânticos vocais (por Aleta Heyes) e sequências que ora privilegiam as intervenções solísticas, ora se ampliam em imensas massas de magma instrumental. A música deriva amiúde para um discurso “free”, poderoso, com o piano de Cooper Moore a articular-se num estilo próximo de Cecil Taylor e o “ensemble” a estrelar-se por vezes da mesma maneira que a Arkestra de Sun Ra, nos anos 60 e 70. Numa obra que se pretende libertadora e instiladora de graça, há tensões que se acumulam (“Mysticism”), um lado devocional e a canalização para o alto da energia. Em “Response (muezzin’s call)”, pressente-se mesmo uma vertente cósmica quando Darryl Foster sopra no seu soprano através de um sintetizador, criando uma respiração eletrónica espacial. Roy Campbell faz o trompete elevar-se em “Second reading” e “Willows” oscila entre o meditativo e a fusão progressiva, com solos, finalmente pacificados, de Campbell e Foster. A missa termina em tom jubilatório, em passo de dança, com “Cantos (love God)”, onde todas as tensões se libertam para dar lugar ao voo, à entrega, ao amor e à alegria.
            David Friesen está do outro lado do monte. Ou da planície. “Midnight Mood”, gravado em 2002 ao vivo num clube de Estocolmo, em trio com Randy Porter (piano) e Alan Jones (bateria), mostra um contrabaixista elegante e conciso (tocou com Dexter Gordon, Joe Henderson, Stan Getz, Art Blakey, Roy Haynes, Woody Shaw, Freddy Hubbard, Herb Ellis, John Scofield, Chick Corea, Mal Waldron, entre muitos outros), que soube escolher bem o material — composições de Joe Zawinul, John Coltrane, Michel Legrand, Irving Berlin, Johnny Mercer e J.J. Johnson — e tocá-lo com sensibilidade. É jazz onde os músicos procuraram “verdade”, “originalidade”, “inteligência”, “ingenuidade” e “honestidade”. Sente-se, sobretudo, uma grande pureza, num álbum nascido sem ensaios nem arranjos. Afaga, mas não arde nem cura.
            Quem nunca escondeu os intuitos terapêuticos, espirituais e devocionais da sua música foi Alice Coltrane. “Translinear Light” é o regresso da viúva de John Coltrane, 24 anos depois do seu último disco, após um período de retiro inteiramente votado à vida espiritual e meditativa no seu “ashram”. Alice nunca foi uma grande música, no sentido técnico do termo, e álbuns como “Ptah the El Daoud”, “Journey in Satchidananda” e “Universal Consciousness” valem sobretudo pela inegável espiritualidade que deles se desprende, filtrando de modo particular e exótico os ensinamentos e atitude do seu marido. Aos poucos, Alice foi-se afastando progressivamente do jazz para se aproximar do “raga” indiano, servindo-se da harpa, do piano e do órgão como instrumentos da sua liturgia orientalizante. “Translinear Light” é louvável, sob vários aspetos. Se, aos 67 anos, a sua espiritualidade está mais forte do que nunca, é também a forma de abordar os sons que se depurou, tornando-se ainda mais etérea.
            Neste disco, Alice não toca harpa. No piano, suavizou os antigos e martelados “clusters”, condensando o “touching” de modo bem mais subtil, de um lirismo extático em “Triloka”, em duo com o contrabaixo de Charlie Haden. Mas é no órgão Wurlitzer que o seu estilo, inconfundivelmente Influenciado por Terry Riley, dá origem a uma beleza transcendental, na dervíxica dança de abertura, o tradicional indiano “Sita ram”, ou nos swingantes aportamentos de “This train”, em trio com Haden (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria). Sun