11/03/2020

Poemas de amor e ódio [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 31 JULHO 2004

Três pianos nas mãos de italianos. O périplo solitário de Brotzmann rompe o dique.

Poemas de amor e ódio

Peter Brotzmann é um músico que toca nos limites.  A audição da sua música nunca é, por esse motivo, fácil. Exige-se disponibilidade total e a atenção necessária para se compreender a lógica pessoalíssima deste autor, mesmo quando este afirma pretender soar como Billie Holiday. Tal “boutade” apenas se entende na tristeza que por vezes assola estes exercícios de pura solidão inspirados nos mesmos 14 poemas escritos pelo poeta Kenneth Patchen que Brotzmann leu quando viajava de comboio. Cada tema é composto/improvisado para um único instrumento, sendo utilizados os saxofones barítono, alto e tenor, vários clarinetes e o tarogato. Brotzmann percorre a gama completa do grito ao murmúrio, jogando com as respirações, a embocadura e toda a série de técnicas extensivas que lhe permitem nunca cair na monotonia. Particularmente excitantes são as suas intervenções no sax barítono, de uma profundidade e emotividade quase atrozes. No tema oito, por outro lado, são os agudos mais vibrantes tirados da embocadura, num duelo com a palheta que antecipa a consequente e entrecortada intervenção no sax tenor, a raiar em alguns momentos a pura passagem do ar. “14 Love Poems”, repetimos, não é de apreensão fácil, situando-se numa região do pós-free em que as melodias são estilhaçadas, o ritmo cortado aos pedacinhos e os timbres multiplicados até ao infinito. Entre-se, pois, pé ante pé, na arte, indiscutivelmente maior, deste exagerado alemão para quem o jazz é a voz da mais exacerbada e abstrata das paixões. Poemas de amor e ódio.
            Deitemos, por contraste, água na fervura e sigamos para um jazz mais imediatamente consumível como é o do sexteto de Tommy Smith, um dos tenoristas, juntamente com Joe Lovano, de “Evolution”. O guitarrista é John Scofield e com Lovano a seu lado já se sabe que sai jazz redondo, de textura aveludada e nada que se pareça com cortes epistemológicos. O baterista é Bill Stewart, o baixista John Patitucci e o pianista John Taylor, nomes acima (ou além) de qualquer suspeita mas cuja evolução neste disco dá a entender que a soma não chega a abranger a totalidade das partes. John Taylor toca para dentro e por dentro em “Easter island” e quando as coisas aceleram um pouco, como em “Lisbon earthquake” não chega a haver verdadeiro desmoronamento nem o rebentamento da escala de Richter. Tommy Smith e Scofield brincam à vez com Taylor, a secção rítmica dá saltinhos mas, por mais que se tente dar a ideia de agitação, o “mainstream” aqui é sinónimo de acomodação a fórmulas já totalmente dissecadas, catalogadas e arrumadas, para ouvir de pantufas e barriga cheia. É bom e competente jazz, tocado por velhas raposas, mas passa sem provocar mossa, como uma leve passagem da mão pelo pelo. O mais interessante acontece com as deflagrações e refrações longínquas criadas por Scofield no início de “Siege of Leningrad” e, uma vez mais, um John Taylor a confirmar-se como mestre das notas mais solitárias e intimistas.
            Procuremos territórios mais preenchidos com acontecimentos importantes. Por exemplo, o disco de celebração ao vivo da conquista, por Andrew Hill, em 2003, do Jazzpar, galardão instituído por um júri dinamarquês que desde 1990 já premiou músicos como David Murray, Lee Konitz, Tony Coe, Django Bates, Jim Hall, Chris Potter, Enrico Rava e Aldo Romano, entre outros. Em “The Day the World Stood Still”, Hill é acompanhado pelo Jazzpar Octet, constituído por músicos dinamarqueses, mais uma convidada, a cantora Lenora Zenzalai Helm. Apesar de declarar a impossibilidade de traduzir a sua música por palavras, Hill preenche o “booklet” inteiro com explicações minuciosas sobre si e a sua obra. Em