02/03/2020

Duke, um pintor de génio [Duke Ellington]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 24 JULHO 2004

Na celebração dos 30 anos da morte do compositor, três reedições mostram a arte maior de Duke Ellington.

Duke, um pintor de génio


Duke Ellington foi imperial. Teve uma visão e pô-la em prática com a convicção e magnitude de um deus. Deram-lhe uma orquestra e todo ele se transformou, usando-a como um instrumento, o mais completo de todos os instrumentos. O jazz de “big band” teve em Duke o seu maior inovador e embaixador. Impossível passar-lhe ao lado. Impossível escapar ao fascínio de uma música composta e tricotada ao pormenor, que tirava partido da mais ínfima “nuance” de cada interveniente da orquestra, retratando ao mesmo tempo o todo (o próprio Duke) e cada uma das partes.
            A sua discografia é vasta e impressionante, mas para comemorar os 30 anos sobre a sua morte, em 1974, a Sony lançou três “extended editions” correspondentes a obras dos anos 50: “Masterpieces by Ellington” (1951), “Ellington Uptown” (1952) e “Festival Session” (1959).
            Após várias tentativas falhadas para se impor, “The Duke” (de seu verdadeiro nome Edward Kennedy Ellington, o cognome foi-lhe posto no colégio) forma um pequeno “ensemble”, The Washingtonians, que toca regularmente no Kentucky Club. Aos poucos, o grupo expande-se até se tornar uma orquestra, cuja estrutura se manterá até ao fim. É contratado para tocar no Cotton Club, no Harlem, frequentado maioritariamente por brancos, mas em cujo palco passaram os maiores músicos negros. É aí que Duke Ellington desenvolve o seu estilo peculiar na utilização da orquestra, conferindo-lhe uma dimensão de cores justapostas, ora harmonicamente compatíveis ora contrastando numa dialética de opostos, das quais emergiam melodias invariavelmente límpidas. É um estilo expressionista que sugere e ao mesmo tempo ilustra, de “flashes” e grandes manchas, que começa, em termos evolutivos, no chamado “jungle style”, até chegar a uma panvisão globalizante e livre que chega a raiar o “free” (ouça-se a obra-prima “The Afro Eurasian Eclipse”, para se perceber até onde se estende a sua modernidade).
            “Ellington citou em dada altura George Gershwin, Stravinsky, Debussy e Respighi como os seus compositores preferidos, uma escolha significativa de nomes para nos lembrarmos, ao escutarmos a sua música. Ela dá a chave da essência que está na sua base: melodia, ritmo, delicadeza e cor”, escreve George Dale nas notas que acompanham (e explicam tudo bem explicadinho) “Masterpieces by Ellington”, a presente reedição, contendo arranjos de concerto de 1950, dos “Standards” “Mood indigo” e “Sophisticated lady”, mais “Solitude” e “The Tattoed bride”, com os temas-extra, composições de 1951, “Vagabonds”, de Juan Tizol, “Smada” e “Rock skippin’ at the Blue Note”, as duas últimas de parceria com Billy Strayorn.
            Esta cor é variada e pode ir da recuperação das raízes africanas até ao convívio com o “free jazz” (já perto do final de carreira, Duke convidou Archie Shepp para tocar a seu lado num concerto). Mas a personalidade do compositor, arranjador e dirigente de orquestra é tão forte que todas as músicas, cada elemento divergente ou assimétrico, é assimilado num todo inconfundível e pessoal. Duke Ellington celebra o mundo sem jamais deixar de ser igual a si próprio. Percorre os extremos, mantendo incólume o centro. Como diz Jean Wagner, em “O Guia do Jazz”: “Imaginemos um compositor clássico que tenha feito a sua estreia no tempo do gregoriano – existe todo um aspeto religioso na obra ellingtoniana – que tenha desabrochado no séc. XVIII e tenha terminado a sua carreira a ouvir atentamente Arnold Schoenberg.” Tal era a largueza de visão de Duke e, ao mesmo tempo, a sua firmeza.
            “Masterpieces by Ellington” beneficiou do facto de ser registado no então novo formato “long-playing”, permitindo ao compositor apresentar pela primeira vez em disco as versões extensas de alguns dos seus clássicos. “Mood indigo”, vocalizado por Yvonne Lanauze e com Billy Strayhorn no piano, destaca-se pelos extraordinários efeitos “wah-wah” no trombone, de Tyree Glenn, quase imitando a voz humana. Toda a construção é representativa do génio de Ellington. Em “Sophisticated lady”, o piano atonal e o clarinete baixo introduzem o tema, ímpar na sobreposição de ritmos e na explanação do ambiente, até a voz de Lanauze apresentar a melodia principal e o piano solar em cascata, ilustrando de forma exemplar a tal combinação de cores contrastantes que toda a música de Ellington evidencia, o mesmo acontecendo com o swingante e efusivo “The tattoed bride”, a tirar partido do máximo que o jogo de metais pode dar, e a balada introspetiva “Solitude”, supostamente escrita em 20 minutos no estúdio.
            “Take the ‘A’ train” (“scatado” a primor por Betty Roche e pianisticamente em levitação) é o tema mais conhecido de “Ellington Uptown”, num alinhamento que inclui três “suites”, “A tone parallel to Harlem (Harlem suite)” (quem disse que as mudanças constantes e abruptas eram exclusivo do rock progressivo?), “The controversial suite” e “The Liberian suite”, qualquer delas exemplo soberbo da arte arquitetural e da pintura paisagística de Duke Ellington. Os traços e o colorido são inconfundíveis, com as explosões e implosões, os gritos modulados, os lagos e oceanos que a cada instante se enchem e esvaziam.
            Favor usar proteção ao ouvir o solo de bateria no final de “Skin deep”. É como ser atropelado por uma locomotiva. Outro tipo de proteção é exigido sempre que se ouvir “The mooche”, tal a sensualidade no modo como Ellington dispõe as peças. Quase uma orgia que vai dos infravermelhos aos ultravioleta. Esta é uma música para se ouvir uma e outra vez, descobrindo-se em cada audição novos pormenores, apesar de, na essência, seguir modelos tradicionais.
            “Festival Session” soa mais aberto e “easy listening”, se quisermos, com Ellington a conceder outra respiração a solistas como Clark Terry (trompete), Johnny Hodges (sax alto) e Paul Gonsalves (sax tenor, magnífico em “Copout extension”). O álbum inclui ainda “Perdido”, do porto-riquenho Juan Tizol, duas pequenas “suites”, “Duael fuel” e “Idion’59”, “Things ain’t what they used to be” e dois inéditos, “V.I.P.’s boogie” e “Jam with Sam”. O jogo de timbres contrastantes é visível nos três movimentos de “Duael fuel”, com a bateria e os trompetes num jogo da apanhada e o piano de Ellington a servir de contraponto até chegar o clarinete de Jimmy Hamilton para desenhar por cima ainda outra melodia. Clarinete que volta a estar em destaque no mais sombrio “Idiom ‘59” bem como um sedutor solo (“o mais longo que alguma vez toquei com Ellington”, segundo Clark Terry) de flugelhorn.
            Tudo se conjuga na perfeição. Ellington, muito mais que “the piano player”, como gostava de se auto-intitular, era o grande jogador que manobrava a seu bel-prazer, valorizando cada parcela de modo a certificar a grandiosidade do todo, cada uma das vozes da orquestra. Três discos fundamentais.

Duke Ellington

Masterpieces by Ellington
9/10

Ellington Uptown
9/10

Festival Session
8/10

Todos Columbia, distri. Sony Music

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