CULTURA
TERÇA-FEIRA, 7 DEZ 2004
Crítica
Música
Não jazz dos Spring Heel Jack
põe a cabeça em água
Spring Heel Jack
COIMBRA,
Teatro Gil Vicente
Sábado,
4. 21h30. Sala praticamente cheia (até ao intervalo…)
Na boa tradição dos
génios incompreendidos, o concerto que os Spring Heel Jack deram no sábado, a
fechar o festival Jazz ao Centro, em Coimbra, provocou reações extremas. Metade
da sala aplaudiu entusiasticamente a difícil proposta apresentada por John
Coxon, Ashley Wales e companhia. A outra metade saiu a meio. “O tipo [John
Coxon] não toca nada” e “isto não é jazz, jazz” foram alguns dos comentários
ouvidos na sala. De um ponto de vista tradicional, John Coxon não toca nada. Ao
piano, onde alinhavou algumas sequências de notas avulsas, ou na guitarra, da
qual se entreteve a arrancar ruídos e acordes do tipo com que Derek Bailey ou
Keith Rowie fizeram ciência, Coxon mostrou ser um executante limitado. O outro
mentor do projeto, Ashley Wales, também não é propriamente um “virtuoso”,
embora no seu caso, dada a natureza dos artefactos utilizados, sampler e
parafernália eletrónica variada, se note menos. E sim, ou por outra, não, a
música que os Spring Heel Jack fazem não é “jazz, jazz”. E, no entanto, tudo o
que envolve a estética Spring Heel Jack passa pelo trabalho deste dupla que um
dia se fartou de tocar “drum ‘n’ bass”.
Coxon e Wales têm um papel bem definido na economia do som.
Cabe-lhes desenhar os contornos ou o espaço de manobra onde se vão desenrolar
as contribuições dos solistas convidados. É a estes que compete romper as
barreiras, ir mais além, ou simplesmente colorir os esboços desenhados pelos
dois. Em Coimbra só foi pena não ter estado presente Evan Parker para a
formação do novo álbum “The Sweetness of the Water” ficar completa. No disco, Parker
garante que a lava escorra do vulcão.
Sem ele, coube ao trompetista Wadada Leo Smith alinhar
fraseados mais imediatamente conotáveis com o que nos habituámos a considerar
“música de jazz”. Smith tentou sempre criar brechas e singulares direções para
as improvisações coletivas. Mas o ás da noite foi John Edwards, imaginativo e
criativo nos solos de contrabaixo. Edwards tocou no limite do volume, com os
dedos ou com o arco, arrancando “staccatos” nevróticos, gemidos, altercações
guturais, implosões e explosões, fazendo-se sentir alguma raiva. Foi o único a
descobrir espaços virgens. O concerto decorreu entre a livre improvisação e
cenários previamente estabelecidos em “The Sweetness of the Water”,
respeitando-se, mais ou menos subrepticiamente, o alinhamento do disco.
“Lata” destacou-se com a sua quase citação aos Suicide,
sentindo-se, todavia, a falta de Evan Parker, “Track one” teve Coxon a
balbuciar na harmónica e o fecho coincidiu com o último tema do álbum,
“Autumn”, com Wales a encher a sala de acordes de órgão religioso. Houve mesmo
uma espécie de “blues” atormentados o que, juntamente com o curto “encore” (não
pedido) constituiu a única cedência aos hábitos auditivos mais enraizados. Bom
ou mau concerto, a questão nem sequer se põe. O que os Spring Heel Jack propõem
é um espaço aberto à imaginação. Ou se está lá dentro e se sonha, ou nada
feito.
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