Ra poderia ter tocado assim se não fosse louco. “The hymn”, com Alice no sintetizador e um dos seus filhos, Oran Coltrane (sax alto), é jazz “new age” à maneira de Garbarek. “Crescent”, de John Coltrane, apresenta o outro filho, Ravi (que também produz o álbum), a tentar subir pela escada deixada pelo pai, mas é noutra composição de “Trane”, “Leo” que os padrões minimalistas do órgão e o tenor de Ravi se combinam no melhor jazz, sob a égide da bateria, simpática com a força do tema, de DeJohnette. “Translinear Light” termina com um cântico por elementos do seu “ashram”, The Sai Anantam Ashram Singers, com dedicatória e agradecimento a Deus que criou todas as criaturas vivas. A expressão de Alice Coltrane, na capa, diz tudo.
            Pouco se sabe de Henning Sieverts, contrabaixista e violoncelista sediado em Munique. Formação clássica, quatro álbuns gravados, um dos quais inspirado no canto dos peixes dourados. Henning cultiva, a par do rigor, um certo mistério e “Hidden C” faz prova disso. É um jazz de interiores, com um tipo de contemplações que já foram comparadas ao Jimmy Giuffre dos primeiros álbuns ou à colaboração, nos anos 60, de Paul Desmond e Gerry Muligan. Espalhados pelo alinhamento, encontram-se seis intrigantes miniaturas intituladas com o tal “Hidden C” (um “dó” escondido?), que podem ir de “riffs” circulares a curtos solos de contrabaixo e “nursery rhymes” surreais executadas com brinquedos. Matthias Nadolny, no sax tenor, Glauco Venier, no piano impressionista, John Hollenbeck, na bateria subtil, e Peter O’Mara, elemento da formação dos anos 90 dos Passport, na guitarra sombreada, são os parceiros do contrabaixista no mistério, todos bons coloristas. “Hidden C” só sai do quarto para o exterior, para paisagens povoadas por criaturas de sonho, quando a vocalista de alma pop mas bom “scat”, Maria Pia de Vito, canta histórias, tão diferentes do resto do disco, como “Litte seahorse” e “Le chien du tambour”.
Fora da tradição do jazz historiado nos compêndios, mas dentro da música popular, está a estreia em disco dos Trio Rouge, formado por Lucilla Galeazzi, conhecida nos meios folk italianos, Vincent Courtois (violoncelo) e Michel Godard (tuba e serpentão, acompanhante habitual de Rabih Abou-Khalil). O produtor ficou encantado quando os ouviu atuar num dia de chuva, no Festival de Jazz de Talos, em que os cabeças de cartaz eram os Italian Instabile Orchestra. “Trio Rouge” insere-se em várias tradições de Itália e recupera canções populares da resistência contra o fascismo, durante a II Guerra Mundial, como “Bella ciao”. A voz de Galeazzi tem drama e espírito da terra. Godard e Courtois envolvem-na em lençóis e cobertores que estão para o jazz como estava, por exemplo, Jan Garbarek quando gravou “Rosensfole” com a cantora Agnes Buen Garnas. Ou seja, estão só um bocadinho. Muito pequenino...
            Também não chega ser-se filho de uma estrela de cinema para não se ser pequenino como músico. Kyle Eastwood é filho de Clint Eastwood e gravou “Paris Blue”, um álbum de fusão com tudo o que este género pode ter de pior, “clichés” mil vezes usados e gastos, “tapetes” sebosos de “strings” e batidas de música de dança a metro. Uma balada como “Solferino” soube sacar a dose de intimismo que se lhe pedia, mas até aqui sabe a truque de mimetismo. O pai, Clint, toca “whistle” num dos temas, mas devia era ter dado uns bons açoites ao filho.

