11/03/2020

Tom Zé deu espetáculo total em Sines


CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 2 AGO 2004

Tom Zé deu espetáculo total em Sines

Muito boa música passou pelo sempre esgotado Festival Músicas do Mundo de Sines, que terminou sábado à noite. Mas nenhuma inquietou tanto como a “performance” de Tom Zé. Veio de outro planeta e trouxe consigo uma visão

Tom Zé aterrou no Festival Músicas do Mundo de Sines, sexta-feira à noite, numa “Nave-Maria” de outro planeta, cósmico e baiano, com a sua leitura astral do tropicalismo. “Astronauta libertado/Minha vida me ultrapassa/Em qualquer rota que eu faça”. O brasileiro pesa cada palavra, improvisa frases antes e no meio das canções. E a música brota espontânea, como que por magia, dessas palavras que parecem soltar-se como as folhas de uma árvore. Foi o melhor concerto do festival, que terminou anteontem.
            Um naco do hino americano anunciou “Companheiro Bush”, viagem ao Iraque montado numa bomba de gramática. A faceta interventiva prosseguiu com “Urgente, pela paz”. É “rap”, é conversa, é canção, e Tom Zé foi o cantor-professor-pregador. As músicas misturavam-se, o baiano parecia perder-se, mas percebeu-se que a cada segundo sabe bem onde está e que terrenos pisa. O público entregou-se. Todo o concerto foi construído como uma história contada a primor. Paz e amor. Houve rock pesado, canções leves (e os dois juntos em “Ogodô, ano 2000”) e as letras sempre a dançarem, ora setas, ora lanças, ora lágrimas, ora corações. Pura e simplesmente, Tom Zé cantou o mundo. É isto a música do mundo, a tal “world music”? “Vamos nós ensaiar sozinhos, sem a banda, joga fora a banda!” Querem maior proximidade com o mundo do que esta? Mesmo quando, num golpe de mestre, se autopromove como produto de consumo, mostrando ao público vários discos, num “jingle” de venda do “Tom Zé que vai fazer todos felizes”. É assim o “one-man-show”: Tom Zé a simular um falo com o cinto, a autoflagelar-se como “artista de rock”, a rasgar o casaco, a vestir-se de operário e a fazer, literalmente, luz com uma lixa de amolador, a criar ritmos com marteladas no capacete, a comer um jornal... O grande paradoxo é que se estão presentes na música de Tom Zé todas as músicas, a música, só, não chega para Tom Zé. E, no entanto, tudo foi música.

Entre o frio e o “free”
A abertura da noite coubera a uma Savina Yannatou paradoxal. A grega pertence a uma estirpe de cantoras, como Fátima Miranda, que consegue criar em todos os registos da voz – do grito ao murmúrio –, mas em Sines faltou a centelha da paixão, sobrando a inteligência e uma vertente quase clínica. O périplo pelas músicas do Mediterrâneo, da Andaluzia à Turquia, passando por Itália, Macedónia, Bulgária e, claro, Grécia, que constituiu o seu reportório assumiu, por outro lado, uma componente de risco inusitada, com Savina a fazer valer a sua experiência nos campos da música erudita e do jazz. O problema desta atuação talvez demasiado fria esteve também no maior protagonismo do grupo que a acompanhou, Primavera en Salonica, também ele estendendo a margem de risco, com um desempenho que chegou a raiar a música contemporânea, plena de dissonâncias e intervenções instrumentais pouco usuais em festivais deste tipo. Mas para isto exigia-se um som pristino e tal não aconteceu, antes estava demasiado alto e metálico para o grupo e demasiado baixo para a cantora, cuja voz, por mais de uma vez, se diluiu no “ensemble”. O “encore” arrancado a ferros não chegou para aquecer os ânimos, mas nem tudo pode ser altas temperaturas, em festivais com as características do Músicas do Mundo.
            Ninguém se queixou de frio com o que veio a seguir. Jazz funk crioulo pelo mais recente projeto de David Murray, um “apaixonado por Sines”, como lhe chamou o apresentador. O Creole Project vive da rítmica dos tambores “ka” de Guadalupe e do intercâmbio de tenores entre Murray e o convidado histórico Pharoah Sanders. Murray com o seu jogo de dinâmicas e contrastes extremos, Sanders mais depurado e menos anguloso. Presos ao funk da secção rítmica, por vezes a lembrar o afro beat de Fela Kuti, libertaram-se nos solos e nos diálogos sem acompanhamento instrumental, resvalando com facilidade para o “free”. Folclórica, no sentido mais colorido do termo, a música casou com harmonia jazz e “world”, ritmos abrasivos e as cascatas tórridas dos dois saxofones. Calor sem esplendor. Mas choveram brasas quando Murray se pôs a improvisar sobre uma espécie de “doo wop” vocal obsessivo dos dois tocadores de tambores “ka” guadalupenhos, culminando, a fechar, numa desbunda coletiva alucinante.
            A abrir a noite de sábado, o Septeto de Roberto Rodriguez proporcionou um festim de cores e “swing”. Fusão excelente de ritmos de “guahira” cubana e sonoridades “klezmer”. Se os Penguin Café Orchestra fossem mais sérios e tocassem melhor fariam algo assim. O septeto levou grande música, sem concessões, desembrulhando temas dos álbuns “El Danzon de Moisés” e “Baila Gitano Baila”. O “encore”, com Rodriguez a solar na bateria numa orgia de ritmo, foi bombástico.
            Rokia Traoré veio do Mali para semear a hipnose. Apoiada nos sons do n’goni e do balafone, a cantora estendeu um delicado véu de melodias ondulantes e ritmos que ocasionalmente fizeram lembrar esse outro mestre da hipnose do Mali que é Ali Farka Touré. Com maior ou menor grau de pureza, não importa, é a tradição dos “griots” que nos assombra, nesta música que recria os infinitos cambiantes e padrões de uma tapeçaria de sonhos. Rokia passou por Sines como uma fada de voz dançarina.
            E tudo terminou com o afro-beat de Femi Kuti. Artilharia pesada a despedaçar as últimas resistências ao ritmo. Sob o fogo-de-artifício e o brilho da lua cheia, o castelo veio abaixo. Já se sabia e Femi confirmou-o: o seu grupo é uma formidável máquina de ritmo. O astro mais brilhante, esse já partira na véspera para a sua galáxia. Chama-se Tom Zé e foi a maior estrela a luzir no Músicas do Mundo de Sines.

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