JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
31 JULHO 2004
Três pianos nas mãos de
italianos. O périplo solitário de Brotzmann rompe o dique.
Poemas
de amor e ódio
Peter Brotzmann
é um músico que toca nos limites. A
audição da sua música nunca é, por esse motivo, fácil. Exige-se disponibilidade
total e a atenção necessária para se compreender a lógica pessoalíssima deste
autor, mesmo quando este afirma pretender soar como Billie Holiday. Tal
“boutade” apenas se entende na tristeza que por vezes assola estes exercícios
de pura solidão inspirados nos mesmos 14 poemas escritos pelo poeta Kenneth
Patchen que Brotzmann leu quando viajava de comboio. Cada tema é composto/improvisado
para um único instrumento, sendo utilizados os saxofones barítono, alto e
tenor, vários clarinetes e o tarogato. Brotzmann percorre a gama completa do
grito ao murmúrio, jogando com as respirações, a embocadura e toda a série de
técnicas extensivas que lhe permitem nunca cair na monotonia. Particularmente
excitantes são as suas intervenções no sax barítono, de uma profundidade e
emotividade quase atrozes. No tema oito, por outro lado, são os agudos mais
vibrantes tirados da embocadura, num duelo com a palheta que antecipa a
consequente e entrecortada intervenção no sax tenor, a raiar em alguns momentos
a pura passagem do ar. “14 Love Poems”, repetimos, não é de apreensão fácil, situando-se
numa região do pós-free em que as melodias são estilhaçadas, o ritmo cortado
aos pedacinhos e os timbres multiplicados até ao infinito. Entre-se, pois, pé
ante pé, na arte, indiscutivelmente maior, deste exagerado alemão para quem o
jazz é a voz da mais exacerbada e abstrata das paixões. Poemas de amor e ódio.
Deitemos, por contraste, água na
fervura e sigamos para um jazz mais imediatamente consumível como é o do sexteto
de Tommy Smith, um dos tenoristas, juntamente com Joe Lovano, de “Evolution”. O
guitarrista é John Scofield e com Lovano a seu lado já se sabe que sai jazz
redondo, de textura aveludada e nada que se pareça com cortes epistemológicos.
O baterista é Bill Stewart, o baixista John Patitucci e o pianista John Taylor,
nomes acima (ou além) de qualquer suspeita mas cuja evolução neste disco dá a
entender que a soma não chega a abranger a totalidade das partes. John Taylor
toca para dentro e por dentro em “Easter island” e quando as coisas aceleram um
pouco, como em “Lisbon earthquake” não chega a haver verdadeiro desmoronamento nem
o rebentamento da escala de Richter. Tommy Smith e Scofield brincam à vez com
Taylor, a secção rítmica dá saltinhos mas, por mais que se tente dar a ideia de
agitação, o “mainstream” aqui é sinónimo de acomodação a fórmulas já totalmente
dissecadas, catalogadas e arrumadas, para ouvir de pantufas e barriga cheia. É
bom e competente jazz, tocado por velhas raposas, mas passa sem provocar mossa,
como uma leve passagem da mão pelo pelo. O mais interessante acontece com as
deflagrações e refrações longínquas criadas por Scofield no início de “Siege of
Leningrad” e, uma vez mais, um John Taylor a confirmar-se como mestre das notas
mais solitárias e intimistas.