14/07/2021

Convénio dos espíritos [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 15 JANEIRO 2005


 Uma orquestra de notáveis do jazz inglês provou que a saudade não é palavra vã. Quando a Dedication Orchestra homenageou em dois trabalhos de fundo a memória dos The Blue Notes sul-africanos.
 
Convénio dos espíritos
 
Em meados dos anos 60, chegou à Europa um grupo de músicos oriundos da África do Sul que, estabilizado em Inglaterra, viria a fertilizar o jazz que nessa década se fez nesse país. Chamavam-se The Blue Notes e eram constituídos por Mongezi Feza, Dudu Pukwana, Nick Moyake, Kohnny Dyani, Louis Moholo e Chris McGregor, aos quais se viria a juntar, já em Inglaterra, Harry Miller. Já morreram todos, à exceção de Moholo. Os The Blue Notes fizeram furor, entre 1966 e 1968, nas velhas instalações do clube de Ronnie Scott. Desfeitas as notas azuis, McGregor formaria a fenomenal “big band” Brotherhood of Breath, enquanto os restantes elementos se envolveriam em projetos pessoais. Pukwana com os Assagai e Zila, Dyani com os Witchdoctor’s Son, Moholo com os Viva La Black e Harry Miller com os Isipingo, enquanto Feza se juntava a Robert Wyatt, dos Soft Machine. Todos eles deixaram obra excitante gravada. Desaparecidos os músicos, os seus parceiros ingleses sentiram a necessidade de os homenagear, juntando-se para tal numa outra “big band”, a Dedication Orchestra ,que gravaria em 1992 o álbum “Spirits Rejoice”, ao qual se seguiria, dois anos mais tarde, o duplo “Ixesha”.
            A formação é de sonho: Phil Minton, Maggie Nichols, Julie Tippetts, Harry Beckett, Kenny Wheeler, Django Bates, Malcolm Griffiths, Radu Malfatti, Paul Rutherford, Neil Metcalfe, Lol Coxhill, Ray Warleigh, Elton Dean, Evan Parker, Alan Skidmore, Paul Rogers, Louis Moholo, Keith Tippett, entre outros, estando igualmente presentes, como arranjadores, Mike Westbrook e John Warren. Falta alguém?
            A música é igualmente monumental, evocando a grandeza da Brotherhod of Breath (ou, noutra medida, da experiência Centipede), com composições assinadas por Miller, Dyani, Pukwana, McGregor, Feza e – dos vivos – Moholo. Música luminosa, vívida, sumptuosa, característica do jazz inglês, com momentos de livre improvisação, a solo ou coletiva, enquadrados em estruturas composicionais perfeitamente delineadas. Tippett contrapõe os cristais afiados do seu piano às explosões quentes dos sopros, a cânticos de coloração étnica e espiritual. Duas curiosidades são a radical improvisação vocal a três de “Introduction to you ain’t gonna know me” e o arranjo, com largo espaço solístico para a flauta de Metcalfe, de “Sonia”, de Mongezi Feza, diferente daquele que consta de “Ruth is Stranger than Richard”, de Robert Wyatt. Os espíritos dos idos e dos presentes reuniram-se de facto nesta evocação de sons e afetos.
            “Ixesha” (“tempo”) é ainda mais ambicioso, repartindo-se por dois álbuns com, de novo, composições dos elementos dos The Blue Notes e arranjos repartidos. No “line up” as entradas mais sonantes são as de Bergin, também músico dos Viva La Black, e Henry Lowther. A música estende-se por solos mais longos, numa diversidade que incorpora as raízes africanas, a liberdade do “free” e as inovações do “bop”. Fascinante verificar como estas três vertentes se conjugam numa faixa como “The serpent’s kindly eye”, de Chris McGregor, com arranjo de John Warren. Julie Tippetts rubrica a vocalização, tão melancólica como a do seu próprio “rock bottom”, chamado “Sunset glow”, em “Lost opportunities”, de Harry Miller: “Near the end of lost dreams/There is a place to be found in the heart/Where experience gathering is torn apart”, canta como se chovesse. Apesar de escrito por sul-africanos, o melhor jazz inglês está aqui.
