Y 24|DEZEMBRO|2004
música|can
Os quatro primeiros álbuns da seminal banda de Colónia soam agora como nunca.
É um pacote facilmente elegível para a lista de melhores reedições do ano.
quando um monstro
ESPEZINHOU O ROCK
Há
anos, numa entrevista a Holger Czukay, mencionámos de passagem o nosso
desconsolo pela fraca qualidade de som de grande parte dos discos dos Can
editados pela Spoon. Comparando com o som das gravações originais em vinilo,
“Tago Mago”, por exemplo, pura e simplesmente era como se não tivesse ficado
registado o som da guitarra baixo. Na altura o músico não pareceu dar muita
importância ao assunto mas o tempo, felizmente, encarregou-se de repor a
verdade sónica dos factos. Os quatro primeiros álbuns da seminal banda de
Colónia soam agora como nunca e até 2006 (tanto tempo!) seguir-se-ão as
remasterizações dos oito álbuns seguintes. Até lá fiquemo-nos com este pacote
facilmente elegível para a lista de melhores reedições do ano.
Num fórum sobre rock alemão dos anos
70, uma participante veterana insurgia-se contra a leitura que Julian Cope faz
do “krautrock”. Segundo ela, a idealização do fã apaixonado que Cope é não corresponde
à realidade. O “krautrock”, enquanto movimento estético, nunca terá existido.
As bandas alemãs da época, procurando negar o passado traumático do seu país
(nisto as opiniões dela e de Cope coincidem), limitavam-se a tentar copiar a
música das suas congéneres inglesas americanas. Tudo o que pudesse soar a
“alemão” era renegado pelos músicos e desprezado pelo público. Acontece que essas
mesmas bandas imitavam mal os ingleses e os americanos, sobretudo porque as
raízes no “blues” e no “rock ‘n’ roll” eram inexistentes. O resultado, paradoxal,
de tal esforço, foi que a música daí resultante soava mais germânica do que
nunca e fora dos parâmetros anglo-saxónicos.
Claro que não foi bem assim e a
própria história e discografias existentes revelaram, se não a existência de um
movimento, pelo menos a evidência de uma auto-consciencialização, inclusive
política, da parte de bandas e músicos como Amon Düül II, Cluster, Kraftwerk,
Neu!, Popol Vuh, Tangerine Dream ou Achim Reichel. Os Ash Ra Tempel
preocupavam-se mais com orgias de LSD e em tornar o seu “fake blues” numa
viagem cósmica. Os Faust levavam a música de Zappa aos limites do delírio eletro-acústico,
muito empurrados – é forçoso dizê-lo – pelo acaso, mas também por uma genial
visão do que o futuro haveria de trazer. Sobram os Can.
o pacote. Na perspetiva da
mimetização dos modelos americanos, pode dizer-se que os Can procuraram de
início, como se pode depreender da audição de “Monster Movie” (1969), imitar os
Velvet Underground e o pré-punk de Detroit personificado pelos Stooges (há
ainda quem cite, com alguma pertinência, a influência do rock de garagem minimalista
dos The Monks, que passaram o início de carreira na Alemanha). O fantástico da
coisa é que, feitas as contas finais, “Monster Movie” é mesmo um filme de
monstros que os próprios Velvets nunca se atreveram a realizar. Típico das
bandas alemãs, levar aos limites e, se possível, ultrapassá-los, as premissas
de um rock que nunca deixou de lhes ser alheio. Foi também isso que fizeram,
além dos Faust com Zappa, os Amon Düül II, ao abrirem o leque onírico do “acid
rock” dos Jefferson Airplane ou os Tangerine Dream, ao atirarem a faceta mais
planante dos Pink Floyd para a galáxia infinita da eletrónica sequenciada em
“Phaedra” e “Rubycon”.
