11/03/2020

Sines entre o cante sinfónico e o punk polaco [6º FMM Sines]


CULTURA
SÁBADO, 31 JUL 2004

Crítica Música

Sines entre o cante sinfónico e o punk polaco

6º Festival Músicas do Mundo
SINES Castelo, 29 de Julho, 21h30
Lotação esgotada

Com meia hora de atraso, vento e um discurso politizado do presidente da câmara, começou mais uma edição, a sexta, do Festival Músicas do Mundo de Sines, com o interior do castelo repleto de público na quinta-feira à noite. Na abertura, a desmesura, muitas horas de ensaio e alguma pimbalhice marcaram a apresentação de “Terra de Abrigo”, o mais recente e megalómano projeto da Ronda dos Quatro Caminhos. O palco estava a abarrotar, do estilo “chega-te para lá senão caio”, com os executantes da Orquestra Sinfonieta de Lisboa, dirigida por Vasco Pearce de Azevedo, três grupos de cante, mais os elementos da Ronda. É tudo em grande neste projeto, mas se a junção do “cante” com a orquestra até funciona, pela disciplina e afinação, de maneira a criar o chamado “cante coral sinfónico”, quando a coisa descambou para modas de outras regiões do país o caldo ficou entornado. Mesmo assim, ouviu-se sem sofrimento um tema da aldeia de Duas Igrejas, em Trás-os-Montes, com boa prestação vocal e uma concertina a dançar sobre os acordes da Sinfonieta. O pior foi quando a Ronda se chegou para a frente e a orquestra foi atrás, ao ponto de se meter as cordas eruditas a tocar uma chula: não se faz, fica feio, e não ganha a chula com o remendo sinfónico. A dada altura, o palco foi inundado por ainda mais gente, no caso o Grupo de Cantadores de Saias de Campo Maior, cujas vozes, demasiado secas e estridentes, não ajudaram à festa. E foi assim até ao fim: dignidade sempre que o cante e a orquestra deram as mãos, música popularucha desenfreada quando se saiu de lá. Aplausos moderados e um “encore” ao nível do mais desbragado baile de aldeia (o ritmo de chula, em bruto, é de arrasar a paciência a qualquer um) puseram fim à função.
Os Warsaw Village Band (na foto), da Polónia, são matéria mais séria e energética. Aliam a modernidade e a ancestralidade num estilo ao qual já chamaram “hardcore folk”. Vão buscar o “bialy glos” ou “voz branca” – forma de grito modulado utilizado pelos pastores para comunicarem entre si através de longas distâncias –, mas não descuram a instrumentação fortemente amplificada. Dois violinos, um violoncelo, um saltério (o “suca”) e duas percussões são suficientes para provocar descargas de adrenalina e, nalguns casos, despoletarem uma fúria realmente “hardcore”. “Let’s make some noise” foi a introdução a um dos temas, “Four wild horses”, que veio bem a propósito. Noutro tema, uma sanfona a ameaçar explosão eminente não deixou de fazer lembrar os Hedningarna, pioneiros desta vaga de “violência folk” que alastra atualmente um pouco por toda a Europa.
Os Warsaw Village nunca se cansaram, prosseguindo infatigáveis a sua labuta. O som, demente, foi tomando conta das cabeças e dos corpos. Houve quem não resistisse e se entregasse à dança, empurrado pelos decibéis e pela atitude punk do grupo. Os seis músicos tocam com sofreguidão, parecendo querer engolir o mundo com o “bialy glos” feminino, a trovoada dos tambores e os duelos melódicos dos instrumentos de cordas com o “suca”. E tudo isto mantendo um forte apego à tradição como o demonstra uma “Polka folkisdead”, composta por um construtor de instrumentos de aldeia, mas cujo título paradoxal é bem ilustrativo da atitude do grupo, um misto de respeito e iconoclastia. Os Warsaw Village Band são revolucionários por direito próprio, quebrando com raiva todas as amarras que prendiam e homogenizavam a folk polaca durante o regime comunista. Podem beber no licor da tradição, mas acrescentam-lhe a sua descomunal dose de gás.
O Músicas do Mundo de Sines termina hoje com atuações do Septeto de Roberto Rodriguez, Rokia Traoré e Femi Kuti.

EM RESUMO
A dignidade pautou a fusão do cante alentejano com a Orquestra Sinfonieta de Lisboa. Com a Warsaw Village Band foi sempre a abrir, do princípio ao fim

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