            Gravado três anos antes de “Spirits Rejoice”, “Unlimited Saxophone Company” é outro bom exemplo de bom jazz inglês. A liderar o projeto está o saxofonista alto Elton Dean, que se notabilizara nos anos 70, nos Soft Machine. Os outros três saxofonistas são Paul Dunmall, dos Mujician (tenor e barítono), Simon Pickard (tenor) e Trevor Watts (alto), estando o ritmo a cargo de Paul Rogers (contrabaixo) e Tony Levin (bateria). Apesar de a gravação, registada ao vivo no Covent Garden Jazz Saxophone Festival, nem sempre ostentar a nitidez desejada, este conjunto de saxofones soa convenientemente poderoso e inventivo, a revelar a faceta menos fusionista de outros projetos do ex-Soft Machine (com quem tocou nos álbuns “Third”, “4th” e “5”) como Soft Heap e In Cahoots. Por vezes, o registo é um pouco o de uma “blowing session” casual (o contrário da Dedication Orchestra), mas composições como “Small strides” e “One three nine” repõem a ordem e o equilíbrio na desbunda saxofonística.
            Outras histórias são contadas pelo histórico Phil Woods em “Here’s to My Lady”, de 1989, recuperado em formato super áudio CD. Neste seu primeiro registo para a Chesky o saxofonista apresenta uma versão pessoal em temas deliberadamente curtos (três em clarinete) de “standards” de Count Basie ou Bill Evans (o aclamado “Waltz for Debbie”), ou dedicatórias a Johnny Hodges, influência assumida, e Charlie Parker, de quem era fervoroso admirador. Sem o ímpeto inovador dos anos 60, com a sua European Rhythm Machine, Woods cultiva aqui a sua veia mais terna, ao lado do seu velho companheiro dos tempos da Prestige, o pianista Tommy Flanagan. Exemplares da sua aproximação à balada são “Another love song”, “Butter” ou “Blue and sentimental”, onde cita as virtudes, menos conhecidas, de Lester Young, como clarinetista. “Não se trata de técnica”, diz, “mas da economia de notas”. “Here’s to My Lady” cinge-se ao essencial, na vertente “bop” mais contemplativa.
            Outro registo ao vivo, no Keystone Korner, em São Francisco, 1977, devolve-nos, em terceiro volume de recolhas, gravações ao vivo do trompetista Woody Shaw. Com Steve Turre (trombone), Mulgrew Miller e Larry Willis (piano, em faixas diferentes), Stafford James (contrabaixo) e Victor Lewis (bateria). Shaw é um instrumentista polivalente, pouco dado a excessos mas a sua mestria harmónica é notória, incorporando em “Teotiuacan” elementos de música mexicana antiga. “Organ grinder” é dedicado ao organista Larry Young e, no todo, este “Live Volume Three” não destoa na prateleira de um apreciador completista de pós-“hard bop”
            James Carter, saxofonista polivalente (soprano, tenor e barítono), soa moderno no seu registo de 2001 no Baker’s Keyboard Lounge, de Detroit. Aqui o jazz recupera “clichés” e maneirismos com os pés fincados no “rhythm‘n’blues” e no “funk”, que Carter espezinha para se divertir a solar divertida e desbragadamente por cima. Gerald Gibbs, no órgão, é mesmo “lounge” em “Soul street”, e se Carter se revela um bom soprano no “Tricotism” de Oscar Pettiford, é quando o convidado David Murray (quando calha a excessos também está sempre disponível...) se lhe junta no tenor, como em “Freedom jazz dance” que as coisas se incendeiam. A fechar, “Foot pattin’” é mesmo uma festa de tenores, com Carter, Murray, Franz Jackson e outro notável, Johnny Griffin, a swingarem como doidos.
 
