CULTURA
SÁBADO, 31 JUL 2004
Crítica
Música
Sines entre o cante sinfónico
e o punk polaco
6º Festival Músicas do Mundo
SINES
Castelo, 29 de Julho, 21h30
Lotação
esgotada
Com meia hora de atraso,
vento e um discurso politizado do presidente da câmara, começou mais uma
edição, a sexta, do Festival Músicas do Mundo de Sines, com o interior do
castelo repleto de público na quinta-feira à noite. Na abertura, a desmesura,
muitas horas de ensaio e alguma pimbalhice marcaram a apresentação de “Terra de
Abrigo”, o mais recente e megalómano projeto da Ronda dos Quatro Caminhos. O
palco estava a abarrotar, do estilo “chega-te para lá senão caio”, com os
executantes da Orquestra Sinfonieta de Lisboa, dirigida por Vasco Pearce de
Azevedo, três grupos de cante, mais os elementos da Ronda. É tudo em grande
neste projeto, mas se a junção do “cante” com a orquestra até funciona, pela
disciplina e afinação, de maneira a criar o chamado “cante coral sinfónico”,
quando a coisa descambou para modas de outras regiões do país o caldo ficou
entornado. Mesmo assim, ouviu-se sem sofrimento um tema da aldeia de Duas
Igrejas, em Trás-os-Montes, com boa prestação vocal e uma concertina a dançar
sobre os acordes da Sinfonieta. O pior foi quando a Ronda se chegou para a
frente e a orquestra foi atrás, ao ponto de se meter as cordas eruditas a tocar
uma chula: não se faz, fica feio, e não ganha a chula com o remendo sinfónico.
A dada altura, o palco foi inundado por ainda mais gente, no caso o Grupo de
Cantadores de Saias de Campo Maior, cujas vozes, demasiado secas e estridentes,
não ajudaram à festa. E foi assim até ao fim: dignidade sempre que o cante e a
orquestra deram as mãos, música popularucha desenfreada quando se saiu de lá.
Aplausos moderados e um “encore” ao nível do mais desbragado baile de aldeia (o
ritmo de chula, em bruto, é de arrasar a paciência a qualquer um) puseram fim à
função.
Os Warsaw Village Band (na foto), da Polónia, são matéria
mais séria e energética. Aliam a modernidade e a ancestralidade num estilo ao
qual já chamaram “hardcore folk”. Vão buscar o “bialy glos” ou “voz branca” –
forma de grito modulado utilizado pelos pastores para comunicarem entre si
através de longas distâncias –, mas não descuram a instrumentação fortemente
amplificada. Dois violinos, um violoncelo, um saltério (o “suca”) e duas
percussões são suficientes para provocar descargas de adrenalina e, nalguns
casos, despoletarem uma fúria realmente “hardcore”. “Let’s make some noise” foi
a introdução a um dos temas, “Four wild horses”, que veio bem a propósito.
Noutro tema, uma sanfona a ameaçar explosão eminente não deixou de fazer
lembrar os Hedningarna, pioneiros desta vaga de “violência folk” que alastra
atualmente um pouco por toda a Europa.
Os Warsaw Village nunca se cansaram, prosseguindo infatigáveis
a sua labuta. O som, demente, foi tomando conta das cabeças e dos corpos. Houve
quem não resistisse e se entregasse à dança, empurrado pelos decibéis e pela
atitude punk do grupo. Os seis músicos tocam com sofreguidão, parecendo querer
engolir o mundo com o “bialy glos” feminino, a trovoada dos tambores e os
duelos melódicos dos instrumentos de cordas com o “suca”. E tudo isto mantendo
um forte apego à tradição como o demonstra uma “Polka folkisdead”, composta por
um construtor de instrumentos de aldeia, mas cujo título paradoxal é bem
ilustrativo da atitude do grupo, um misto de respeito e iconoclastia. Os Warsaw
Village Band são revolucionários por direito próprio, quebrando com raiva todas
as amarras que prendiam e homogenizavam a folk polaca durante o regime
comunista. Podem beber no licor da tradição, mas acrescentam-lhe a sua
descomunal dose de gás.
O Músicas do Mundo de Sines termina hoje com atuações do
Septeto de Roberto Rodriguez, Rokia Traoré e Femi Kuti.
EM RESUMO
A dignidade pautou a fusão do cante alentejano com a Orquestra
Sinfonieta de Lisboa. Com a Warsaw Village Band foi sempre a abrir, do
princípio ao fim
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