CULTURA
DOMINGO, 25 JULHO 2004
Pequena multidão na despedida a Carlos
Paredes
FUNERAL ONTEM
Não foi uma grande multidão aquela que compareceu ao funeral do mestre.
Na morte, como na vida, ele foi até ao fim o “gigante”, nobre e discreto, da
nossa música. Os sons da sua guitarra perdurarão na nossa memória
Cerca de 500 pessoas
acompanharam, ontem, Carlos Paredes, até à sua última morada, no Cemitério dos
Prazeres, onde foi a enterrar o mestre da guitarra portuguesa, que faleceu no
mesmo dia em que Amália Rodrigues nasceu. Duas referências maiores da música
portuguesa irmanadas por esta coincidência.
A
tarde estava tórrida, mas mesmo antes do cortejo chegar a pé da Basílica da
Estrela, onde o corpo do guitarrista esteve exposto em câmara ardente, houve
quem aguentasse a pé firme a canícula. Joaquim Medeiros, 74 anos, reformado da
CP e “alentejano”, como fez questão de frisar, estava à espera no cemitério há
mais de duas horas mas não arredou pé. Nas mãos segurava um cravo vermelho. A
seu lado, a mulher, tinha uma rosa, também vermelha. Foi assim que se
despediram do guitarrista.
Ao
falar de Paredes a voz de Joaquim Medeiros – homem com muitas histórias para
contar (além de reformado é também o presidente da Comissão de Utentes da
Margem Esquerda do Guadiana) – incendiou-se: “Era um democrata e o que eu
lamento neste país é que as pessoas, os grandes democratas, os grandes génios,
os grandes talentos, só se fale no nome deles quando é da morte. De Paredes, na
vida real pouco se falava dele, só meia dúzia de pessoas. Foi um génio, dos que
aparecem de cem em cem anos. Devia dar-se mais valor aos grandes artistas.
Trouxe o cravo porque ele também esteve com o 25 de Abril, esteve preso na
ditadura de Salazar. É um estímulo.”
No
cemitério, e bem junto ao carro funerário, distinguiam-se as figuras de Carlos
do Carmo e, a seu lado, do filho, Gil do Carmo. Estavam visivelmente
emocionados. Caminhava-se em silêncio. A “explosão” aconteceu quando o carro
parou e a urna foi retirada para o exterior – uma longa, longuíssima torrente
de aplausos que só parou quando o padre disse as palavras de despedida. Todos
sentiram, como Vera Rodrigues, 37 anos, professora, que “desapareceu um símbolo
importante da música portuguesa”. Vera tem pena de não ter “conhecido pessoalmente”
o mestre mas garante que jamais esquecerá a sua música, citando a importância
de um álbum como “Movimento Perpétuo”: “É fantástico, aconselho toda a gente a
comprá-lo!”
Enquanto
fala, as palmas não param. O elogio fúnebre destacou a “amizade” e a “ternura”
cultivados pelo autor de “Verdes Anos”. Alguns estudantes ensaiavam baixinho
uma canção de adeus ao mestre. “Há muitos anos que ouço a música do Paredes”,
diz João Martins, 26 anos, engenheiro eletrotécnico, representante do Grupo de
Fados Verdes Anos. “Mais do que ser portuguesa, património de qualquer tipo de
expressão nacional, a música de Carlos Paredes tornou-se universal. É com muita
pena que o vejo partir apesar de já não o podermos ouvir há mais de dez anos a
tocar guitarra portuguesa.”
“Até amanhã camarada!”
O calor tornou-se quase
insuportável, enquanto uma bruma escondia a visão do Tejo, para onde Paredes
há-de ficar virado. As emoções soltaram-se ainda mais. Não é só o músico nem o
homem que são recordados, mas também o cidadão com ideais de esquerda que foi
Paredes. Alguém gritou: “Até amanhã camarada!”. “Até amanhã” repete outra voz,
enquanto vários punhos fechados se erguem no ar em saudação.
Marta
Barata, 34 anos, “designer”, quis “prestar uma última homenagem a uma pessoa
que foi uma referência muito grande da música portuguesa”. Em Paredes viu
sempre “uma grande nobreza enquanto pessoa, com um grande espírito artístico”.
Também alheio ao burburinho dos punhos erguidos, houve quem, chegado para um
canto, vivesse outro tipo de recordações. Como Amílcar Nunes, 79 anos,
geógrafo, ex-delegado de propaganda médica: “Conheci o Carlos Paredes durante
muitos anos. Foi um amigo de longos anos, convivemos durante muito tempo,
encontrávamo-nos com muita frequência e gostava imenso de ir aos concertos
dele, mesmo antes do 25 de Abril. Lembro-me de o ver atuar em associações
recreativas a acompanhar artistas que declamavam poesia. Toda a obra, toda a
vida dele foi dedicada à música.”
A
pequena multidão foi dispersando. Deram-se os últimos beijos e abraços. David
Ferreira, diretor da EMI – Valentim de Carvalho guardou um silêncio comovido
enquanto Luísa Amaro, companheira dos últimos anos de Paredes, tentava com um
sorriso tímido apagar as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Rão Kyao, músico,
traçou o último retrato do mestre da guitarra portuguesa. “O Carlos é um
gigante da nossa música, uma influência muito grande, não só na música
portuguesa, na atitude, um homem que nunca tocava nada que não fosse
absolutamente sentido, que não passasse completamente pela parte anímica. Mudou
a guitarra portuguesa. Foi ele que nos ensinou isso e nos pôs no nosso devido
lugar em relação à música. É uma perda incalculável que é compensada por aquilo
que a gente tem dele – as memórias e o que está gravado.”
O
local está então quase deserto e o silêncio e o calor pesavam mais do que
nunca. Regressou-se pelo mesmo caminho e com uma ideia insistente a bailar, a
de que Paredes foi maior do que alguma vez o conseguimos imaginar e mereceu
sempre mais do que recebeu. Fica o silêncio, o mesmo silêncio alteroso e
oceânico que clamava nas cordas da sua música.
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