The Dedication Orchestra
Spirits Rejoice
Ogun, distri. Trem Azul
9 | 10
 
The Dedication Orchestra
2xCD Ogun, distri.
Trem Azul
9 | 10
 
Elton Dean
Unlimited Saxophone Company
Ogun, distri. Trem Azul
7 | 10
 
Phil Woods
Here’s to my Lady
SACD Chesky, distri. Megamúsica
7 | 10
 
Woody Shaw
Live Volume Three
HighNote, distri. Zona Música
7 | 10
 
James Carter
Live at Baker’s Keyboard Lounge
Warner Bros., distri. Warner Music
7 | 10

08/09/2020

Natal é tradição [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 18 DEZEMBRO 2004

Natal é época de paz. Por isso, nas nossas propostas de prendas, apenas o bom velho sabor da tradição.

Natal é tradição

Louis Armstrong
What a Wonderful World
CD + DVD Milan, distri. Universal
Foi um dos pais do jazz e dá-se bem com o Pai Natal. O seu jazz festivo vai bem com a quadra e “What a Wonderful World” oferece motivos de sobra para agradar aos apreciadores de jazz mais tradicional. Mesmo se o mundo não é tão maravilhoso assim, a música de Armstrong é-o. São dois CD, um para ouvir, com um punhado de clássicos e participações de Ella Fitzgerald, Louis Jordan, Bing Crosby, Jack Teargarden e os Mills Brothers, e um DVD para ver. Neste último encontram-se 35 minutos de filme dos arquivos do Hot Club de França, “The Young Louis Armstrong”, dois “sketches” para cinema, o “medley” “Hello Louis”, com Danny Kaye e Katharina Valente presentes na celebração dos 53 anos de carreira de “Satchmo”, “On the Mark Twain”, sessão filmada e gravada a bordo do navio com este nome, e “Eternal Louis Armstrong”, um dos derradeiros concertos, filmado para a televisão alemã em 1969. Música e imagens felizes.

Carol Sloane
Whisper Sweet
HighNote, distri. Zona Música
No meio dos “carols” natalícios destaca-se uma Carol a sussurrar-nos docemente canções de amor. Carol furou nos anos 60, na Columbia, a concorrência de Bob Dylan e Barbra Streisand. Gravou álbuns de canções que já tinham passado pelas vozes de Cármen McRae (de quem foi amiga), Frank Sinatra, Ella Fitzgerald (de quem também foi amiga) e Louis Armstrong. “Whisper not”, tema dos anos 30 do pianista “stride” James P. Johnson, encontrado num álbum de Jimmy Rowles, serviu de mote a esta sessão efetuada em Nova Iorque a seguir a uma estada de seis noites no Village Vanguard. Carol toma toda a série de liberdades com as melodias, mas a doçura do seu vibrato confere um sabor especial a canções tão belas como “More than you know” e “You brought a new kind of love to me”. Norman Simmons, no piano, e Paul Bollenback são desenhadores à altura e Grady Tate dá lições de suavidade na bateria. Dê folga às Kralls e Monheits e tome nota desta Carol.

Django Reinhardt
L’Or de Django
2xCD Dreyfus, distri. Megamúsica
O “swing” melancólico deste guitarrista cigano que viveu entre 1910 e 1953 pode causar estados de profunda introspeção, mas a sua beleza, quase intangível, pode servir de “chill out” ao coração fatigado pelo lado mais consumista do Natal. Este “ouro”, agora editado em “mastering” de 24 bits, foi recolhido em Paris nos anos 30 e 40 com a participação de músicos da orquestra de Duke Ellington e inclui dois temas (“Ride red ride” e “A blues riff”) de um concerto de Duke em Chicago com Django como solista convidado. Mas a grande maioria dos temas e os que nos levam de arrasto são aqueles em que o guitarrista “manouche” tem a seu lado o violinista, também francês, também cigano, Stephane Grappelli, com quem formou o histórico quinteto do Hot Club de França. Há sempre uma nota cinzenta na música de ambos, mesmo quando, levados pelo “swing”, parecem duas crianças acabadas de sair do paraíso.

Herbie Mann
Caminho de Casa
Chesky SACD, distri. Megamúsica
Casa é onde o coração está, costuma-se dizer. O coração do flautista Herbie Mann está em muitos lugares, em África, no Japão, na Europa, em Cuba e, principalmente, no Brasil — “Entre todos o lugar que mais me toca o coração” — até onde viajou pela primeira vez em 1961. Aí descobriu o lirismo de uma música que combinava, diz, “melodias incríveis”, “harmonias maravilhosas” e um “ritmo fervilhante”. Mann voltou ao Brasil no ano seguinte e gravou Sérgio Mendes e o sexteto Bossa Rio. Na gravação esteve presente um tal Tom Jobim que pela primeira vez abriu a boca para cantar “Samba de uma nota só”. A atração pelo Brasil manteve-se intocável e, depois de colaborações com Nana Vasconcelos e Claudio Roditi, Mann gravou este “Caminho de Casa” em 1990 com músicos americanos e brasileiros, no grupo denominado Jasil Brazz, Brasil e jazz. As composições são de Nélson Ayres, Dori Caymmi, Roberto e Erasmo Carlos, Moraes Moreira/Fausto Nilo, Milton Nascimento e Ivan Lins, em quem o flautista viu uma evolução harmónica mais complexa relativamente a Jobim. Neste caminho a bossa nova passa como uma brisa, saudavelmente recriada por uma das flautas mais doces e aéreas do jazz.

