02/03/2020

Pequena multidão na despedida a Carlos Paredes


CULTURA
DOMINGO, 25 JULHO 2004

Pequena multidão na despedida a Carlos Paredes

FUNERAL ONTEM

Não foi uma grande multidão aquela que compareceu ao funeral do mestre. Na morte, como na vida, ele foi até ao fim o “gigante”, nobre e discreto, da nossa música. Os sons da sua guitarra perdurarão na nossa memória

Cerca de 500 pessoas acompanharam, ontem, Carlos Paredes, até à sua última morada, no Cemitério dos Prazeres, onde foi a enterrar o mestre da guitarra portuguesa, que faleceu no mesmo dia em que Amália Rodrigues nasceu. Duas referências maiores da música portuguesa irmanadas por esta coincidência.
            A tarde estava tórrida, mas mesmo antes do cortejo chegar a pé da Basílica da Estrela, onde o corpo do guitarrista esteve exposto em câmara ardente, houve quem aguentasse a pé firme a canícula. Joaquim Medeiros, 74 anos, reformado da CP e “alentejano”, como fez questão de frisar, estava à espera no cemitério há mais de duas horas mas não arredou pé. Nas mãos segurava um cravo vermelho. A seu lado, a mulher, tinha uma rosa, também vermelha. Foi assim que se despediram do guitarrista.
            Ao falar de Paredes a voz de Joaquim Medeiros – homem com muitas histórias para contar (além de reformado é também o presidente da Comissão de Utentes da Margem Esquerda do Guadiana) – incendiou-se: “Era um democrata e o que eu lamento neste país é que as pessoas, os grandes democratas, os grandes génios, os grandes talentos, só se fale no nome deles quando é da morte. De Paredes, na vida real pouco se falava dele, só meia dúzia de pessoas. Foi um génio, dos que aparecem de cem em cem anos. Devia dar-se mais valor aos grandes artistas. Trouxe o cravo porque ele também esteve com o 25 de Abril, esteve preso na ditadura de Salazar. É um estímulo.”
            No cemitério, e bem junto ao carro funerário, distinguiam-se as figuras de Carlos do Carmo e, a seu lado, do filho, Gil do Carmo. Estavam visivelmente emocionados. Caminhava-se em silêncio. A “explosão” aconteceu quando o carro parou e a urna foi retirada para o exterior – uma longa, longuíssima torrente de aplausos que só parou quando o padre disse as palavras de despedida. Todos sentiram, como Vera Rodrigues, 37 anos, professora, que “desapareceu um símbolo importante da música portuguesa”. Vera tem pena de não ter “conhecido pessoalmente” o mestre mas garante que jamais esquecerá a sua música, citando a importância de um álbum como “Movimento Perpétuo”: “É fantástico, aconselho toda a gente a comprá-lo!”
            Enquanto fala, as palmas não param. O elogio fúnebre destacou a “amizade” e a “ternura” cultivados pelo autor de “Verdes Anos”. Alguns estudantes ensaiavam baixinho uma canção de adeus ao mestre. “Há muitos anos que ouço a música do Paredes”, diz João Martins, 26 anos, engenheiro eletrotécnico, representante do Grupo de Fados Verdes Anos. “Mais do que ser portuguesa, património de qualquer tipo de expressão nacional, a música de Carlos Paredes tornou-se universal. É com muita pena que o vejo partir apesar de já não o podermos ouvir há mais de dez anos a tocar guitarra portuguesa.”

“Até amanhã camarada!”
O calor tornou-se quase insuportável, enquanto uma bruma escondia a visão do Tejo, para onde Paredes há-de ficar virado. As emoções soltaram-se ainda mais. Não é só o músico nem o homem que são recordados, mas também o cidadão com ideais de esquerda que foi Paredes. Alguém gritou: “Até amanhã camarada!”. “Até amanhã” repete outra voz, enquanto vários punhos fechados se erguem no ar em saudação.
            Marta Barata, 34 anos, “designer”, quis “prestar uma última homenagem a uma pessoa que foi uma referência muito grande da música portuguesa”. Em Paredes viu sempre “uma grande nobreza enquanto pessoa, com um grande espírito artístico”. Também alheio ao burburinho dos punhos erguidos, houve quem, chegado para um canto, vivesse outro tipo de recordações. Como Amílcar Nunes, 79 anos, geógrafo, ex-delegado de propaganda médica: “Conheci o Carlos Paredes durante muitos anos. Foi um amigo de longos anos, convivemos durante muito tempo, encontrávamo-nos com muita frequência e gostava imenso de ir aos concertos dele, mesmo antes do 25 de Abril. Lembro-me de o ver atuar em associações recreativas a acompanhar artistas que declamavam poesia. Toda a obra, toda a vida dele foi dedicada à música.”
            A pequena multidão foi dispersando. Deram-se os últimos beijos e abraços. David Ferreira, diretor da EMI – Valentim de Carvalho guardou um silêncio comovido enquanto Luísa Amaro, companheira dos últimos anos de Paredes, tentava com um sorriso tímido apagar as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Rão Kyao, músico, traçou o último retrato do mestre da guitarra portuguesa. “O Carlos é um gigante da nossa música, uma influência muito grande, não só na música portuguesa, na atitude, um homem que nunca tocava nada que não fosse absolutamente sentido, que não passasse completamente pela parte anímica. Mudou a guitarra portuguesa. Foi ele que nos ensinou isso e nos pôs no nosso devido lugar em relação à música. É uma perda incalculável que é compensada por aquilo que a gente tem dele – as memórias e o que está gravado.”
            O local está então quase deserto e o silêncio e o calor pesavam mais do que nunca. Regressou-se pelo mesmo caminho e com uma ideia insistente a bailar, a de que Paredes foi maior do que alguma vez o conseguimos imaginar e mereceu sempre mais do que recebeu. Fica o silêncio, o mesmo silêncio alteroso e oceânico que clamava nas cordas da sua música.

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