Procuremos territórios mais
preenchidos com acontecimentos importantes. Por exemplo, o disco de celebração
ao vivo da conquista, por Andrew Hill, em 2003, do Jazzpar, galardão instituído
por um júri dinamarquês que desde 1990 já premiou músicos como David Murray,
Lee Konitz, Tony Coe, Django Bates, Jim Hall, Chris Potter, Enrico Rava e Aldo
Romano, entre outros. Em “The Day the World Stood Still”, Hill é acompanhado
pelo Jazzpar Octet, constituído por músicos dinamarqueses, mais uma convidada, a
cantora Lenora Zenzalai Helm. Apesar de declarar a impossibilidade de traduzir a
sua música por palavras, Hill preenche o “booklet” inteiro com explicações minuciosas
sobre si e a sua obra. Em letras mais gordas, são expostas algumas máximas: “A
universidade da rua foi importante”, “Verifique em primeiro lugar o ritmo, se
for estático isso significa que a música está morta”, “Para mim, as vozes são como
ouvir ritmos” e “O foco não está em mim mas na orquestra”. A esta ênfase posta
no ritmo corresponde exatamente uma música pujante em que o pianista se
resguarda como mais um elemento rítmico no seio do coletivo. Os solos são quase
sempre contrapontísticos, funcionando em conjunção com outros instrumentos, numa
contínua elaboração de música “camerística”. Não por acaso, o pianista cita
numa parte do seu texto Schumann e Chopin, quando teoriza sobre a dicotomia jazz/música
clássica. “Yesterday tomorrow”, com os seus 15 minutos de duração é
particularmente apelativa, na forma de um crescendo harmónico vigoroso. Em “Do
to” e “When peace comes”, o vencedor do jazzpar mostra finalmente o seu outro
lado, em frases liquefeitas e um “touching” que, ocasionalmente, não deixa de
lembrar Monk ou Bud Powell. Sem ser brilhante, longe disso, “The Day the World
Still” é uma saborosa recriação dialética entre um certo classicismo e um
africanismo que subliminarmente (partes de “11/8”) roça as raízes de New
Orleans.
Terminemos com um trio de discos que
gira em torno de Itália. Um deles trata de “Standards”, pelo Franco D’Andrea
Trio, “Standard Time, Chapter III”, no formato clássico piano/contrabaixo (Ares
Tavolazzi, o velho baixista dos Área)/bateria (Massimo Manzi). Excelente
trabalho do trio em composições tão conhecidas como “Body and soul”, “All the
things you are”, “I can’t get started”, “What is this thing called love”,
“Sweet Georgia Brown” e “How high the moon”. Excelente trabalho do trio, a
tirar partido das possibilidades harmónicas dos temas para, sobre elas, construir
improvisações e solos de alto calibre. Franco D’Andrea tem um fraseado límpido,
melodicamente claro, com o “ataque” forte mas sempre controlado e conceções rítmicas
avançadas, como demonstra em “What is this thing called love”. Jazz bem
comportado sem que se dê ao termo qualquer sentido pejorativo.
A fórmula é semelhante em “Play
Morricone 2”, pelo trio Enriço Pieranunzi (piano), Marc Johnson (baixo) e Joey
Baron (bateria), desta feita em vez de “Standards”, um segundo volume de
composições de Ennio Morricone. A diferença está no estilo mais “bop” e fluido
– os dedos mais leves – de Pieranunzio. Para os apreciadores de Morricone, é a
possibilidade de escutarem a música do mestre num contexto diferente, já que,
em termos melódicos, o trio não opera grandes metamorfoses, o que não é de
admirar quando pensamos que é ao nível harmónico que se jogam as principais
partidas de xadrez neste tipo de “standardizações”.
Em “Mi Ritorni in Mente”, o pianista
é novamente italiano, Stefano Bollani, mas o líder do trio é o contrabaixista Jesper
Bodilsen, um discípulo de Niels-Orsted Pedersen, estando a bateria a cargo de Morten
Lund. Curiosamente, em termos pianísticos, Bollani, situa-se entre D’Andrea e
Pieranunzio. Tem a fluidez do segundo e o tipo de “ataque” do primeiro, com o
coração no “bop”. As improvisações têm vigor e imaginação e, como nos outros
dois discos, a tradição não é palavra vã. Tem a mais-valia de uma maior
profundidade, muito por graça do inegável talento do contrabaixista, como está bem
patente na fantástica conversação a três que mantém em “Someday my prince will
come”.
Peter Brotzmann
14 Love Poems
FMP
8
| 10
Tommy Smith Sextet
Evolution
Spartacus
6
| 10
The Andrew Hill Jazzpar Octet +
1
The Day the World Stood Still
Stunt
X
7
| 10
Franco D’Andrea Trio
Standard Time! Chapter 3
Philology
7
| 10
Pieranunzi, Johnson, Baron
Play Morricone 2
Camjazz
7
| 10
Jesper Bodilsen Trio
Mi Ritorni in Mente
Sundance
8
| 10
Todos
distri. Multidisc
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