Chet Baker & Gerry Mulligan Quartet
The Original Chet Baker & Gerry Mulligan Quartet
4xCD Disconforme, distri. Trem Azul
Chet tocava trompete como se ingerisse açúcar envenenado. Mulligan mantinha a serenidade, mesmo nos maiores abismos do seu saxofone barítono. O trompetista, com o seu melodismo quase soporífero, era um dos “enfants terribles” do “cool”. Mulligan, depois da sua colaboração com Miles Davis e Gil Evans em “Birth of the Cool”, tornou-se igualmente uma das figuras de proa do “som West Coast”. Sobre ele afirmou Dave Brubeck, outro dos heróis do “cool”, que “ao ouvi-lo se sente como se o passado, o presente e o futuro do jazz funcionassem ao mesmo tempo”. Juntaram-se os dois num quarteto sem piano que fez história em 1952/53 e cuja totalidade de gravações, ao vivo e em estúdio, constam da presente reedição. Também incluídas estão sessões do trio e do “tentette” (com Bud Shank) do saxofonista, bem como a participação de Lee Konitz, Chico Hamilton e Red Mitchell. “Toco cada ‘set’ como se fosse o último da minha vida”, disse o trompetista. Mulligan foi o seu contraponto perfeito nesta colaboração tão curta como mágica.

Vários Artistas
Blues Jam in Chicago, vols. 1 & 2
Blue Horizon, distri. Sony Music
Antes de serem uma aberração abençoada pelo “mainstream” e pelas estações de rádio FM, os Fleetwood Mac eram uma banda de blues progressivo e fantasmagórico e antes de serem “progressivos” e “fantasmagóricos” eram apenas uma banda de “blues” sem outros adereços. Toda a fase inicial da sua discografia, “Fleetwood Mac”, “The Original Fleetwood Mac”, “Pious Bird of Good Omen”, é constituída por um honesto “blues” branco que, se não chegou a fazer história como o de John Mayall, escavou bem fundo as fundações do que haveria de se seguir. Nessa linha, os membros do grupo, Peter Green, Danny Kirwan, Jeremy Spencer, John McVie e Mick Fleetwood, juntaram-se numa sessão em 4 de Janeiro de 1969 com os genuínos “bluesmen” da editora Chess, Otis Spann, Willie Dixon, Shakey Horton, J.T. Brown, Buddy Guy, Honeyboy Edwards e S. P. Leary. E foi assim que durante um dia os Fleetwood Mac se transformaram numa banda de “blues” negro.

Joel Xavier & Ron Carter
In New York
Ed. JXP
Ron Carter, o mítico contrabaixo americano convidado a participar nesta sessão realizada em 24 de Setembro deste ano com o guitarrista português, afirmou que, poucas vezes, ao longo da sua longa carreira teve encontros que lhe proporcionassem tanto “divertimento” e “gratificação musical” como este. É bom ouvir destas coisas para o ego deste guitarrista, que gravou “Latin Groove”, com Michael Camilo, Larry Coryell e Arturo Sandoval, “Lusitano”, com Richard Galliano e “Lisboa”, com Toots Thielemans. Galliano e Thielemans também não lhe poupam elogios. A sessão nova-iorquina decorreu com serenidade, discorrendo entre o jazz mais suave, o novo tango e um espírito português que tem tudo a ver com o fado. Xavier privilegia os ambientes introspetivos e Carter evita pôr-se em bicos de pés. Diálogo sentido, no mais fraterno sentido da palavra.

02/09/2020

O espião que veio do frio [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 4 DEZEMBRO 2004

O alemão Peter Brötzmann lidera os caminhos mais livres da música europeia atual. Mas é com o núcleo duro da cena de Chicago que as suas “imagens” e “sinais” se impõem.

