JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
24 JULHO 2004
Na celebração dos 30 anos da
morte do compositor, três reedições mostram a arte maior de Duke Ellington.
Duke,
um pintor de génio
Duke Ellington
foi imperial. Teve uma visão e pô-la em prática com a convicção e magnitude de
um deus. Deram-lhe uma orquestra e todo ele se transformou, usando-a como um instrumento,
o mais completo de todos os instrumentos. O jazz de “big band” teve em Duke o
seu maior inovador e embaixador. Impossível passar-lhe ao lado. Impossível escapar
ao fascínio de uma música composta e tricotada ao pormenor, que tirava partido
da mais ínfima “nuance” de cada interveniente da orquestra, retratando ao mesmo
tempo o todo (o próprio Duke) e cada uma das partes.
A sua discografia é vasta e impressionante,
mas para comemorar os 30 anos sobre a sua morte, em 1974, a Sony lançou três
“extended editions” correspondentes a obras dos anos 50: “Masterpieces by Ellington”
(1951), “Ellington Uptown” (1952) e “Festival Session” (1959).
Após várias tentativas falhadas para
se impor, “The Duke” (de seu verdadeiro nome Edward Kennedy Ellington, o
cognome foi-lhe posto no colégio) forma um pequeno “ensemble”, The Washingtonians,
que toca regularmente no Kentucky Club. Aos poucos, o grupo expande-se até se
tornar uma orquestra, cuja estrutura se manterá até ao fim. É contratado para
tocar no Cotton Club, no Harlem, frequentado maioritariamente por brancos, mas
em cujo palco passaram os maiores músicos negros. É aí que Duke Ellington desenvolve
o seu estilo peculiar na utilização da orquestra, conferindo-lhe uma dimensão de
cores justapostas, ora harmonicamente compatíveis ora contrastando numa dialética
de opostos, das quais emergiam melodias invariavelmente límpidas. É um estilo
expressionista que sugere e ao mesmo tempo ilustra, de “flashes” e grandes manchas,
que começa, em termos evolutivos, no chamado “jungle style”, até chegar a uma panvisão
globalizante e livre que chega a raiar o “free” (ouça-se a obra-prima “The Afro
Eurasian Eclipse”, para se perceber até onde se estende a sua modernidade).
“Ellington citou em dada altura
George Gershwin, Stravinsky, Debussy e Respighi como os seus compositores preferidos,
uma escolha significativa de nomes para nos lembrarmos, ao escutarmos a sua
música. Ela dá a chave da essência que está na sua base: melodia, ritmo,
delicadeza e cor”, escreve George Dale nas notas que acompanham (e explicam tudo
bem explicadinho) “Masterpieces by Ellington”, a presente reedição, contendo
arranjos de concerto de 1950, dos “Standards” “Mood indigo” e “Sophisticated
lady”, mais “Solitude” e “The Tattoed bride”, com os temas-extra, composições de
1951, “Vagabonds”, de Juan Tizol, “Smada” e “Rock skippin’ at the Blue Note”,
as duas últimas de parceria com Billy Strayorn.
Esta cor é variada e pode ir da
recuperação das raízes africanas até ao convívio com o “free jazz” (já perto do
final de carreira, Duke convidou Archie Shepp para tocar a seu lado num concerto).
Mas a personalidade do compositor, arranjador e dirigente de orquestra é tão forte
que todas as músicas, cada elemento divergente ou assimétrico, é assimilado num
todo inconfundível e pessoal. Duke Ellington celebra o mundo sem jamais deixar
de ser igual a si próprio. Percorre os extremos, mantendo incólume o centro. Como
diz Jean Wagner, em “O Guia do Jazz”: “Imaginemos um compositor clássico que tenha
feito a sua estreia no tempo do gregoriano – existe todo um aspeto religioso na
obra ellingtoniana – que tenha desabrochado no séc. XVIII e tenha terminado a
sua carreira a ouvir atentamente Arnold Schoenberg.” Tal era a largueza de
visão de Duke e, ao mesmo tempo, a sua firmeza.
