02/09/2020

O espião que veio do frio [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 4 DEZEMBRO 2004

O alemão Peter Brötzmann lidera os caminhos mais livres da música europeia atual. Mas é com o núcleo duro da cena de Chicago que as suas “imagens” e “sinais” se impõem.

O espião que veio do ‘free’

Anos 60. A guerra fria. O “free jazz” explodia na Europa calcando os alicerces do “bop” numa aliança entre idealismo, utopia e revolução. Nalguns casos, cacofonia. Um dos músicos mais enraivecidos era um espião oriundo de Berlim e chamava-se Peter Brötzmann. Depois de passar os anos 50 a examinar a tradição e a tocar em bandas de Dixieland, envolveu-se no movimento Fluxus, aderindo às premissas do “free jazz”. Os primeiros contactos e as novas liberdades, tomou-as ao lado de Peter Kowald, Michael Mantler, Carla Bley e a Globe Unity, de Alexander von Schlippenbach. Em 1968 assina em nome próprio o extraordinário “Machine Gun”, com William Breuker, Evan Parker, Fred Van Hove, Buschi Niebergall, Peter Kowald, Han Bennink e Sven Ake Johansson, a nata dos libertários. No ano seguinte ajuda a formar a editora FMP (Free Music Productions) e, já na década seguinte, toca com Don Cherry e Albert Mangelsdorff. Nos anos 80 encontramo-lo a torrar no centro de um triângulo em brasa formado por Ronald Shannon Jackson, Sonny Sharrock e Bill Laswell, os Last Exit. Era o sinal de aproximação ao circuito americano e a ligação à corrente “downtown” de Nova Iorque. Na FMP integra os Die Like a Dog e grava com Barre Phillips, Gunter Sommer, Werner Ludi, Fred Hopkins, Rashied Ali e Hamid Drake entre outros. Em “The Marz Combo”, de 1992, está rodeado por uma formação pouco usual que integra Toshinori Kondo, Paul Rutherford, Larry Stabbins, Caspar Brötzmann, William Parker e outros dois “downtowners”, Nicky Skopelitis e Anton Fier. Grava em solo absoluto, “Nothing to Say” e, mais importante para chegarmos ao assunto que nos ocupará a seguir, reúne pela primeira vez em 1997, para a editora Okka Disk, o projeto The Chicago Octet e Tentet, ao qual transmite todas as informações reunidas e onde a sua música, inspirada na estética do grito de Albert Ayler mas modulada e expandida de forma singular, se explana na complexidade de uma “big band”. O Tentet interpreta composições dos seus elementos e o seu “line up” é uma lista de luxo em que pontificam os nomes de Joe McPhee, Jeb Bishop, Ken Vandermark, Mats Gustaffson, Mars Williams, Fred Lonberg-Holm, Kent Kessler, Michael Zerang e Hamid Drake.
            Os dois mais recentes capítulos do Tentet foram objeto de edições separadas, respetivamente intituladas “Images” e “Signs”, embora respeitando ambos as mesmas sessões, realizadas nos Airwave studios de Chicago, em Junho de 2002, e no Vasteräs Konserthus, na Suécia, em Novembro do ano passado.
            “Images” é uma obra portentosa. O primeiro tema, “All the things being equal”, é um manifesto de 37 minutos da autoria de Ken Vandermark. Como exercício de escrita torna-se fascinante acompanhar as construções/desconstruções da secção de sopros, num movimento incessante que parece buscar a perfeição. Não é “free jazz”, os diferentes módulos rítmicos/melódicos ora se motivam em “riffs” abrasivos ora se metamorfoseiam em fórmulas menos circulares de onde os solistas partem para as suas improvisações. Brötzmann, Gustafsson, Vandermark e Williams, os quatro saxofonistas, têm conceções complementares, sabendo explorar com disciplina a fragmentação e a aglutinação. As “coisas” de “All things being equal” obedecem ao princípio aristotélico da ação/transformação, numa aproximação e exploração à forma perfeita que permanece no seu âmago. Acompanhando o caminho dos músicos, ora nos aproximamos ora nos afastamos desse centro, focagem gradual que é também uma adaptação de modos de audição ativa. Depois da marcha coletiva e do remoinho dos sopros o violoncelo de Longberg-Holm introduz a serenidade e a meditação, usando para o efeito fórmulas classizantes. Os lamentos finais, jogados nas respirações abruptas e no desmantelamento das cordas, propõem a chegada a um horizonte