O espião que veio do ‘free’

Anos 60. A guerra fria. O “free jazz” explodia na Europa calcando os alicerces do “bop” numa aliança entre idealismo, utopia e revolução. Nalguns casos, cacofonia. Um dos músicos mais enraivecidos era um espião oriundo de Berlim e chamava-se Peter Brötzmann. Depois de passar os anos 50 a examinar a tradição e a tocar em bandas de Dixieland, envolveu-se no movimento Fluxus, aderindo às premissas do “free jazz”. Os primeiros contactos e as novas liberdades, tomou-as ao lado de Peter Kowald, Michael Mantler, Carla Bley e a Globe Unity, de Alexander von Schlippenbach. Em 1968 assina em nome próprio o extraordinário “Machine Gun”, com William Breuker, Evan Parker, Fred Van Hove, Buschi Niebergall, Peter Kowald, Han Bennink e Sven Ake Johansson, a nata dos libertários. No ano seguinte ajuda a formar a editora FMP (Free Music Productions) e, já na década seguinte, toca com Don Cherry e Albert Mangelsdorff. Nos anos 80 encontramo-lo a torrar no centro de um triângulo em brasa formado por Ronald Shannon Jackson, Sonny Sharrock e Bill Laswell, os Last Exit. Era o sinal de aproximação ao circuito americano e a ligação à corrente “downtown” de Nova Iorque. Na FMP integra os Die Like a Dog e grava com Barre Phillips, Gunter Sommer, Werner Ludi, Fred Hopkins, Rashied Ali e Hamid Drake entre outros. Em “The Marz Combo”, de 1992, está rodeado por uma formação pouco usual que integra Toshinori Kondo, Paul Rutherford, Larry Stabbins, Caspar Brötzmann, William Parker e outros dois “downtowners”, Nicky Skopelitis e Anton Fier. Grava em solo absoluto, “Nothing to Say” e, mais importante para chegarmos ao assunto que nos ocupará a seguir, reúne pela primeira vez em 1997, para a editora Okka Disk, o projeto The Chicago Octet e Tentet, ao qual transmite todas as informações reunidas e onde a sua música, inspirada na estética do grito de Albert Ayler mas modulada e expandida de forma singular, se explana na complexidade de uma “big band”. O Tentet interpreta composições dos seus elementos e o seu “line up” é uma lista de luxo em que pontificam os nomes de Joe McPhee, Jeb Bishop, Ken Vandermark, Mats Gustaffson, Mars Williams, Fred Lonberg-Holm, Kent Kessler, Michael Zerang e Hamid Drake.
            Os dois mais recentes capítulos do Tentet foram objeto de edições separadas, respetivamente intituladas “Images” e “Signs”, embora respeitando ambos as mesmas sessões, realizadas nos Airwave studios de Chicago, em Junho de 2002, e no Vasteräs Konserthus, na Suécia, em Novembro do ano passado.
            “Images” é uma obra portentosa. O primeiro tema, “All the things being equal”, é um manifesto de 37 minutos da autoria de Ken Vandermark. Como exercício de escrita torna-se fascinante acompanhar as construções/desconstruções da secção de sopros, num movimento incessante que parece buscar a perfeição. Não é “free jazz”, os diferentes módulos rítmicos/melódicos ora se motivam em “riffs” abrasivos ora se metamorfoseiam em fórmulas menos circulares de onde os solistas partem para as suas improvisações. Brötzmann, Gustafsson, Vandermark e Williams, os quatro saxofonistas, têm conceções complementares, sabendo explorar com disciplina a fragmentação e a aglutinação. As “coisas” de “All things being equal” obedecem ao princípio aristotélico da ação/transformação, numa aproximação e exploração à forma perfeita que permanece no seu âmago. Acompanhando o caminho dos músicos, ora nos aproximamos ora nos afastamos desse centro, focagem gradual que é também uma adaptação de modos de audição ativa. Depois da marcha coletiva e do remoinho dos sopros o violoncelo de Longberg-Holm introduz a serenidade e a meditação, usando para o efeito fórmulas classizantes. Os lamentos finais, jogados nas respirações abruptas e no desmantelamento das cordas, propõem a chegada a um horizonte longínquo que é tanto musical como ontológico. Um saxofone fica a chorar sozinho - a solidão do “um” perdido na