Mas os Can nunca poderiam ser os
Velvet. Czukay e o teclista Irmin Schmidt tinham sido educados por Karlheinz
Stockhausen e pelas músicas de transe das civilizações tradicionais
(“Cannaxis”, álbum a solo dessa época, de Holger Czukay, apontava já futuros caminhos
para o grupo). A batida de “Father cannot yell” tem os pés nos VU, sem dúvida,
mas eles, como bons “krautrockers”, vão longe demais e esmagam os edifícios
como Godzila. A guitarra não poderia ser mais ácida, os Can escavavam na cabeça
e no chão. A anedota é que o seu vocalista da altura, Malcolm Mooney, era negro
e americano. Só que, ao contrário de Cale e de Reed, afinal de contas dois intelectuais,
o seu canto obedecia às pulsões mais primais. Na ponta oposta, era uma música
exposta ao psicadelismo, algo que os Velvet sempre recusaram (os sonhos do LSD
não se compadecem com a chapada da heroína). “Mary, Mary so contrary” é a
primeira grande canção dos Can, obsessiva e já indicadora da veia minimalista –
poética e musical – que tornou o grupo diferente de todos os outros. Os 20
minutos de “You doo right” mostram os Can já na sua veia ritualística, mesmo se
ainda iludidos pela grande viagem do “rock ‘n’ roll”.
“Soundtracks”, gravado em 1969 e
1970, reúne temas compostos para bandas sonoras de vários filmes alemães
“underground”. Irmin Schmidt, o único do grupo que viu as imagens, propôs aos
outros a aplicação do conceito de “drama” retirado dos filmes (ou “tales”, como
o teclista se lhes referia) como base para as suas improvisações. Os ambientes são
mais serenos e raiam a paródia pop em “Tango whiskyman”. Damo Suzuki, o “busker”
japonês que os Can convidaram para substituir Mooney (que abandonou o grupo
para se juntar às Testemunhas de Jeová) e em quem Julian Cope viu uma espécie
de Marc Bolan esquizofrénico, canta/declama em “Don’t turn the light on” e o
“jazzy” “She brings the rain” possui o “groove” certo e aquele tipo de melodia,
tão infantil como perversa, que marcaria as obras-primas “Ege Bamyasi” e
“Future Days”. “Mother sky” são perto de 15 minutos de tiroteio percussivo de
Jaki Liebezeit, “The human rhythm machine”, em rolamento “motorika” e alucinações
tribais. A melodia vocal tem algo dos Stones psicadélicos e a pedrada é
monumental.
Desmesurada, como todo o álbum
seguinte, “Tago Mago” (1971), um pedaço de cérebro entornado que convém
recolher com certos cuidados. Na altura editado como disco duplo, “Tago Mago” faz
o percurso inverso do rock progressivo, concentrando-se nesse “inner space” que
deu nome ao estúdio do grupo. Os sons encaixam-se de modo quase mágico uns nos
outros seguindo a máxima do “menos é mais” que o grupo poria em prática até “Saw
Delight” e ao advento do “punk”, no ponto exato em que as noções de “canção” e
“jam” se intercetam. Não uma “space jam”, como aquela onde embarcaram os Amon
Düül II nos igualmente monstruosos duplos-álbuns “Yeti” e “Tanz der Lemminge”,
mas uma “inner jam” onde as ideias flutuam num espaço acústico que permanece
como o mais radical e experimental onde os Can navegaram. “Aumgn” é um lugar
desolado, de vibrações elétricas, reverberações abissais, vozes descarnadas, o
mesmo fundo do poço onde Peter Hammill desceu em “Magog (in bromine chambers)”,
de “In Camera”. Convém levar corda. O próprio “Tago Mago” fornece uma, “Bring
me coffee or tea”, o despertar dos mágicos, em mais uma vocalização pop
sonambúlica de Suzuki.
Na altura de “Ege Bamyasi” os Can
lideravam a onda do rock “underground” proveniente do continente europeu, com
John Peel a servir de anfitrião no Reino Unido. Se houvesse justiça neste
mundo, o álbum teria sido “top one” nos “charts”. Não é todos os dias que
aparece alguém a mudar a face do rock. Suzuki, fi gura central do disco
(impressionado, Mark E. Smith, dos The Fall, intitulou uma das suas canções “I
am Damo Suzuki”…) murmura e grita ao ponto de se desfazer em puros exercícios
de “gestalt”, as canções são “bubblegum” do séc. XXII, hipnóticas, viciantes,
futuristas e tribais. “Ege Bamyasi” ocupa um lugar de destaque na lista dos
melhores discos de sempre.
CAN
Monster Movie
8|10
Soundtracks
8|10
Tago Mago
10|10
Ege Bamyasi
10|10
Spoon SACD, import. Ananana
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