“Masterpieces by Ellington” beneficiou
do facto de ser registado no então novo formato “long-playing”, permitindo ao
compositor apresentar pela primeira vez em disco as versões extensas de alguns
dos seus clássicos. “Mood indigo”, vocalizado por Yvonne Lanauze e com Billy
Strayhorn no piano, destaca-se pelos extraordinários efeitos “wah-wah” no
trombone, de Tyree Glenn, quase imitando a voz humana. Toda a construção é
representativa do génio de Ellington. Em “Sophisticated lady”, o piano atonal e
o clarinete baixo introduzem o tema, ímpar na sobreposição de ritmos e na
explanação do ambiente, até a voz de Lanauze apresentar a melodia principal e o
piano solar em cascata, ilustrando de forma exemplar a tal combinação de cores
contrastantes que toda a música de Ellington evidencia, o mesmo acontecendo com
o swingante e efusivo “The tattoed bride”, a tirar partido do máximo que o jogo
de metais pode dar, e a balada introspetiva “Solitude”, supostamente escrita em
20 minutos no estúdio.
“Take the ‘A’ train” (“scatado” a
primor por Betty Roche e pianisticamente em levitação) é o tema mais conhecido de
“Ellington Uptown”, num alinhamento que inclui três “suites”, “A tone parallel
to Harlem (Harlem suite)” (quem disse que as mudanças constantes e abruptas
eram exclusivo do rock progressivo?), “The controversial suite” e “The Liberian
suite”, qualquer delas exemplo soberbo da arte arquitetural e da pintura paisagística
de Duke Ellington. Os traços e o colorido são inconfundíveis, com as explosões
e implosões, os gritos modulados, os lagos e oceanos que a cada instante se
enchem e esvaziam.
Favor usar proteção ao ouvir o solo
de bateria no final de “Skin deep”. É como ser atropelado por uma locomotiva. Outro
tipo de proteção é exigido sempre que se ouvir “The mooche”, tal a sensualidade
no modo como Ellington dispõe as peças. Quase uma orgia que vai dos
infravermelhos aos ultravioleta. Esta é uma música para se ouvir uma e outra
vez, descobrindo-se em cada audição novos pormenores, apesar de, na essência,
seguir modelos tradicionais.
“Festival Session” soa mais aberto e
“easy listening”, se quisermos, com Ellington a conceder outra respiração a
solistas como Clark Terry (trompete), Johnny Hodges (sax alto) e Paul Gonsalves
(sax tenor, magnífico em “Copout extension”). O álbum inclui ainda “Perdido”, do
porto-riquenho Juan Tizol, duas pequenas “suites”, “Duael fuel” e “Idion’59”,
“Things ain’t what they used to be” e dois inéditos, “V.I.P.’s boogie” e “Jam
with Sam”. O jogo de timbres contrastantes é visível nos três movimentos de
“Duael fuel”, com a bateria e os trompetes num jogo da apanhada e o piano de
Ellington a servir de contraponto até chegar o clarinete de Jimmy Hamilton para
desenhar por cima ainda outra melodia. Clarinete que volta a estar em destaque
no mais sombrio “Idiom ‘59” bem como um sedutor solo (“o mais longo que alguma
vez toquei com Ellington”, segundo Clark Terry) de flugelhorn.
Tudo se conjuga na perfeição. Ellington,
muito mais que “the piano player”, como gostava de se auto-intitular, era o
grande jogador que manobrava a seu bel-prazer, valorizando cada parcela de modo
a certificar a grandiosidade do todo, cada uma das vozes da orquestra. Três discos
fundamentais.
Duke
Ellington
Masterpieces by Ellington
9/10
Ellington Uptown
9/10
Festival Session
8/10
Todos
Columbia, distri. Sony Music
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