JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 4 DEZEMBRO 2004
O alemão Peter Brötzmann lidera
os caminhos mais livres da música europeia atual. Mas é com o núcleo duro da
cena de Chicago que as suas “imagens” e “sinais” se impõem.
O
espião que veio do ‘free’
Anos 60. A
guerra fria. O “free jazz” explodia na Europa calcando os alicerces do “bop” numa
aliança entre idealismo, utopia e revolução. Nalguns casos, cacofonia. Um dos músicos
mais enraivecidos era um espião oriundo de Berlim e chamava-se Peter Brötzmann.
Depois de passar os anos 50 a examinar a tradição e a tocar em bandas de
Dixieland, envolveu-se no movimento Fluxus, aderindo às premissas do “free jazz”.
Os primeiros contactos e as novas liberdades, tomou-as ao lado de Peter Kowald,
Michael Mantler, Carla Bley e a Globe Unity, de Alexander von Schlippenbach. Em
1968 assina em nome próprio o extraordinário “Machine Gun”, com William
Breuker, Evan Parker, Fred Van Hove, Buschi Niebergall, Peter Kowald, Han Bennink
e Sven Ake Johansson, a nata dos libertários. No ano seguinte ajuda a formar a editora
FMP (Free Music Productions) e, já na década seguinte, toca com Don Cherry e Albert
Mangelsdorff. Nos anos 80 encontramo-lo a torrar no centro de um triângulo em
brasa formado por Ronald Shannon Jackson, Sonny Sharrock e Bill Laswell, os
Last Exit. Era o sinal de aproximação ao circuito americano e a ligação à corrente
“downtown” de Nova Iorque. Na FMP integra os Die Like a Dog e grava com Barre Phillips,
Gunter Sommer, Werner Ludi, Fred Hopkins, Rashied Ali e Hamid Drake entre
outros. Em “The Marz Combo”, de 1992, está rodeado por uma formação pouco usual
que integra Toshinori Kondo, Paul Rutherford, Larry Stabbins, Caspar Brötzmann,
William Parker e outros dois “downtowners”, Nicky Skopelitis e Anton Fier.
Grava em solo absoluto, “Nothing to Say” e, mais importante para chegarmos ao
assunto que nos ocupará a seguir, reúne pela primeira vez em 1997, para a
editora Okka Disk, o projeto The Chicago Octet e Tentet, ao qual transmite
todas as informações reunidas e onde a sua música, inspirada na estética do
grito de Albert Ayler mas modulada e expandida de forma singular, se explana na
complexidade de uma “big band”. O Tentet interpreta composições dos seus
elementos e o seu “line up” é uma lista de luxo em que pontificam os nomes de Joe
McPhee, Jeb Bishop, Ken Vandermark, Mats Gustaffson, Mars Williams, Fred
Lonberg-Holm, Kent Kessler, Michael Zerang e Hamid Drake.
Os dois mais recentes capítulos do
Tentet foram objeto de edições separadas, respetivamente intituladas “Images” e
“Signs”, embora respeitando ambos as mesmas sessões, realizadas nos Airwave
studios de Chicago, em Junho de 2002, e no Vasteräs Konserthus, na Suécia, em
Novembro do ano passado.
“Images” é uma obra portentosa. O
primeiro tema, “All the things being equal”, é um manifesto de 37 minutos da autoria
de Ken Vandermark. Como exercício de escrita torna-se fascinante acompanhar as
construções/desconstruções da secção de sopros, num movimento incessante que
parece buscar a perfeição. Não é “free jazz”, os diferentes módulos rítmicos/melódicos
ora se motivam em “riffs” abrasivos ora se metamorfoseiam em fórmulas menos
circulares de onde os solistas partem para as suas improvisações. Brötzmann,
Gustafsson, Vandermark e Williams, os quatro saxofonistas, têm conceções
complementares, sabendo explorar com disciplina a fragmentação e a aglutinação.
