CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 2 AGO 2004
Tom Zé deu espetáculo total em Sines
Muito boa música passou pelo sempre esgotado Festival Músicas do Mundo de
Sines, que terminou sábado à noite. Mas nenhuma inquietou tanto como a
“performance” de Tom Zé. Veio de outro planeta e trouxe consigo uma visão
Tom Zé aterrou no Festival Músicas
do Mundo de Sines, sexta-feira à noite, numa “Nave-Maria” de outro planeta, cósmico
e baiano, com a sua leitura astral do tropicalismo. “Astronauta libertado/Minha
vida me ultrapassa/Em qualquer rota que eu faça”. O brasileiro pesa cada
palavra, improvisa frases antes e no meio das canções. E a música brota
espontânea, como que por magia, dessas palavras que parecem soltar-se como as
folhas de uma árvore. Foi o melhor concerto do festival, que terminou
anteontem.
Um
naco do hino americano anunciou “Companheiro Bush”, viagem ao Iraque montado
numa bomba de gramática. A faceta interventiva prosseguiu com “Urgente, pela
paz”. É “rap”, é conversa, é canção, e Tom Zé foi o cantor-professor-pregador. As
músicas misturavam-se, o baiano parecia perder-se, mas percebeu-se que a cada segundo
sabe bem onde está e que terrenos pisa. O público entregou-se. Todo o concerto foi
construído como uma história contada a primor. Paz e amor. Houve rock pesado,
canções leves (e os dois juntos em “Ogodô, ano 2000”) e as letras sempre a
dançarem, ora setas, ora lanças, ora lágrimas, ora corações. Pura e
simplesmente, Tom Zé cantou o mundo. É isto a música do mundo, a tal “world
music”? “Vamos nós ensaiar sozinhos, sem a banda, joga fora a banda!” Querem maior
proximidade com o mundo do que esta? Mesmo quando, num golpe de mestre, se
autopromove como produto de consumo, mostrando ao público vários discos, num “jingle”
de venda do “Tom Zé que vai fazer todos felizes”. É assim o “one-man-show”: Tom
Zé a simular um falo com o cinto, a autoflagelar-se como “artista de rock”, a
rasgar o casaco, a vestir-se de operário e a fazer, literalmente, luz com uma
lixa de amolador, a criar ritmos com marteladas no capacete, a comer um
jornal... O grande paradoxo é que se estão presentes na música de Tom Zé todas
as músicas, a música, só, não chega para Tom Zé. E, no entanto, tudo foi
música.
Entre o frio e o “free”
A abertura da noite coubera a uma
Savina Yannatou paradoxal. A grega pertence a uma estirpe de cantoras, como
Fátima Miranda, que consegue criar em todos os registos da voz – do grito ao
murmúrio –, mas em Sines faltou a centelha da paixão, sobrando a inteligência e
uma vertente quase clínica. O périplo pelas músicas do Mediterrâneo, da
Andaluzia à Turquia, passando por Itália, Macedónia, Bulgária e, claro, Grécia,
que constituiu o seu reportório assumiu, por outro lado, uma componente de
risco inusitada, com Savina a fazer valer a sua experiência nos campos da música
erudita e do jazz. O problema desta atuação talvez demasiado fria esteve também
no maior protagonismo do grupo que a acompanhou, Primavera en Salonica, também
ele estendendo a margem de risco, com um desempenho que chegou a raiar a música
contemporânea, plena de dissonâncias e intervenções instrumentais pouco usuais
em festivais deste tipo. Mas para isto exigia-se um som pristino e tal não
aconteceu, antes estava demasiado alto e metálico para o grupo e demasiado
baixo para a cantora, cuja voz, por mais de uma vez, se diluiu no “ensemble”. O
“encore” arrancado a ferros não chegou para aquecer os ânimos, mas nem tudo
pode ser altas temperaturas, em festivais com as características do Músicas do
Mundo.
Ninguém
se queixou de frio com o que veio a seguir. Jazz funk crioulo pelo mais recente
projeto de David Murray, um “apaixonado por Sines”, como lhe chamou o
apresentador. O Creole Project vive da rítmica dos tambores “ka” de Guadalupe e
do intercâmbio de tenores entre Murray e o convidado histórico Pharoah Sanders.
Murray com o seu jogo de dinâmicas e contrastes extremos, Sanders mais depurado
e menos anguloso. Presos ao funk da secção rítmica, por vezes a lembrar o afro
beat de Fela Kuti, libertaram-se nos solos e nos diálogos sem acompanhamento instrumental,
resvalando com facilidade para o “free”. Folclórica, no sentido mais colorido
do termo, a música casou com harmonia jazz e “world”, ritmos abrasivos e as
cascatas tórridas dos dois saxofones. Calor sem esplendor. Mas choveram brasas quando
Murray se pôs a improvisar sobre uma espécie de “doo wop” vocal obsessivo dos
dois tocadores de tambores “ka” guadalupenhos, culminando, a fechar, numa
desbunda coletiva alucinante.
A
abrir a noite de sábado, o Septeto de Roberto Rodriguez proporcionou um festim
de cores e “swing”. Fusão excelente de ritmos de “guahira” cubana e sonoridades
“klezmer”. Se os Penguin Café Orchestra fossem mais sérios e tocassem melhor
fariam algo assim. O septeto levou grande música, sem concessões,
desembrulhando temas dos álbuns “El Danzon de Moisés” e “Baila Gitano Baila”. O
“encore”, com Rodriguez a solar na bateria numa orgia de ritmo, foi bombástico.
Rokia
Traoré veio do Mali para semear a hipnose. Apoiada nos sons do n’goni e do balafone,
a cantora estendeu um delicado véu de melodias ondulantes e ritmos que
ocasionalmente fizeram lembrar esse outro mestre da hipnose do Mali que é Ali
Farka Touré. Com maior ou menor grau de pureza, não importa, é a tradição dos
“griots” que nos assombra, nesta música que recria os infinitos cambiantes e
padrões de uma tapeçaria de sonhos. Rokia passou por Sines como uma fada de voz
dançarina.
E
tudo terminou com o afro-beat de Femi Kuti. Artilharia pesada a despedaçar as
últimas resistências ao ritmo. Sob o fogo-de-artifício e o brilho da lua cheia,
o castelo veio abaixo. Já se sabia e Femi confirmou-o: o seu grupo é uma
formidável máquina de ritmo. O astro mais brilhante, esse já partira na véspera
para a sua galáxia. Chama-se Tom Zé e foi a maior estrela a luzir no Músicas do
Mundo de Sines.