letras mais gordas, são expostas algumas máximas: “A universidade da rua foi importante”, “Verifique em primeiro lugar o ritmo, se for estático isso significa que a música está morta”, “Para mim, as vozes são como ouvir ritmos” e “O foco não está em mim mas na orquestra”. A esta ênfase posta no ritmo corresponde exatamente uma música pujante em que o pianista se resguarda como mais um elemento rítmico no seio do coletivo. Os solos são quase sempre contrapontísticos, funcionando em conjunção com outros instrumentos, numa contínua elaboração de música “camerística”. Não por acaso, o pianista cita numa parte do seu texto Schumann e Chopin, quando teoriza sobre a dicotomia jazz/música clássica. “Yesterday tomorrow”, com os seus 15 minutos de duração é particularmente apelativa, na forma de um crescendo harmónico vigoroso. Em “Do to” e “When peace comes”, o vencedor do jazzpar mostra finalmente o seu outro lado, em frases liquefeitas e um “touching” que, ocasionalmente, não deixa de lembrar Monk ou Bud Powell. Sem ser brilhante, longe disso, “The Day the World Still” é uma saborosa recriação dialética entre um certo classicismo e um africanismo que subliminarmente (partes de “11/8”) roça as raízes de New Orleans.
            Terminemos com um trio de discos que gira em torno de Itália. Um deles trata de “Standards”, pelo Franco D’Andrea Trio, “Standard Time, Chapter III”, no formato clássico piano/contrabaixo (Ares Tavolazzi, o velho baixista dos Área)/bateria (Massimo Manzi). Excelente trabalho do trio em composições tão conhecidas como “Body and soul”, “All the things you are”, “I can’t get started”, “What is this thing called love”, “Sweet Georgia Brown” e “How high the moon”. Excelente trabalho do trio, a tirar partido das possibilidades harmónicas dos temas para, sobre elas, construir improvisações e solos de alto calibre. Franco D’Andrea tem um fraseado límpido, melodicamente claro, com o “ataque” forte mas sempre controlado e conceções rítmicas avançadas, como demonstra em “What is this thing called love”. Jazz bem comportado sem que se dê ao termo qualquer sentido pejorativo.
            A fórmula é semelhante em “Play Morricone 2”, pelo trio Enriço Pieranunzi (piano), Marc Johnson (baixo) e Joey Baron (bateria), desta feita em vez de “Standards”, um segundo volume de composições de Ennio Morricone. A diferença está no estilo mais “bop” e fluido – os dedos mais leves – de Pieranunzio. Para os apreciadores de Morricone, é a possibilidade de escutarem a música do mestre num contexto diferente, já que, em termos melódicos, o trio não opera grandes metamorfoses, o que não é de admirar quando pensamos que é ao nível harmónico que se jogam as principais partidas de xadrez neste tipo de “standardizações”.
            Em “Mi Ritorni in Mente”, o pianista é novamente italiano, Stefano Bollani, mas o líder do trio é o contrabaixista Jesper Bodilsen, um discípulo de Niels-Orsted Pedersen, estando a bateria a cargo de Morten Lund. Curiosamente, em termos pianísticos, Bollani, situa-se entre D’Andrea e Pieranunzio. Tem a fluidez do segundo e o tipo de “ataque” do primeiro, com o coração no “bop”. As improvisações têm vigor e imaginação e, como nos outros dois discos, a tradição não é palavra vã. Tem a mais-valia de uma maior profundidade, muito por graça do inegável talento do contrabaixista, como está bem patente na fantástica conversação a três que mantém em “Someday my prince will come”.

Peter Brotzmann
14 Love Poems
FMP
8 | 10

Tommy Smith Sextet
Evolution
Spartacus
6 | 10

The Andrew Hill Jazzpar Octet + 1
The Day the World Stood Still
Stunt X
7 | 10

Franco D’Andrea Trio
Standard Time! Chapter 3
Philology
7 | 10

Pieranunzi, Johnson, Baron
Play Morricone 2
Camjazz
7 | 10

Jesper Bodilsen Trio
Mi Ritorni in Mente
Sundance
8 | 10

Todos distri. Multidisc

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