As “coisas” de “All things being equal” obedecem ao princípio aristotélico da ação/transformação,
numa aproximação e exploração à forma perfeita que permanece no seu âmago. Acompanhando
o caminho dos músicos, ora nos aproximamos ora nos afastamos desse centro,
focagem gradual que é também uma adaptação de modos de audição ativa. Depois da
marcha coletiva e do remoinho dos sopros o violoncelo de Longberg-Holm introduz
a serenidade e a meditação, usando para o efeito fórmulas classizantes. Os
lamentos finais, jogados nas respirações abruptas e no desmantelamento das
cordas, propõem a chegada a um horizonte longínquo que é tanto musical como
ontológico. Um saxofone fica a chorar sozinho - a solidão do “um” perdido na multiplicidade
dos fenómenos. Até a marcha do mundo se reatar e o círculo se fechar segundo a
lei do eterno retorno. Os Tentet viajam longe para regressar à origem com uma nova
visão (do bop?) e armados de novos ensinamentos. O segundo título, “Images”, do
próprio Brötzmann é mais fechado e sombrio. A massa sonora irrompe com menos
fulgor, mais sincrética do que no tema de Vandermark. O silêncio torna-se opressivo
e os momentos de tensão/distensão arrastam-se numa profusão de reflexos e
pontuações, cabendo aqui destacar o papel determinante do trabalho percussivo
de Zerang e Drake. “All things…” é um polígono gigantesco, “Images” revela-se
como um ângulo cujos lagos não páram de estender-se. Brötzmann é mais linear e
menos “orquestral” que Vandermark mas as suas imagens têm o poder de perturbar.
Apesar de serem retiradas das mesmas
sessões de “Images”, as três composições de “Signs” mostram um lado diferente,
mais camarístico, da música do Chicago Tentet que assim confirma
inequivocamente a sua vocação de veículo de interpretação. “Bird notes” de Mats
Gustafsson inclui dilaceração de notas pelo trombone e estertores vários antes
de derivar para um ambiente exótico próximo de Lol Coxhill e se unir num uníssono
processional. “Six gun territory” de Fred Longberg-Holm cita explicitamente Ayler
e desenrola-se num ritmo de parada e resposta que por vezes adquire a urgência de
um desenho animado demencial. A fechar, “Signs”, tem novamente a assinatura de
Brötzmann. Neste caso o berlinense enfatiza blocos instrumentais montanhosos, intercalados
por depressões de silêncio. A variedade de timbres é mais rica do que na sua composição
para “Images” e a proposta de leitura para a “big band” tira maior proveito do desempenho
dos seus intervenientes. Em vez da divergência as baterias apontam e fazem fogo
numa única direção, orientando-se entre o “wall of sound” dos Urban Sax, o
ruído, um certo “free rock” e, sempre presente, os “ghosts” de Ayler a pairarem
sobre a contenda. É o melhor e mais adrenalínico tema do disco.
A mesma energia é transposta para o
formato de trio dos Sonore, Brötzmann, Vandermark e Gustafsson, a fazerem força
sem conseguir romper a corda, em “No one ever works alone”. A união de esforços
é uma constante, criando-se uma teia de poderes onde as mais variadas situações
– solo, duo ou trio – acontecem de acordo com o “efeito borboleta”. O sussurro de
uma nota num extremo desencadeia a hecatombe no outro, sem que nenhuma das
pontas se possa desatar. O inevitavelmente Ayleriano “Broken hymn” constitui
momento de elevação espiritual no meio de jogos altamente lúdicos onde o humor
é, por vezes, negro (“Death can only kill me once”).
Ainda em trio, mas desta feita com
os suecos Friis Nielsen (baixo elétrico) e Peeter Uuskyla (bateria), Brötzmann volta
a meter fantasmas na mala, citando os que constantemente saem e entram, sobem e
descem no “elevador mais apertado do mundo”, para uma só pessoa, no hotel Adlon
em Estocolmo. “Some ghosts step out” é o mais longo tema de “Medicina”, uma
coleção de belos títulos como “Artemisia” e “Justicia”, um tango e uma sessão
de “Hard times blues” final. Os dois suecos amparam como podem um Brötzmann que
aqui grita mais do que nunca, num fluxo imparável de alimentação e descarga que
parece não ter fim. Os clímaxes sucedem-se para logo darem lugar à desagregação
mas toda a experiência, apesar de altamente energética, esgota-se nos seus
próprios processos. Ao contrário dos Sonore que agem como arquitetos, os três “médicos”
limitam-se a perseguir o instante. O que significa que o efeito desta
“Medicina” é tão ilusório como fugaz.
Peter Brötzmann
Chicago Tentet
Images
Okka Disk
9 | 10
Peter Brötzmann
Chicago Tentet
Signs
Okka Disk
8 | 10
Sonore
No One ever
Works Alone
Okka Disk
8 | 10
Brötzmann,
Friis Nielsen, Uuskyla
Medicina
Atavistic
6 | 10
Todos distri. Ananana
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