longínquo que é tanto musical como ontológico. Um saxofone fica a chorar sozinho - a solidão do “um” perdido na multiplicidade dos fenómenos. Até a marcha do mundo se reatar e o círculo se fechar segundo a lei do eterno retorno. Os Tentet viajam longe para regressar à origem com uma nova visão (do bop?) e armados de novos ensinamentos. O segundo título, “Images”, do próprio Brötzmann é mais fechado e sombrio. A massa sonora irrompe com menos fulgor, mais sincrética do que no tema de Vandermark. O silêncio torna-se opressivo e os momentos de tensão/distensão arrastam-se numa profusão de reflexos e pontuações, cabendo aqui destacar o papel determinante do trabalho percussivo de Zerang e Drake. “All things…” é um polígono gigantesco, “Images” revela-se como um ângulo cujos lagos não páram de estender-se. Brötzmann é mais linear e menos “orquestral” que Vandermark mas as suas imagens têm o poder de perturbar.
            Apesar de serem retiradas das mesmas sessões de “Images”, as três composições de “Signs” mostram um lado diferente, mais camarístico, da música do Chicago Tentet que assim confirma inequivocamente a sua vocação de veículo de interpretação. “Bird notes” de Mats Gustafsson inclui dilaceração de notas pelo trombone e estertores vários antes de derivar para um ambiente exótico próximo de Lol Coxhill e se unir num uníssono processional. “Six gun territory” de Fred Longberg-Holm cita explicitamente Ayler e desenrola-se num ritmo de parada e resposta que por vezes adquire a urgência de um desenho animado demencial. A fechar, “Signs”, tem novamente a assinatura de Brötzmann. Neste caso o berlinense enfatiza blocos instrumentais montanhosos, intercalados por depressões de silêncio. A variedade de timbres é mais rica do que na sua composição para “Images” e a proposta de leitura para a “big band” tira maior proveito do desempenho dos seus intervenientes. Em vez da divergência as baterias apontam e fazem fogo numa única direção, orientando-se entre o “wall of sound” dos Urban Sax, o ruído, um certo “free rock” e, sempre presente, os “ghosts” de Ayler a pairarem sobre a contenda. É o melhor e mais adrenalínico tema do disco.
            A mesma energia é transposta para o formato de trio dos Sonore, Brötzmann, Vandermark e Gustafsson, a fazerem força sem conseguir romper a corda, em “No one ever works alone”. A união de esforços é uma constante, criando-se uma teia de poderes onde as mais variadas situações – solo, duo ou trio – acontecem de acordo com o “efeito borboleta”. O sussurro de uma nota num extremo desencadeia a hecatombe no outro, sem que nenhuma das pontas se possa desatar. O inevitavelmente Ayleriano “Broken hymn” constitui momento de elevação espiritual no meio de jogos altamente lúdicos onde o humor é, por vezes, negro (“Death can only kill me once”).
            Ainda em trio, mas desta feita com os suecos Friis Nielsen (baixo elétrico) e Peeter Uuskyla (bateria), Brötzmann volta a meter fantasmas na mala, citando os que constantemente saem e entram, sobem e descem no “elevador mais apertado do mundo”, para uma só pessoa, no hotel Adlon em Estocolmo. “Some ghosts step out” é o mais longo tema de “Medicina”, uma coleção de belos títulos como “Artemisia” e “Justicia”, um tango e uma sessão de “Hard times blues” final. Os dois suecos amparam como podem um Brötzmann que aqui grita mais do que nunca, num fluxo imparável de alimentação e descarga que parece não ter fim. Os clímaxes sucedem-se para logo darem lugar à desagregação mas toda a experiência, apesar de altamente energética, esgota-se nos seus próprios processos. Ao contrário dos Sonore que agem como arquitetos, os três “médicos” limitam-se a perseguir o instante. O que significa que o efeito desta “Medicina” é tão ilusório como fugaz.

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Images
Okka Disk
9 | 10

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Signs
Okka Disk
8 | 10

Sonore
No One ever Works Alone
Okka Disk
8 | 10

Brötzmann, Friis Nielsen, Uuskyla
Medicina
Atavistic
6 | 10
Todos distri. Ananana

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