multiplicidade dos fenómenos. Até a marcha do mundo se reatar e o círculo se fechar segundo a lei do eterno retorno. Os Tentet viajam longe para regressar à origem com uma nova visão (do bop?) e armados de novos ensinamentos. O segundo título, “Images”, do próprio Brötzmann é mais fechado e sombrio. A massa sonora irrompe com menos fulgor, mais sincrética do que no tema de Vandermark. O silêncio torna-se opressivo e os momentos de tensão/distensão arrastam-se numa profusão de reflexos e pontuações, cabendo aqui destacar o papel determinante do trabalho percussivo de Zerang e Drake. “All things…” é um polígono gigantesco, “Images” revela-se como um ângulo cujos lagos não páram de estender-se. Brötzmann é mais linear e menos “orquestral” que Vandermark mas as suas imagens têm o poder de perturbar.
            Apesar de serem retiradas das mesmas sessões de “Images”, as três composições de “Signs” mostram um lado diferente, mais camarístico, da música do Chicago Tentet que assim confirma inequivocamente a sua vocação de veículo de interpretação. “Bird notes” de Mats Gustafsson inclui dilaceração de notas pelo trombone e estertores vários antes de derivar para um ambiente exótico próximo de Lol Coxhill e se unir num uníssono processional. “Six gun territory” de Fred Longberg-Holm cita explicitamente Ayler e desenrola-se num ritmo de parada e resposta que por vezes adquire a urgência de um desenho animado demencial. A fechar, “Signs”, tem novamente a assinatura de Brötzmann. Neste caso o berlinense enfatiza blocos instrumentais montanhosos, intercalados por depressões de silêncio. A variedade de timbres é mais rica do que na sua composição para “Images” e a proposta de leitura para a “big band” tira maior proveito do desempenho dos seus intervenientes. Em vez da divergência as baterias apontam e fazem fogo numa única direção, orientando-se entre o “wall of sound” dos Urban Sax, o ruído, um certo “free rock” e, sempre presente, os “ghosts” de Ayler a pairarem sobre a contenda. É o melhor e mais adrenalínico tema do disco.
            A mesma energia é transposta para o formato de trio dos Sonore, Brötzmann, Vandermark e Gustafsson, a fazerem força sem conseguir romper a corda, em “No one ever works alone”. A união de esforços é uma constante, criando-se uma teia de poderes onde as mais variadas situações – solo, duo ou trio – acontecem de acordo com o “efeito borboleta”. O sussurro de uma nota num extremo desencadeia a hecatombe no outro, sem que nenhuma das pontas se possa desatar. O inevitavelmente Ayleriano “Broken hymn” constitui momento de elevação espiritual no meio de jogos altamente lúdicos onde o humor é, por vezes, negro (“Death can only kill me once”).
            Ainda em trio, mas desta feita com os suecos Friis Nielsen (baixo elétrico) e Peeter Uuskyla (bateria), Brötzmann volta a meter fantasmas na mala, citando os que constantemente saem e entram, sobem e descem no “elevador mais apertado do mundo”, para uma só pessoa, no hotel Adlon em Estocolmo. “Some ghosts step out” é o mais longo tema de “Medicina”, uma coleção de belos títulos como “Artemisia” e “Justicia”, um tango e uma sessão de “Hard times blues” final. Os dois suecos amparam como podem um Brötzmann que aqui grita mais do que nunca, num fluxo imparável de alimentação e descarga que parece não ter fim. Os clímaxes sucedem-se para logo darem lugar à desagregação mas toda a experiência, apesar de altamente energética, esgota-se nos seus próprios processos. Ao contrário dos Sonore que agem como arquitetos, os três “médicos” limitam-se a perseguir o instante. O que significa que o efeito desta “Medicina” é tão ilusório como fugaz.

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Images
Okka Disk
9 | 10

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Signs
Okka Disk
8 | 10

Sonore
No One ever Works Alone
Okka Disk
8 | 10

Brötzmann, Friis Nielsen, Uuskyla
Medicina
Atavistic
6 | 10
Todos distri. Ananana