02/03/2020

"O 'glamour' é uma sofisticação, um mistério" [Ute Lemper]


CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 19 JUL 2004

“O ‘glamour’ é uma sofisticação, um mistério”

ENTREVISTA COM UTE LEMPER

Vai cantar em hebraico e árabe no novo espetáculo “Voyage”, “cabaré político” com base em Berlim. Esta noite, no CCB, em Lisboa, apresenta canções suas, de Brel, Piazzolla e Brecht. E avisa: é um concerto de “grande impacte físico”.


“Voyage” é o espetáculo que Ute Lemper apresentará hoje à noite no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, uma viagem com início e fim em Berlim onde será acompanhada por quatro músicos de Nova Iorque, Mark Lambert (guitarra), Vana Gierig (piano), Greg Jones (baixo) e Todd Turkisher (bateria). Nele, a cantora cantará novas canções da sua autoria, Jacques Brel, Astor Piazzola e o habitual reportório de Brecht. A diva do cabaré, atualmente residente em Nova Iorque, cultiva uma imagem onde o “glamour” e o cabedal se combinam numa dose q.b. de agressividade mas também de intimismo. Falamos, é claro, de uma mulher fatal.
            PÚBLICO – Que espetáculo irá apresentar em Lisboa?
            UTE LEMPER – Chama-se “Voyage” e o reportório é diferente do anterior “But One day”. Dei-lhe este nome porque se trata de facto de uma viagem. O ponto de partida é Berlim, obviamente, regresso sempre lá. As minhas raízes, a minha herança e o meu reportório pertencem a Berlim. A partir daí construí uma espécie de cabaré político. A viagem segue pelo Médio Oriente, vou cantar em hebraico e em árabe. Vai ter um impacte político muito forte. Também haverá reportório francês, com canções de Jacques Brel, “Buenos Aires”, de Astor Piazzolla e, claro, as habituais canções de Brecht. Mas o principal vão ser as canções escritas por mim. Algumas delas novas, como “Ghost of Berlin” e “Nevada”. Vão ser apresentadas de uma forma muito cinemática.
            Como irá ser o espetáculo, em termos de apresentação?
            Trarei quatro músicos comigo, de Nova Iorque. Vai ter momentos de intimidade. É um “show” com uma respiração especial e com um grande impacte físico.
            Disse uma vez: “Sou uma vamp, é tudo o que sei fazer, deviam prender-me num zoo.” Continua a ser verdade?
            (risos) Absolutamente!
            Num dos seus espetáculos havia bastante agressividade, falava em vampiros e em beber o sangue da audiência…
            Isso fazia parte do espetáculo “Berlin Cabaret”. Era uma provocação. Agora sou bastante mais tolerante.
            Que ideia faz do “glamour”?
            Não sou sempre glamourosa. Há dois tipos de “glamour”, um superficial e outro interior, um “glamour” espiritual. É uma sofisticação, um mistério. Definitivamente, é o oposto da vulgaridade.
            Nos anos 80 houve quem, na América, protestasse nos seus concertos, por cantar “coisas de comunistas”. Continua a ter reações negativas deste tipo?
            Isso foi em 1988, nos tempos da guerra fria. Hoje os comunistas tornaram-se muito populares (risos). Mas é preciso distinguir entre Nova Iorque e o resto da América. Há na América uma grande dose de provincianismo, um falso moralismo. Todos os países têm o seu provincianismo, mas o da América é enorme! Mesmo em Washington existe esse provincianismo burguês.
            O que é que Nova Iorque, onde reside, tem, que outras cidades, como Paris ou Berlim, não têm?
            É um caldeirão de culturas. Eu sou alemã mas sou nova-iorquina. Um vizinho meu é italiano e é nova-iorquino. Outro é francês e é nova-iorquino. Somos todos nova-iorquinos. Em Paris continuo a ser uma alemã em Paris. Em Londres sou uma alemã em Londres. São países com um sentido de identidade bastante forte. Lisboa é diferente, vivi em Lisboa durante algum tempo quando rodava um filme chamado “Aurélien”. Levei a minha família, os meus filhos e andámos de carro por todo o lado. Fui às praias e a um sítio maravilhoso, Sintra. Em Lisboa não encontrei qualquer provincianismo. Quero dizer, os ingleses são “tão” ingleses, os franceses são “tão” franceses (risos). Em Nova Iorque também não há nada disso.
            Em “But One Day” tem uma canção sobre o 11 de Setembro, onde diz “Here in New York, where nothing is the same”.
            Foi algo insuportável. Embora eu viva na “uptown” e não na “downtown” apercebi-me de tudo. Alguém que aborda de forma brilhante o assunto é o cineasta Michael Moore, em “Fahrenheit 9/11”.
            O título-tema de “But one day” é uma canção de amor bastante estranha em que fala de estar à espera de um choque frontal.
            Pode ser uma colisão entre dois mundos ou uma colisão dentro de nós próprios.
            Que significa o termo “sehnsucht” que aplicou, por exemplo, a Kurt Weill?
            É equivalente a ansiedade mas mais profundo. Algo dialético como o yin e o yang, as duas partes complementares da realidade. É também uma tortura interior típica dos alemães, o seu maior sofrimento interior. Foi Goethe quem disse: “Sinto duas almas diferentes dentro do meu peito.” Ou então o eterno “Ser ou não ser, eis a questão” (risos).

UTE LEMPER
LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém.
Pç. do Império. Às 21h. Tel.: 213612444. Bilhetes entre 12 e 42 euros.

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